A fabulosa origem do mito do unicórnio (e por que ele ainda causa fascínio)
Você já viu um unicórnio?
Não me refiro a uma ilustração ou a alguma mercadoria purpurinada vendida para crianças. Estou falando de um unicórnio de verdade, ou seja, uma criatura parecida com um cavalo, barba de cabra e, é claro, um chifre longo e espiralado — sua característica mais reconhecível — saindo da testa. Porque eu já. Ou, pelo menos, posso dizer (juro) que vi o chifre de um unicórnio.
Deparei-me com um em Paris no ano passado, em uma exposição no Museu de Cluny, que tem uma coleção fascinante de arte medieval.
Lá estava, iluminado e colocado sobre uma base de bronze escuro: um pedaço de marfim marrom-alaranjado, espiralando por vários metros. A base foi projetada por Saint Clair Cemin, nascido no Brasil e radicado nos EUA. Ele se inspirou em um pedestal em forma de cabeça de unicórnio concebido pelo ourives do Renascimento italiano Benvenuto Cellini, que produziu a peça para um chifre semelhante que pertenceu ao papa Clemente VII.
Exceto, claro, que o pedaço de marfim na exposição do Cluny — e, presumivelmente, também o que pertencia ao papa do século 16 — nunca se projetou a partir do crânio de um unicórnio. Se fosse o caso, o pobre animal teria dificuldade em comer, porque ao abaixar, ele (tradicionalmente, os unicórnios foram quase sempre representados como do sexo masculino) ficaria com a ponta do seu chifre presa no solo, impedindo-o de mastigar uma única folha de grama.
Na verdade, o “chifre de unicórnio” em exibição no Museu de Cluny é a presa de um narval, uma baleia encontrada nas águas do Ártico na Groenlândia, na Rússia e no Canadá. A característica mais distintiva do macho da espécie é em realidade um dente canino saliente, que pode crescer até 3,5 m de comprimento.
E, de acordo com Béatrice de Chancel-Bardelot, a curadora da exposição Unicórnios Mágicos, que esteve no Cluny até o início de 2019, durante toda a Idade Média pessoas da Europa Ocidental acreditaram que as presas dessa baleia eram chifres de unicórnio. Consequentemente, estes itens se tornaram muito valorizados.
Como as presas do narval acabaram na Europa?
Na Groenlândia, onde estes pedaços de marfim ocasionalmente apareciam nas praias, a população local reconheceu que eles poderiam ter um potencial mercado em locais mais distantes.
Como resultado, as presas começaram a entrar na Europa através de uma rota que passava pela Escandinávia — e logo se tornaram objetos de prestígio, cobiçados por príncipes e papas.
Quem poderia culpá-los por ter acreditado que se tratava de unicórnios? Poucos europeus haviam batido os olhos em um narval. Confrontados com esses longos e misteriosos “chifres”, estudiosos daquele tempo se voltaram para textos antigos, buscando esclarecimentos.
Erroneamente, os europeus assumiram que aqueles seres deviam ter tido origem nos monoceros, nome com que os gregos antigos descreviam uma besta com chifre. Plínio, o Velho, escritor romano do século 1, falou de “um animal muito feroz” com corpo de cavalo, cabeça de veado, pés de elefante e cauda de javali.
Supostamente, segundo Plínio, o monoceros emitiam um som forte e tinham um único e longo chifre preto. Ah, e era impossível, ele escreveu, capturar um desses seres vivo. Hoje, os estudiosos acreditam que o escritor estava descrevendo um rinoceronte. O latim para monoceros é unicornis, do qual nossa palavra, unicórnio, deriva.
No século 12, as presas de narval já eram o mesmo que chifres de unicórnio. Avaliados como maravilhas da natureza, esses itens valiosos eram guardados como tesouros em igrejas e, às vezes, usados para fazer castiçais.
Um desses exemplares, um item com mais de 1,8 de comprimento, registrado como parte do tesouro da Abadia de Saint-Denis (hoje Basílica de Saint-Denis) no fim do século 15, foi o mais antigo exposto pelo Museu de Cluny.
À medida que o tempo passava, os “chifres de unicórnio” continuaram a fascinar estudiosos, cada vez mais interessados em história natural.
Muitas enciclopédias medievais — incluindo alguns exemplares do século 13 que ficaram em exibição no Cluny — ilustram esses seres, mostrando os primeiros exemplos de unicórnios na arte ocidental.
Quando o comerciante e explorador italiano Marco Polo viajou para a Ásia, viu rinocerontes, que ele acreditou inicialmente que pudessem ser unicórnios.
“Ele ficou um pouco decepcionado”, diz Chancel-Bardelot, “porque não eram brancos e seus chifres eram curtos e grossos, ao contrário da longa e bonita presa em espiral do narval”.
Ainda assim, as pessoas pensavam que o unicórnio era um “animal selvagem e ameaçador”, que vivia longe, em terras do Leste. Durante o século 15, um clérigo da Catedral de Mainz contou que, durante uma peregrinação à Terra Santa, havia visto um unicórnio, entre outros animais estranhos, no deserto do Sinai.
Com o tempo, o unicórnio foi acumulando lendas. Dizia-se que seus chifres tinham poderes mágicos: podiam ferver a água; ou, adicionados a uma bebida ou comida envenenadas, desintoxicá-las. Isso explica por que eles tiveram apelo entre governantes paranoicos em toda a Europa.
Diziam também que os chifres de unicórnio purificavam a água. A exibição de Cluny continha, por exemplo, um impressionante jarro do século 15, com liga de cobre moldada na forma de um unicórnio, usado para a lavagem simbólica das mãos durante a missa ou antes de uma refeição.
Essa associação com a pureza também se estendia à sexualidade feminina. Supostamente, apenas uma mulher virgem poderia encantar um unicórnio; em outros casos, eles eram vistos como bestas esquivas, rápidas demais para serem capturadas. (No final do século 20, um fabricante de automóveis francês produziu um carro conhecido como Licorne — francês para unicórnio —, fazendo referência à velocidade lendária da criatura.)
Consequentemente, o unicórnio, apesar do formato fálico de sua característica principal, tornou-se um símbolo de castidade e pureza feminina. No final da Idade Média, os unicórnios eram usados como emblemas por várias princesas e nobres. Em 1447, por exemplo, o artista italiano Pisanello criou uma medalha com o retrato de Cecilia Gonzaga, filha do primeiro marquês de Mântua, ao lado de um unicórnio, símbolo de sua castidade.
Essa conotação de pureza pode explicar também por que o unicórnio é frequentemente representado na cor branca. Há outros aspectos de sua aparência, porém, que variam de lugar para lugar.
Na Idade Média, os unicórnios italianos pareciam cabras ou até camelos, com pelo desgrenhado; já nas regiões de língua alemã, o unicórnio geralmente tinha uma cobertura marrom ou manchada. De certa forma, essas variações fazem sentido, uma vez que o unicórnio ganhou vida apenas na imaginação.
As conotações do unicórnio também variam de acordo com o local.
Uma tapeçaria exposta em Cluny, emprestada pela Coleção Burrell em Glasgow, revela que, no Vale do Reno dos séculos 15 e 16, a caça ao unicórnio era associada à Anunciação. Na tapeçaria, vemos o Arcanjo Gabriel ao lado de um pequeno unicórnio branco no colo da Virgem Maria. Dessa forma, o unicórnio é “associado a Cristo e à sua pureza, livre de pecado”, diz Chancel-Bardelot.
De acordo com curadora, porém, a verdadeira “idade de ouro” do unicórnio na arte da Europa Ocidental coincidiu com o final da Idade Média, nos séculos 14 e 15. Este foi o período que deu origem aos maiores tesouros expostos neste ano em Cluny, a série de tapeçarias “A dama e o unicórnio”.
Um elegante unicórnio branco aparece em todas as seis requintadas peças do conjunto. Cada uma também apresenta uma mulher nobre com roupas opulentas, acompanhada por um leão, (quase sempre) uma dama de companhia — todos flutuando sobre um fundo vermelho repleto de plantas, flores e vários outros animais, como macacos e coelhos.
O significado da sexta tapeçaria, que contém uma tenda com a inscrição enigmática Mon seul désir (“Meu único desejo”), continua sendo debatido hoje. Os estudiosos concordam, no entanto, que as tapeçarias foram tecidas por volta de 1500 — quando o unicórnio havia se tornado um elemento popular na heráldica (a arte de estudar a criação e evolução de brasões). Ele é, por exemplo, um símbolo nacional da Escócia.
Durante o Renascimento, entretanto, ganhou força o ceticismo em relação às propriedades milagrosas dos chifres de unicórnio. No século 16, o cirurgião Ambroise Paré, médico de quatro reis franceses, se posicionou contra o suposto potencial medicinal.
Neste período, os unicórnios ainda apareciam ocasionalmente na arte. Conforme a crença nesse animal foi diminuindo, porém, também foi enfraquecendo a idade de ouro do unicórnio.
As coisas mudaram novamente nas décadas finais do século 19, com a redescoberta das tapeçarias “A dama e o unicórnio”. Elas inspiraram artistas como o francês Gustave Moreau, que concluiu sua tela The Unicorns (os unicórnios) em 1887, depois que as tapeçarias foram adquiridas pelo Museu de Cluny.
Mais de meio século depois, na década de 1950, o polímata francês Jean Cocteau concebeu e projetou um balé também inspirado no conjunto.
Hoje, parece que estamos vivendo outra era de ouro do unicórnio. Olhe ao seu redor: criaturas de um chifre agora permeiam a cultura popular. Unicórnios chamativos estão em brinquedos e estampas de roupas de crianças e pré-adolescentes. No Instagram, a hashtag #unicorn tinha 13 milhões de posts no momento em que esse texto era escrito.
Para a comunidade LGBT, assim como a bandeira do arco-íris, o unicórnio é também um símbolo importante.
Graças às associações da criatura mítica com ideias de raridade, pureza e perfeição, a palavra unicórnio também ganhou novos usos nos últimos anos. No Vale do Silício, um unicórnio é uma start-up avaliada em mais de US$ 1 bilhão. Um vinho “unicórnio” é uma garrafa rara e difícil de encontrar.
Hoje, a palavra é ainda uma gíria sexual: alguém (geralmente uma mulher bissexual) que dorme com casais. Um passo largo diante da antiga associação do unicórnio com a virgindade.
Em suma, o unicórnio, o mais esquivo dos animais imaginários, continua cheio de vida, séculos depois de ter sido descrito pela primeira vez por escritores antigos. Como dizia um texto no final da exposição no Museu Cluny: “Embora a existência deste animal tenha sido debatida por cientistas desde o século 16, seu risco de extinção não é uma preocupação imediata”.
*Alastair Sooke é o crítico do jornal britânico Telegraph.