A frustrada tentativa de Monteiro Lobato em ganhar mercado nos EUA com livro considerado racista
Monteiro Lobato (1882-1948) já tinha vários livros publicados — entre os quais Cidades Mortas, Urupês e O Saci e contos que depois seriam incluídos no famoso Reinações de Narizinho, de 1931 — quando vislumbrou fazer sucesso no mercado editorial anglófono. Sonhando se tornar um novo H. G. Wells (1866-1946), cultuado pelo A Guerra dos Mundos, de 1898, passou cerca de quatro anos nos Estados Unidos, na segunda metade da década de 1920.
Na bagagem carregava sua esperança: o romance O Presidente Negro — originalmente O Choque das Raças ou O Presidente Negro. Com um enredo fortemente racista, a obra não teve aceitação entre os editores americanos. De acordo com o livro Um País se Faz com Tradutores e Traduções: A Importância da Tradução e da Adaptação na Obra de Monteiro Lobato, do escritor e tradutor britânico John Milton, Lobato bateu à porta de pelo menos cinco editoras nos Estados Unidos — e colecionou nãos.
“Lobato se via como um novo H. G. Wells, mas os temas centrais (a segregação completa entre brancos e negros, a tentativa dos brancos de esterilizarem os negros e a influência da eugenia, sugerindo que os brancos fossem superiores aos negros) eram sensíveis demais para qualquer editora norte-americana se arriscar”, escreve Milton.
No segundo semestre de 1927, uma carta escrita a ele pelo editor da agência literária Palmer, de Hollywood, sacramentou sua frustração, alegando que “o enredo central se baseia em uma questão particularmente difícil de ser abordada neste país, porque certamente resultará no tipo mais amargo de sectarismo”. “E, por esse motivo, os editores são invariavelmente avessos à ideia de apresentá-lo ao público leitor”, prossegue a carta. “Nem mesmo o fato de estar ambientado 300 anos no futuro mitigaria esse fato na mente dos leitores negros.”
A avaliação do editor ainda alerta a Lobato que “os negros são cidadãos americanos, parte integrante da vida nacional” e promover “seu extermínio por meio da sabedoria e habilidade da raça branca” seria endossar uma “divisão violenta”.
O escritor brasileiro não parece ter se convencido a mudar suas ideias. Em carta enviada ao escritor Godofredo Rangel (1884-1951), seu amigo e correspondente ao longo de 40 anos, Lobato reclamou que O Presidente Negro não havia sido aceito porque “acham-no ofensivo à dignidade americana”. “Errei vindo cá tão tarde”, escreve. “Devia ter vindo no tempo em que linchavam os negros.”
“Tinha lido há muito tempo [esse livro] e reli, mais recentemente. Tenho duas considerações, na verdade duas impressões fortes que me ficaram da obra. Primeiro, do ponto de vista de uma análise externa, fiquei impressionada com a certeza, seguida da decepção, de Lobato de que a obra seria bem recepcionada, um grande sucesso nos Estados Unidos. Lobato fica perplexo porque seu livro não encontra editor, não entende por que os americanos o acharam ofensivo”, comenta à BBC News Brasil a historiadora Lucilene Reginaldo, professora de Estudos Africanos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Do ponto de vista da construção da obra, é surpreendente como Lobato se instrumentaliza das ideias eugenistas, das quais ele era um entusiasta confesso. Mas ele tinha plena clareza que a literatura era uma forma sutil, indireta e eficiente de promover a eugenia.”
Enredo
O Presidente Negro começa no Brasil dos anos 1920. Ayrton sofre um acidente e acaba resgatado por um cientista excêntrico que lhe apresenta sua grande invenção: o porviroscópio, uma máquina que mostra o futuro.
Assim, os personagens acompanham a vida nos Estados Unidos de 2228, em plena campanha eleitoral. A sociedade futurista americana é descrita como uma utopia modelo. Mas, segundo a história criada por Lobato, esse sucesso era devido a algumas medidas que haviam sido tomadas: o fim da imigração, a execução de todos os recém-nascidos com malformações e a esterilização dos “doentes mentais” — balaio no qual o autor inclui prostitutas, ladrões, preguiçosos e desocupados. Outra medida implementada por esse governo futurista era a intervenção estatal na reprodução. Para poder ter filhos, o casal precisava se submeter a uma análise oficial de suas características. A ideia era garantir que apenas os melhores passassem seus genes adiante.
É nessa sociedade que Lobato insere uma campanha eleitoral norte-americana. E vence um candidato negro, Jim Roy. Trata-se do gatilho para que Lobato apresente os negros como “o único erro inicial contido naquela feliz composição”.
O livro aponta que a sorte dos Estados Unidos era que ali, devido ao ódio racial, ao contrário do Brasil não ocorreu a miscigenação — que para o autor causaria uma “degeneração” racial irreversível —, mantendo os negros segregados.
Por outro lado, segundo o livro, os negros teriam uma propensão maior a se reproduzir. O que fazia com que sua população aumentasse em um ritmo superior a dos brancos. Algumas “soluções” são apresentadas para esta questão. Os negros pedem a divisão do país em dois. Os brancos sugerem extraditar todos os negros para o Amazonas.
Mas a Suprema Convenção Branca cria um plano, chamado de “solução final” para o “problema negro”. Eles desenvolvem uma tecnologia para alisar os cabelos dos negros — mas instalam no aparelho um componente que esteriliza quem usa.
“É um livro claramente racista na ideia, na proposta, no desenlace. É um livro que ficou datado, por demais preconceituoso. Não vejo motivo para ser estudado em universidades nem escolas, muito diferente do universo infantil de Monteiro Lobato”, afirma à BBC News Brasil a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo (USP) e coautora do livro Reinações de Monteiro Lobato, uma biografia do escritor. “É um livro que serve apenas para teses e dissertações que analisam o racismo do Brasil. Não é um livro para ser adotado com alunos.”
Autora do artigo Você Já Pensou no Impacto da Obra de Lobato na Construção da Estima Negra?, a psicopedagoga Clarissa Brito, especialista em Educação Infantil, enfatiza à BBC News Brasil que considera O Presidente Negro a “expressão explícita de seu posicionamento político, defensor da eugenia e seu desejo de extermínio do povo negro”.
Quando Barack Obama disputava a Presidência dos Estados Unidos, em 2008, a editora Globo Livros relançou o romance. À BBC News Brasil o editor Mauro Palermo enfatiza que Lobato precisa ser lido considerando que ele “escreveu suas obras entre 1920 e o fim da década de 1940”. “Creio que leitores atuais encontrarão nessas histórias, além do entretenimento, uma oportunidade rica de entender e discutir como se comportava a sociedade brasileira há um século e, a partir daí, refletir sobre o quanto já caminhamos na luta contra o racismo e o tanto que ainda precisamos nos desenvolver e aprimorar”, diz. “Infelizmente nos entristece perceber que essa longa caminhada está longe de chegar ao fim.”
“Não me julgo competente para opinar, de formar mais circunstanciada, sobre a tipificação do crime de racismo na produção artística em geral e literária em particular. É evidente que minha postura de cidadã diante de um texto ou autor contemporâneo que propaga ideias racistas, xenófobas, homofóbicas, machistas é de firme repúdio, denúncia e execração”, avalia Reginaldo. “Creio que é diferente tratar de textos e autores contemporâneos e de textos e autores do passado, embora para mim o racismo seja execrável, um cancro maligno, no século 19, no século 20 e nos dias atuais.”
Ela ressalta, contudo, que como historiadora, lê obras que formularam e propagaram ideias racistas. “São fontes de pesquisa. Por exemplo, como dever de ofício e também por interesse, li mais de uma vez o livro Africanos do Brasil, de Raimundo Nina Rodrigues. Este e outros livros deste autor são fundamentais para a compreensão do ideário racista que está na base do pensamento social brasileiro do século XIX e início do XX. Mas a obra de Rodrigues informa muito mais, por exemplo, para os estudiosos das religiões afro-brasileiras e dos africanos no Brasil. Um olhar crítico sobre estas produções me permite analisar texto e contexto; singularidades, diálogos intelectuais, sub-textos. Poderia dizer o mesmo sobre clássicos da literatura ocidental e brasileira. Aí também se inscreve parte da polêmica e resistência sobre o reconhecimento do racismo na obra de Monteiro Lobato. Querem lhe preservar uma aura insustentável e, quero crer, desnecessária.”
Até janeiro do ano passado, quando Monteiro Lobato entrou em domínio público, a Globo detinha a exclusividade da publicação de suas obras — de acordo com Palermo, foram 7 milhões de livros vendidos, considerando todo o catálogo do escritor, nos últimos 12 anos. As insinuações preconceituosas de Lobato não se restringem ao romance O Presidente Negro. Estão presente em toda a sua obra, inclusive nos clássicos infantis que compõem a coleção Sítio do Picapau Amarelo.
Obras infantis
“Metaforicamente, podemos dizer que Narizinho e Pedrinho tinham duas avós. A de sangue, que incessantemente buscava repassar seu conhecimento formal para seus netos. E a tia Nastácia que era a responsável pelos ensinamentos advindos de sua experiência de vida. As duas avós eram igualmente importantes na criação e na formação de seus ‘netos’. As referências à tia Nastácia na obra refletem o pensamento da época e isso nos choca tremendamente hoje”, analisa Palermo, sobre o universo infantil de Lobato.
A Companhia das Letras, outra editora que tem publicado obras de Lobato, afirma à reportagem que opta por notas de rodapé para que os mediadores da leitura — sejam eles professores, sejam eles pais — contextualizem a questão às crianças. “Ficou estabelecido que todos os livros viriam com notas que pudessem contribuir às discussões das questões problemáticas da obra dele”, afirma a assessoria de comunicação da editora.
Sobre O Presidente Negro, a editora afirma que a polêmica obra “não está e não estará em catálogo”.
O racismo na obra infantil de Monteiro Lobato chegou até o Supremo Tribunal Federal. A história começou em 2010, quando o Conselho Nacional de Educação (CNE) determinou que o livro Caçadas de Pedrinho não fosse mais disponibilizado às escolas do sistema público, por conta do conteúdo racista. “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão” e “Não vai escapar ninguém — nem Tia Nastácia, que tem carne preta” foram trechos utilizados para justificar a medida.
Diante de recurso do Ministério da Educação, o caso chegou ao Supremo. Os debates foram encerrados apenas no mês passado.
“Tratava-se de mandado de segurança do STF com o qual se pretendia obter indiretamente a anulação de pareceres do Conselho Nacional de Educação. Referidos pareceres trataram da aquisição de obras literárias pelo Ministério da Educação destinados ao Programa Nacional Biblioteca na Escola. Alegavam os impetrantes que o Ministério da Educação, ao autorizar a aquisição de livros que contenham expressões reforçadores de estereótipos raciais, viola frontalmente as normas gerais da Administração Pública e a legislação internacional sobre o racismo”, contextualiza à BBC News Brasil o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor da FGV-Direito.
“A tentativa de proibir os livros de Lobato parece estar baseada na ideia de que a ficção literária não poderia, sob pena de praticar crime, tratar do racismo sem fazer sua crítica explícita. É uma visão que reclama que toda literatura, para ser lícita, seja militante. A visão é compreensível em função de nosso grave problema, não superado, com o racismo. Mas não há fundamento jurídico para a proibição de livros em casos assim, o que seria incompatível com a liberdade, um valor fundamental, cuja prevalência justifica uma orientação muito restritiva quanto ao poder de o Estado intervir no mundo das palavras”, afirma Sundfeld.
“Para que se proíba a circulação de um livro não basta que ele incorpore, nos personagens, nas situações, nas frases ou nas palavras, algum tipo de elemento que, sem condená-lo, remeta ao racismo. É preciso que se trate de um caso extremo, difícil, aliás, de ocorrer em obras apenas literárias, de apologia e incitação inequívoca e grave ao racismo.”
O assunto foi encerrado no Supremo em 22 de maio, mas sem julgar o mérito. “O STF entendeu que não lhe cabia analisar o assunto, pois o que se estava impugnando era o ato de homologação, pelo Ministro da Educação, desses pareceres. Mas o STF não tem competência originária para julgar mandados de segurança contra atos de ministros de Estado”, explica o jurista.
Especialistas e educadores acreditam que a obra infantil de Lobato deve ser lida e debatida em escolas. “Não se trata de retirar suas obras do mercado. Muito melhor do que isso é que a obra venha acompanhada por notas que problematizem a questão do racismo”, defende Schwarcz. “Sempre acho que em história precisamos problematizar esses termos para que eles não passem ‘em branco’, com muitas aspas. É preciso fazer com que fique evidente o racismo presente nessa obra, isso é fazer muito mais do que censurar o autor.”
Ela defende a necessidade de, no ambiente escolar, formar e informar os professores, para que eles saibam como tratar livros assim. “Que o professor alerte o aluno a todo momento em que houver personagens ou situações ou contextos racistas. Chamar a atenção, perguntar por que a Tia Nastácia tinha apenas saberes localizados enquanto os personagens brancos conheciam história, ciência, civilização. Por que personagens negros foram descritos a partir de seus beiços alargados e sua cor, enquanto os brancos, não, como se brancura fosse uma não cor. Minha atitude como professora nunca é de censura, e sim de interpelar essas narrativas com outras questões, que são as questões do nosso momento”, afirma.
“Os livros de Lobato devem estar em catálogo, com notas de rodapé”, prossegue. “E essas notas precisam servir de gatilho para que a classe discuta a questão do racismo no Brasil. Isso é fundamental em um país que vive um racismo estrutural e institucional.”
“Sou favorável às edições críticas”, complementa Reginaldo. “Parece que há algumas iniciativas nesse sentido neste momento, o que mostra a importância e ressonância do debate iniciado em 2010. Há tempos, circula uma nota crítica nas Caçadas de Pedrinho sobre a proibição da caça das onças. Num artigo publicado em 2010, Ana Maria Gonçalves chama a atenção para a a mea culpa de Lobato reconhecendo seu preconceito contra os camponeses representados pelo personagem Jeca Tatu, que foi incorporado na quarta edição de Urupês. Mas como já confessei em outra ocasião, ao ler Caçadas de Pedrinho e outros para meu filho com então 6 anos, me vi na obrigação de mãe de protegê-lo. Editei e omiti termos que me soavam impronunciáveis. Mas sei que isso também foi praxe nas versões televisivas do Sítio do Picapau Amarelo.”
Importância de Lobato para crianças
“Não tenho nenhuma ressalva — na verdade acho fundamental — que se publique a obra de Lobato na íntegra. Lobato deve ser lido”, comenta Reginaldo.
“Como historiadora, vejo aí uma fonte preciosa para os estudiosos e para reflexão crítica sobre o Brasil. Com outras preocupações e recursos analíticos, em razão do seu valor literário — que aliás, aqui não se discute, também é fonte para os estudiosos da literatura e de outras áreas. No ambiente escolar, especialmente para jovens e adolescentes, acompanhado de boas edições críticas, pode ser lido. Mas nas mãos do público infantil, no qual a literatura é sobretudo expressão do lúdico, mas que ao mesmo tempo introjeta valores, creio que não se pode ignorar o debate que vem sendo feito desde 2010, pelo menos. Ouvi muita gente dizendo que leu Lobato na infância e não se tornou racista. Mas acho que, por meio de processos indiretos sem ódio, sem truculência, podem ter aprendido a naturalizar as hierarquias raciais, se colocarem como personagens centrais e protagonistas da história, tornado-se, por conseguinte, insensíveis às dores e humilhações alheias. Defender ardorosamente a aura de Lobato é um lugar de privilégio!”
Para a especialista em Educação Infantil Clarissa Brito, é preciso atentar para o fato de que expressões da obra de Lobato — como “negra cor de lodo”, “carne preta” ou próprio uso do termo “negra” no vocativo — sejam compreendidas como ferramenta de reprodução do racismo. Ela defende que as obras do autor sejam utilizadas em escolas, mas não na Educação Infantil, tampouco nas séries iniciais do Ensino Fundamental. É para alunos mais maduros, opina.
“Monteiro Lobato pode atravessar salas de aula no momento em que são estudadas as marcas da opressão colonial e os recursos políticos, sociais e econômicos para a perpetuação da segregação racial”, defende ela.
“Acredito que as crianças não precisam entrar em diálogo com uma obra que por anos vem estigmatizando figuras negras, reproduzindo um imaginário social que agride a estima de tantos homens e mulheres negras”, completa. “Vejo a iniciativa de comentário e notas, como uma questão forte que assola nossa sociedade, que são os recursos que tratam de minimizar o racismo e buscar caminhos de não legitimar o crime de injúria racial.”
Editor da Globo Livros, Palermo acredita que livros de Lobato, sejam os infantis, seja o polêmico O Presidente Negro, “podem ser usados como subsídio à discussão do racismo em escolas”. “Proibir me parece a negação da existência”, comenta ele. “Entender o passado é o melhor atalho para mudarmos o presente e melhorarmos o futuro.”