A herdeira que salvou incontáveis vidas do nazismo e inspirou filme
Tim Stokes
Nas primeiras horas de uma manhã de novembro em um quarto de hotel da Áustria, na época anexada pelos nazistas, Muriel Gardiner acordou com uma forte batida na porta.
Era um oficial da Gestapo, a polícia nazista, exigindo saber o que ela fazia no país. Com o coração batendo forte, a estudante de medicina educadamente respondeu que estava visitando a cidade de Linz como turista. O oficial fez mais perguntas, mas acabou indo embora.
Se tivesse investigado além, talvez teria descoberto que Gardiner não era quem dizia ser.
Gardiner havia nascido em Chicago (EUA) em 1901, na família Morris, que havia feito fortuna com a indústria de carne embutida.
“Desde cedo ela sentia que era extremamente injusto que ela tivesse tanta riqueza, sabendo que outras pessoas não tinham”, explica Carol Siegel, diretora do Freud Museum London, que teve Gardiner entre seus fundadores e agora exibe uma mostra sobre ela.
“Ela passou a se interessar muito por política. Mesmo na juventude ela organizou uma espécie de protesto sufragista.”
A visão de mundo de Gardiner havia sido parcialmente forjada por um dos eventos mais famosos do século 20: o naufrágio do Titanic, em 1912.
Mais tarde, ela diria a seu neto Hal Harvey que as reportagens de jornal sobre o Titanic listavam as figuras notáveis que haviam morrido, mas meramente descreveu os demais mortos como “ocupantes da classe econômica”.
“Ela perguntou a sua mãe o que aquilo significava, e a mãe respondeu que eram as ‘pessoas normais’. A cabeça dela explodiu”, Harvey conta. “De repente, ela virou a liberal da família, aos 11 anos de idade.”
Depois de cursar o ensino superior no prestigioso Wellesley College, em Massachusetts, ela estudou na Universidade de Oxford (Reino Unido) antes de se mudar para Viena (Áustria), em 1926, onde teve sua filha, Connie, nascida de um casamento que durou pouco tempo.
A mudança de Gardiner para a Áustria foi inspirada por sua esperança de ser examinada pelo reverenciado psicanalista Sigmund Freud.
Como ele já tinha um grande número de pacientes, Gardiner foi encaminhada a um colega dele – o que não mitigou seu interesse na psicanálise ou seu amor por uma cidade (Viena) onde os social-democratas estavam no poder.
“Quando ela chegou por lá, era uma ‘Viena vermelha’ (com a esquerda no comando), e ela ficou muito impressionada com as reformas sociais que estavam ocorrendo”, diz Seigel. “Muriel Gardiner gostava de viver ali e decidiu que queria ser psicanalista.” Por isso, se matriculou na faculdade de medicina da cidade.
Mas não demorou muito até que o governo socialista local fosse tirado do poder (e mais tarde perseguido) por um regime fascista.
A Áustria se tornou um país volátil, mas Gardiner permaneceu ali – e decidiu combinar seus estudos com uma nova causa, ajudando a resistência clandestina. “Não foi uma escolha difícil para ela ficar ali”, explica seu neto Harvey. “Para ela, era a óbvia coisa certa a se fazer.”
Conhecida no movimento da resistência como Mary, Gardiner usava suas três residências em Viena para realizar reuniões ou esconder colegas, incluindo o líder dos Socialistas Revolucionários Joseph Buttinger -quem, no final dos anos 1930, se tornaria seu marido.
“Ela levava uma vida dupla: da mãe devota e estudante ativa que era muito sociável e tinha amigos por toda Viena, ao mesmo tempo em que trabalhava na resistência”, conta Seigel.
Seu trabalho incluía contrabandear passaportes falsos que permitissem que combatentes da resistência pudessem escapar da Áustria.
Ela também usava sua fortuna, influência e contatos para ajudar austríacos a sair legalmente do país, por exemplo obtendo empregos para eles no Reino Unido.
‘Vida sob perigo’
Em uma ocasião, Gardiner viajou de trem e escalou uma montanha por três horas, no meio de uma noite de inverno, para entregar passaportes a dois camaradas que estavam escondidos em uma remota pensão.
“Ela vivia sob perigo genuíno: estava constantemente fazendo coisas que, se fossem descobertas, no mínimo a fariam ser expulsa do país, mas o mais provável é que a levassem à prisão”, prossegue Siegel.
Até que, em 1938, quando a Áustria já havia sido anexada pela Alemanha nazista, o marido (Buttinger) e a filha de Gardiner deixaram o país, embora ela tenha permanecido para concluir seus estudos e continuar seu trabalho na resistência.
Mas não demorou para que os três acabassem deixando a Europa rumo aos EUA.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Gardiner e seu marido fizeram campanhas por vistos para judeus e ajudaram refugiados a obterem empregos e acomodação nos EUA.
É impossível saber ao certo quantas vidas ela salvou. Harvey diz ter ouvido números nas casas de centenas, mas “acho que nem ela soube o número exato”.
Em um documentário lançado em 1987, dois anos após a morte de Gardiner, muitos sobreviventes do nazismo disseram que “provavelmente não estariam vivos” se não fosse pelos esforços dela.
Nas décadas após a guerra, ela passou a praticar a psicanálise, deu aula em universidades e publicou diversos livros, mas guardou para si o esforço na resistência e na ajuda a fugitivos do nazismo.
Harvey lembra da avó como “uma pessoa modesta, genuinamente modesta”. “Ela nunca falava sobre o que aconteceu, a não ser que você insistisse muito”, ele agrega.
Até que, em 1973, a escritora americana Lillian Hellman publicou um livro chamado Pentimento, que incluía um capítulo a respeito de sua aparente amizade com uma mulher chamada Julia que morava na Áustria pré-nazismo e havia trabalhado na resistência.
Quatro anos depois, o filme Julia, baseado nessa história, estrelou Jane Fonda e Vanessa Redgrave, que ganhou um Oscar de atriz coadjuvante pelo papel.
Quando a história do livro se tornou pública, diz Siegel, “muita gente começou a procurar Muriel perguntando: ‘você leu a história de Lillian Hellman? Você é a Julia? A história que ela está descrevendo é a sua’.”
Segundo Siegel, Muriel Gardiner entrou em contato com Hellman dizendo ‘hum, que estranho, você obteve sua história de mim?’, mas nunca teria recebido uma resposta.
Mais tarde, descobriu-se uma conexão entre as duas mulheres: elas tinham o mesmo advogado, Wolf Schwabacher. Como ele morreu na mesma época que o livro foi publicado, não foi possível descobrir se ele é quem havia contado a história de Muriel Gardiner para Lillian Hellman.
No entanto, ex-membros da resistência socialista na Áustria afirmam que só havia existido uma mulher americana que trabalhara com eles nos anos 1930: a mulher que conheciam como Mary, pseudônimo de Gardiner.
Como resultado da polêmica, Gardiner decidiu levar ela mesma sua história a público, escrevendo suas memórias, Code Name Mary, que estava esgotado mas ganhou uma republicação por conta da mostra em cartaz no Freud Museum de Londres.
O local, que foi a última morada de Freud depois que ele deixou Viena, foi comprado por Gardiner para ele e sua família e mais tarde se converteu em museu com a ajuda da fundação montada por ela.
Harvey, por sua vez, diz que é “gratificante” ver ressurgir um interesse pela história.
“Ela havia planejado doar 99% de sua fortuna, e fez isso. Ela não era uma Madre Teresa – ela desfrutava de boas refeições e adorava uma vodca tônica no fim do dia. Mas, combinando o dinheiro que ela teve sorte em ter com seu senso de ética e sua habilidade em conquistar o medo, ela virou a mulher da qual a sociedade (de sua época) realmente precisava.”