Amanda Rossi e Juliana Gragnani
BBC Brasil
Há 130 anos, o domingo de 13 de maio de 1888 amanheceu ensolarado no Rio de Janeiro, a capital do Império do Brasil. Era um dia de festa. A escravidão chegava ao fim por meio de uma lei votada no Senado e assinada pela princesa Isabel.
O Brasil era o último país da América a acabar com a escravidão. Ao longo de mais de três séculos, foi o maior destino de tráfico de africanos no mundo, quase cinco milhões de pessoas. Grande parte dos descendentes daqueles que chegaram também fora escravizada.
“Todos saímos à rua. Todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto”, recordou cinco anos depois o escritor Machado de Assis, que participou das comemorações do fim da escravidão, no Rio.
Outro escritor afro-descendente, Lima Barreto, completava 7 anos naquele 13 de maio e celebrou o aniversário no meio da multidão. Décadas depois, se lembraria: “Jamais na minha vida vi tanta alegria. Era geral, era total. E os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente (de) festa e harmonia”.
“Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Todos respiravam felicidade, tudo era delírio”
Machado de Assis
Missa realizada em 17 de maio de 1888, no campo de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, para celebrar o fim da escravidão no Brasil.
Na festa, Isabel foi exaltada pelo povo. Mas a abolição não foi uma ação benevolente da princesa e do Senado. Tampouco derivava apenas da exaustão do modelo econômico baseado no trabalho escravo, que precisava ser substituído pelo trabalho livre.
O fim da escravidão no Brasil foi impulsionado por diversos fatores, entre eles, uma importante participação popular. Cada vez mais escravos, negros livres e brancos se juntaram aos ideais abolicionistas. Sobretudo, na década de 1880.
As principais táticas eram a reunião em diferentes associações abolicionistas, a realização de eventos artísticos para angariar apoio, o ingresso de processos na Justiça e até o apoio a revoltas e fugas de escravos.
Na segunda metade da década de 1880, o abolicionismo pôs o Brasil em polvorosa. Ceará, Amazonas e algumas cidades isoladas já tinham se declarado livres da escravidão. Fugas e revoltas de escravos eram cada vez mais frequentes. Depois de fugir, eles tentavam chegar até quilombos e territórios já libertos. A polícia era convocada para reprimir, mas também passou a se rebelar. O chefe do Exército chegou a escrever para a princesa exaltando a liberdade e dizendo que não iria mais caçar escravos fugidos.
No Parlamento, os debates pela abolição pegavam fogo. Na Justiça, havia um número cada vez maior de ações para reivindicar a liberdade. Nas cidades, espetáculos artísticos eram seguidos de libertações massivas de escravos – no final, flores costumavam ser atiradas ao palco e o público saía aos gritos de “Viva a liberdade, viva a abolição”.
“Depois da abolição, aconteceram várias celebrações em torno da princesa Isabel. Parte dos abolicionistas, inclusive, associou a abolição à Coroa. Mas (a princesa) teve uma importância bem lateral”, fala a socióloga Angela Alonso, professora da Universidade de São Paulo e autora do livro “Flores, Votos e Balas”, sobre o movimento abolicionista. “Há vários líderes negros que foram muito importantes”.
Ricardo Tadeu Caires Silva, professor da Universidade Estadual do Paraná, explica que durante muito tempo o estudo da história tratou a abolição como uma dádiva da princesa Isabel, “ignorando a agência dos principais interessados na abolição: os escravos”. Somente mais tarde, os escravos passaram a ser considerados protagonistas do processo.
“Aqueles que vencem a batalha é que fazem a narrativa. Nós historiadores temos que reconstituir o processo da batalha, para recuperar as vozes daqueles que não foram ouvidas”, complementa Maria Helena Machado, também da USP, especialista em escravidão.
A lei assinada pela princesa – e apelidada de Lei Áurea – vinha tarde. Todos os países da América já tinham abolido a escravidão. O primeiro, foi o Haiti, 95 anos antes, em 1793. A maioria demorou para seguir o pioneiro, e fez suas abolições entre os anos 1830 e 1860. Os Estados Unidos, em 1865. Cuba, a penúltima a abolir a escravidão, o fez dois anos antes do Brasil.
Em nenhum outro país, contudo, a escravidão teve a dimensão brasileira. Enquanto 389 mil africanos desembarcaram nos Estados Unidos, no Brasil foram 4,9 milhões – 45% de toda a população que deixou a África como escrava. No caminho, cerca de 670 mil morreram. O gigantismo da escravidão no Brasil dificultou o seu fim – ela estava impregnada na vida nacional.
A lei também vinha curta e seca. Artigo 1: “É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brazil. Artigo 2: Revogam-se as disposições em contrário”. Nada mais. Nenhuma indenização ou compensação para os recém-libertos, estimados em 1,5 milhão de pessoas naquela época, nenhuma política de emprego ou de acesso à terra. Isso dificultou a integração dos ex-escravos.
“(A alegria trazida pela lei da abolição) havia de ser geral pelo país, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão. Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!”, ponderou Lima Barreto, ao se recordar da festa da abolição.
“Tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão. Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!”
Lima Barreto
O movimento abolicionista
Em 1886, a célebre cantora lírica russa Nadina Bulicioff veio ao Brasil para fazer uma série de espetáculos, a convite do imperador Pedro II. Estava em cartaz com a peça Aida – nome da personagem principal, filha do rei da Etiópia, escravizada no Egito.
A temporada teve grande sucesso. Especialmente, a última apresentação. Em certa altura da história, Aida foge do cativeiro, ainda com algemas. Nesse momento, o abolicionista José do Patrocínio interrompeu a cena e subiu ao palco com seis mulheres escravizadas.
Então, a russa rompeu as algemas do figurino e, por um momento, trocou a ficção pela realidade: entregou cartas de liberdade verdadeiras para as seis escravas, que se tornaram livres naquele momento, como Aida. “Sete Aidas. Choraram elas e o público, em delírio. Houve palmas e vivas, lançaram-se flores, soltaram-se pombos”, relata Angela Alonso no livro “Flores, Votos e Balas”.
Era um evento abolicionista, já pré-combinado. Na passagem pelo Brasil, Nadina ficou horrorizada com a escravidão. Recebeu uma joia de presente de admiradores e resolveu doá-la para comprar cartas de liberdade. O jornalista e escritor José do Patrocínio, negro e livre, ajudou a colocar a ideia em prática.
Patrocínio já estava acostumado a organizar eventos artísticos em prol da libertação dos escravos. Essa era uma das principais táticas do movimento abolicionista, do qual o jornalista fazia parte. As apresentações de música e teatro angariavam recursos para comprar cartas de liberdade, estimulavam as pessoas a libertarem seus próprios escravos e, principalmente, ajudavam a persuadir a opinião pública.
Foram realizados mais de 800 eventos artísticos abolicionistas, segundo catalogação de Angela Alonso. “A arte era uma das formas mais viáveis de política abolicionista. Nesses eventos há um apelo à humanidade e à compaixão”, diz.
Desde o final da década de 1860, o movimento abolicionista estava nas ruas. Nos anos 1880, atingiu seu auge. A base da sua organização eram as associações abolicionistas, que se multiplicavam pelo país – Alonso registrou 296, em todos os Estados. Entre elas, havia sociedades formadas apenas por mulheres. Para a socióloga, o abolicionismo foi o primeiro movimento social brasileiro.
Além das artes, outra tática usada pelos abolicionistas foi a judicial. Luís Gama, um ex-escravo que se tornou advogado dos escravos, ajudou a libertar cerca de 500 pessoas graças a processos nos tribunais, e fez seguidores.
Gama nasceu livre na Bahia. Mas, ainda criança, acabou vendido como escravo e foi levado para São Paulo. Aos 17 anos, aprendeu a ler e escrever. Em seguida, reivindicou sua liberdade ao seu proprietário – e conseguiu. Afinal, nascera livre, e livre era.
Alguns anos depois, Gama se tornou rábula (advogado auto-didata, sem diploma) e fez da profissão uma forma de luta contra a escravidão. Um dos seus argumentos mais vitoriosos para obter a libertação era provar que os africanos haviam sido trazidos para o Brasil quando o tráfico negreiro já era ilegal.
A primeira proibição do tráfico data de 1831, originada de uma queda-de-braço do Brasil com a Inglaterra, que tentava forçar o fim do comércio de escravos. Mas a lei foi pouco efetiva. Nos dois primeiros anos, o comércio de africanos caiu. Depois, voltou a subir e continuou como se nada tivesse acontecido. Foi somente em 1850 que veio a proibição definitiva do tráfico.
Luís Gama – e outros advogados abolicionistas – argumentava que os 739 mil africanos que entraram no Brasil depois de 1831 tinham sido sequestrados, já que o tráfico estava proibido. Por isso, deveriam ser libertados imediatamente.
Outra forma frequente de disputa judicial eram as “ações de liberdade”, pelas quais o escravo solicitava a compra de sua própria alforria. Esse tipo de processo foi um fruto inesperado da lei do Ventre Livre, de 1871.
“As vozes dos abolicionistas têm posto em relevo um fato altamente criminoso e assaz defendido pelas nossas indignas autoridades. A maior parte dos escravos africanos (…) foram importados depois da lei proibitiva do tráfico promulgada em 1831″
Luís Gama
Além de prever a libertação dos filhos de mães escravas nascidos a partir de então, a lei do Ventre Livre permitiu que escravos juntassem dinheiro e comprassem a alforria.
Já a libertação das crianças enfrentou mais problemas. Há relatos de que registros de nascimento foram adulterados para simular que as crianças tinham nascido antes da lei e, portanto, seriam escravas. Em outros casos, os proprietários das mães continuavam explorando o trabalho infantil.
Além dos palcos e tribunais, os abolicionistas travaram um duro embate com os escravistas no Senado. No jogo de forças do Império, a visão que prevalecia era de uma abolição gradual para evitar o colapso da economia, muito dependente do trabalho escravo.
Foi assim que foi aprovado, primeiro, o fim do tráfico; 19 anos depois, o fim definitivo do tráfico; após mais 21 anos, a liberdade das crianças; passados outros 14 anos, a dos idosos, protelando o fim definitivo da escravidão.
A demora parlamentar foi tanta que estimulou o florescimento da desobediência civil.
O aumento das revoltas
No dia 5 de outubro de 1887, seis escravos decidiram tomar as rédeas de seu destino. Armaram-se com espingardas e facas e, juntos, fugiram da fazenda de seu senhor, no sertão da província da Bahia. O objetivo de Agostinho, Cornélio, José, Teófilo, José Arruda e Libório era ir para uma cidade distante e se passar por não-escravos – na época, o número de negros e pardos livres já era maior que o de escravos.
Nos anos que antecederam a abolição, fugas, revoltas e quilombos fervilhavam no Brasil. Em alguns casos, eram incentivados por militantes – muitos deles, ex-escravos –, que iam para fazendas conscientizar escravos e estimular fugas.
Um deles foi Pio, ex-escravo que tinha se tornado estivador em Santos. Nas vésperas da abolição, Pio organizou uma fuga em massa na região de Itu, interior de São Paulo, rumo a um quilombo no litoral. O grupo, porém, foi massacrado por forças policiais na Serra do Mar.
“Os próprios escravos contribuíram de forma decisiva para acelerar o processo do fim da escravidão”, diz o historiador Ricardo Tadeu Caires Silva, professor da Universidade Estadual do Paraná, que encontrou o caso dos seis escravos na seção judiciária do Arquivo Público do Estado da Bahia. “A abolição foi feita muito mais por uma pressão das ruas, das senzalas, do que por uma decisão política com base na bondade.”
Algumas vezes as fugas tinham como destino Ceará e Amazonas. Em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea, ambos Estados já tinham abolido a escravidão, graças à pressão dos abolicionistas para criar territórios livres pelo país. O objetivo era justamente ter áreas de refúgio para escravos fugitivos, além de pressionar a monarquia.
O projeto de criar territórios livres começou no Ceará, que tinha um governo favorável à abolição. Para colocar o plano em prática, José do Patrocínio viajou até o Estado, reunindo em torno de si uma caravana abolicionista, conta Angela Alonso. O grupo bateu de porta em porta para tentar convencer os donos de escravos a libertá-los.
Houve até fugas internacionais, em regiões do Brasil próximas à fronteira de países que já estavam livres da escravidão, observa o historiador José Maia Bezerra Neto, da Universidade Federal do Pará. “Existem estudos que apontam fugas de escravos para a Bolívia, Guiana Francesa, Uruguai. Em minhas pesquisas, encontrei até senhor suspeitando de um escravo que tencionava fugir para a Espanha!”.
“Os escravos começam a organizar muitas revoltas e tomaram a dianteira de sair das fazendas, colocando em xeque a segurança pública. Eram influenciados pela efervescência do discurso abolicionista. Na sociedade, também havia um clima de não tolerar mais castigos físicos”, afirma a historiadora Maria Helena Machado, da Universidade de São Paulo, especialista em abolição.
Machado estudou os registros criminais de duas regiões paulistas, de 1830 até a abolição, e percebeu um aumento da violência contra senhores e feitores a partir de 1870. “Eram crimes planejados, insurreições. Muitas vezes, em reação à violência física contra os escravos.” Se por um lado a escravidão havia se mantido pela violência, por outro, alguns escravos passaram a combatê-la também com violência.
Há até casos de escravos que mataram seu senhor. Um deles aconteceu em uma colônia de imigrantes europeus no Espírito Santo. Ali, na década de 1880, um grupo de escravos descobriu que seu proprietário havia morrido e outro indivíduo comprara a fazenda. Eles então armaram tocaia e mataram o novo senhor com golpes de cacetes na cabeça. Justificaram o crime dizendo que temiam maus tratos.
Por outro lado, segundo Machado, os fazendeiros também se organizaram para ameaçar abolicionistas. O caso mais notável ocorreu três meses antes da Lei Áurea: o linchamento do delegado abolicionista Joaquim Firmino Cunho, de Penha do Rio do Peixe, interior de São Paulo. Durante à noite, uma turba de escravistas entrou em sua casa e o espancou até a morte. Participaram do crime dois ex-confederados dos Estados Unidos (os escravistas do Sul que lutaram contra o Norte na guerra civil americana).
E depois da abolição?
“A alma nacional mostrou-se preparada em todas as camadas sociais para praticar e receber a liberdade. Em nenhuma outra história do mundo se encontram páginas como as que se têm escrito ultimamente em nossa terra”
José do Patrocínio
A abolição não ocorreu como parte dos abolicionistas queria. O engenheiro negro André Rebouças, que fazia a ponte entre o abolicionismo das ruas e o dos gabinetes políticos e é considerado um dos principais articuladores do fim da escravidão, pregava que a abolição fosse acompanhada de uma reforma agrária, que destinasse terras para os ex-escravos.
Outro grande político abolicionista, Joaquim Nabuco, que nasceu em uma família escravocrata, aderiu às ideias de Rebouças. Ambos temiam que surgisse no Brasil uma nova forma de injustiça social após a abolição.
A forma que a abolição ocorreu, sem apoio para os ex-escravos começarem uma vida nova, tem consequências negativas até hoje, segundo o presidente da Fundação Palmares, Erivaldo Oliveira. Para ele, é uma das causas da profunda desigualdade racial brasileira.
É por isso que o movimento negro não comemora a data , mas sim o 20 de novembro, que marca a morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, representando a resistência negra.
A Escravidão é um crime.
O Latifúndio é uma atrocidade (…)
Não há comunismo na minha nacionalização do solo.
É pura e simplesmente democracia rural”André Rebouças
Isso não significa, no entanto, que o 13 de maio não deva ser lembrado, diz Oliveira: “A abolição foi fruto de uma pressão social. A gente precisa recontar essa história, dos heróis e heroínas que lutaram pelo fim da escravidão”. Sem esquecer que, 130 anos depois da abolição, a desigualdade persiste.
“Durante esses 130 anos somos maioria no país – 54% da população é afro-brasileira. Mas não somos 54% no Congresso Nacional, nos ministérios, nos tribunais, nas universidades, nas grandes empresas privadas. Isso precisa mudar”, completa Oliveira.
E se os abolicionistas vissem o Brasil hoje, 130 anos depois? “Acho que eles entrariam em campanha, fariam um movimento de novo. Inclusive com as mesmas bandeiras que eles tinham (de promoção de oportunidades para os negros), que não foram implementadas”, opina Alonso.
“O nosso caráter, temperamento, a nossa moral acham-se terrivelmente afetados pelas influências com que a escravidão passou 300 anos a permear a sociedade brasileira (…) enquanto essa obra não estiver concluída, o abolicionismo terá sempre razão de ser”
Joaquim Nabuco