A mórbida coleção de cabeças humanas que museu no Reino Unido decidiu deixar de exibir
Por 80 anos, os visitantes do museu Pitt Rivers em Oxford, no Reino Unido, podiam visitar uma parte da coleção que muitas pessoas descreveriam como chocante e macabra. Os itens em exibição incluíam crânios e cabeças humanas encolhidas coletados por ‘exploradores’ europeus em suas viagens às Américas e à Índia.
Mas a partir de terça (22/09), isso mudou. Como parte do “processo de descolonização” do museu, cerca de 120 restos mortais foram cuidadosamente removidos da exibição.
Eles incluem tsantsas, cabeças encolhidas feitas por tribos amazônicas com os corpos de seus inimigos derrotados, e crânios de prisioneiros capturados pelo povo Naga no norte da Índia.
“As cabeças eram uma das maiores atrações do museu, mas em vez de fornecer uma compreensão mais profunda sobre outras culturas, elas estavam reforçando estereótipos sobre esses povos serem ‘selvagens’, ‘primitivos’ ou ‘horríveis'”, diz Laura Van Broekhoven, diretora do museu.
“A questão é que muita coisa aconteceu aqui mesmo na nossa terra. Ingleses eram enforcados e esquartejados e nunca mostramos isso. Mulheres foram queimadas vivas e não mostramos isso. Então por que sempre estamos exibindo as chamadas atrocidades de outras culturas e muito pouco de nossas próprias atrocidades?” diz Van Broekhoven à BBC.
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Caçadores de cabeças
A história das cabeças encolhidas é complexa — tanto quanto a decisão de parar de mostrá-las.
Tsantsas eram objetos feitos com cabeças de inimigos por alguns povos indígenas que viviam na Amazônia equatoriana e peruana, principalmente o povo Shuar. O crânio era removido e a pele fervida até encolher. O rosto era então moldado com pedras quentes e o cabelo era reimplantado.
Os exploradores europeus do século 19 que encontraram tsantsas as viram como “curiosidades exóticas” e as trocavam por objetos valiosos. Uma tsantsa valia uma arma: o preço mais alto que um objeto poderia obter em termos de troca.
Portanto, embora as cabeças encolhidas não fossem originalmente um sinal de riqueza, logo se tornaram mercadorias com valor monetário. E embora elas já existissem há muitos anos, foi o apetite dos colecionadores por eles na Europa que alimentou um comércio macabro dos itens.
Com o tempo, a riqueza gerada por esse comércio tornou os Shuar muito mais poderosos do que seus inimigos, desencadeando guerras tribais e até episódios de caça de cabeças que levaram a mais mortes, de acordo com Van Broekhoven.
Também começaram a surgir tsantsas falsas, feitas de preguiças e macacos, conforme a demanda crescia na Europa.
“As pessoas começaram a fazer muitas falsificações. E não eram necessariamente [feitas pelos] Shuar, mas pessoas nas cidades que roubavam corpos de necrotérios e encolhiam essas cabeças”, diz ela.
Práticas sagradas
Um dos problemas das falsificações é que tsantsas genuínas não eram de pessoas ou vizinhos assassinados ao caso, mas parte de práticas cerimoniais sagradas, com um significado mais profundo, diz Van Broekhoven.
Era um tratamento concedido apenas aos mais ferozes líderes inimigos. O grupo indígena acreditava que com a prática poderia capturar o poder de uma das múltiplas almas que acreditavam que as pessoas tinham. Os Shuar contemporâneos afirmam que seus ancestrais ocasionalmente encolhiam as cabeças de seus próprios líderes mortos como forma de homenageá-los.
Os mortos tinham as pálpebras e a boca costuradas com fios de algodão como forma de reter o espírito. Realizava-se então um ritual para pacificar o espírito da vítima e torná-la parte do grupo, “ligando assim os inimigos, os vivos e os mortos.”
Mas na época em que o governo equatoriano proibiu o comércio do item na década de 1960, o significado das cabeças encolhidas na Europa já tinha uma conotação muito diferente.
O estereótipo do ‘selvagem’
A essa altura, os Shuar já haviam negociado todas as suas tsantsas em troca de mercadorias. Na cultura popular ocidental, filmes e livros retratavam tanto os Shuar quanto outros povos amazônicos como assassinos bárbaros e incivilizados.
Van Broekhoven diz que a coleta dos restos mortais pelos europeus pode ser vista como “parte importante do projeto de colonização”, uma tentativa de mostrar superioridade sobre outros povos para justificar o colonialismo.
“As ideias da época giravam em torno de uma suposta ‘evolução’ de povos selvagens, para bárbaros, para civilizados. No topo disso estariam os colonizadores”, diz ela.
Troféus de guerra
Tsantsas não são os únicos objetos da coleção de Pitt Rivers que ilustram essa questão, diz a diretora do museu. Crânios capturados pelos povos Naga do norte da Índia durante guerras também foram levados ao Reino Unidos como exemplo de “barbárie” dos povos colonizados.
Os Nagas acreditavam no poder oculto da cabeça humana e os guerreiros Naga exibiam os crânios de seus inimigos caídos, acreditando que eles trariam prosperidade e abundância.
Acadêmicos coloniais britânicos descreveram os Nagas, que viviam em relativo isolamento, como “atrasados” e “muito abaixo na escala da civilização”.
Mas Tezenlo Thong, um especialista com extensa pesquisa no assunto, diz que não havia evidências de que os Nagas realmente caçavam cabeças. A decapitação só era aplicada no contexto de rituais de guerra, e parecia ser mais a exceção do que a regra. E também não era algo definidor da cultura Naga.
A invasão colonial do território Naga foi “um dos capítulos mais violentos da história da conquista britânica do subcontinente [indiano]”. Mas a percepção que sobreviveu nas extensas escrituras coloniais e nas coleções de objetos da época é o estereótipo dos “caçadores de cabeças” locais, que persiste até hoje.
“Há uma parte da sociedade que vê a história como um fato. Mas a história é escrita por indivíduos”, afirma Van Broekhoven.
“A história das cabeças encolhidas, das cabeças de troféu Naga e de muitos objetos que temos em exibição foi escrita em nossos registros por colecionadores de elite, em sua maioria brancos, que queriam provar suas ideias de superioridade.”
Uma conversa difícil
Por enquanto, as tsantsas, os troféus Naga e outros restos mortais humanos presentes no museu serão trancados nos depósitos. A instituição afirma estar discutindo com representantes dos povos envolvidos que eles querem fazer uma curadoria dos objetos ou se seria o caso de repatriar as peças.
A polêmica é tanto sobre os itens em si quanto sobre a visão de outras culturas que os museus oferecem ao público.
Embora muitos museus ocidentais, como Auschwitz e Sobibor, tenham sido planejados como memoriais para lembrar atrocidades, diz Dr. Van Broekhoven “o Pitt Rivers não foi concebido dessa forma, com esse objetivo. Então há uma grande diferença.”
O Pitt Rivers é um dos maiores museus de antropologia, etnografia e arqueologia do mundo, com mais de meio milhão de itens — cerca de 10% dos quais estão em exibição. A instituição recebe 500 mil visitantes por ano.
Mas com 130 anos de história e objetos intimamente ligados à expansão imperial britânica, Van Broekhoven diz que o museu não pode “fugir de conversas difíceis”.
Ela diz que a decisão de remover os itens da exibição teve reações mistas nas redes sociais. As gerações mais velhas são mais propensas a reagir negativamente, diz ela.
“Por que algumas pessoas sentem como se tivessem ‘o direito’ de ver cabeças encolhidas em Oxford? E no direito de vê-las apenas como uma coisa bizarra?”