A nova face da Marquesa
Lançado no Festival de História de Diamantina, livro revela lado menos conhecido de Domitila, a mais famosa amante de D. Pedro
Diamantina – Uma jovem prendada e de origem humilde. Domitila de Castro Canto e Melo poderia passar despercebida entre os 20 mil moradores da São Paulo, se um breve encontro com o então príncipe regente Pedro, às vésperas da Proclamação da Independência, não a pusesse entre as personagens mais controversas do Império brasileiro. Sua trajetória é revisitada no livro “Domitila — a verdadeira história da Marquesa de Santos”, lançado este mês por Paulo Rezzutti, que participa hoje de um debate sobre a obra no Festival de História de Diamantina.Domitila, em quase 200 anos, não se livrou dos boatos que a acompanharam durante seu romance com D. Pedro I. A paixão lhe rendeu um palacete no Rio, criados, um banho de loja e uma ascensão meteórica na hierarquia imperial. Seu primeiro posto na Coroa foi como dama da imperatriz Leopoldina. Cinco anos depois, ela receberia o título de Marquesa de Santos.
A ostensiva troca de afagos com Pedro I rendeu a Domitila a fama de “mulher perdida”, manipuladora e corrupta. Além de conseguir títulos reais para seus parentes, a marquesa teria se aproveitado do contato com o imperador para facilitar negócios particulares, como a venda de minas de ouro para estrangeiros, uma prática proibida pela lei. Sua riqueza triplicou desde a chegada à nobreza. Acumulou uma fortuna estimada em R$ 120 milhões, em valores de hoje. Em caricaturas expostas nas fachadas de casas do Centro do Rio, Pedro I aparecia como um cavalo puxando a carruagem da amante.
Um lado menos conhecido da vida de Domitila é sua trajetória após o fim dos sete anos de romance com D. Pedro I. O imperador despachou-a para São Paulo, onde ela soube reciclar sua imagem com outros atributos: mãe zelosa, senhora cuidadosa com as vestes, idosa interessada na ordem das carmelitas e preocupada com o bem-estar de seus escravos — lembrados, inclusive, em seu testamento.
— Ela é uma das personagens mais complexas da História do Brasil — avalia Rezzutti. — É chocante a diferença em sua abordagem. No Rio, onde esteve com Pedro I, Domitila é vista como a grande vilã do Império. Em São Paulo, a cidade em que nasceu e para onde voltou após seu relacionamento com o imperador, é considerada uma dama benevolente e determinada.
Antes de conhecer Pedro I, Domitila já causava burburinho. Era casada com Felício de Mendonça, que a espancava frequentemente. Na manhã de 6 de março de 1819, foi esfaqueada duas vezes pelo marido, na coxa e na barriga. Pediu a separação, mas só o conseguiu cinco anos depois, quando já era amante do imperador. Os detratores de Domitila a acusariam depois de ter sido agredida porque traía Felício.
Pedro I e Domitila conheceram-se poucos dias antes da Proclamação da Independência. O imperador chegou a São Paulo escoltado pelo irmão caçula de Domitila, o cadete Francisco de Castro do Canto e Melo. Entre o fim de agosto e a primeira quinzena do mês seguinte, o casal concebeu seu primeiro filho (foram cinco, ao todo). Pedro I já era casado com Leopoldina, que estava no Rio. Pedro I nunca deixou que seu estado civil servisse de empecilho para seu comportamento mulherengo.
— À época, o casamento era visto como uma aliança entre monarquias, um negócio — descreve Rezzutti. — O amor era uma anomalia. Leopoldina se apaixonou pelo marido. Ela sofria porque ele ignorava seu sentimento e por estar isolada em uma Corte que a discriminava.
Na troca de cartas, Pedro I assinava como “Demonão” ou “Fogo-foguinho”; Domitila era “Titília”. Quando o imperador a levou para a capital do Império, mandou construir para ela um palacete vizinho à Quinta da Boa Vista, que tinha inclusive uma passagem secreta à cama da amante.
Domitila foi rejeitada pelos aristocratas. Uma vez, sua entrada foi barrada em um teatro, conhecido por seu público seleto. O imperador mandou fechar o estabelecimento e queimar seus cenários.
Quando foi alçada ao posto de dama camareira, a amante do imperador teve acesso diário a Leopoldina — e, por extensão, a Pedro I —, o que aumentava o constrangimento da imperatriz. Depois, Domitila tornou-se viscondessa e, por fim, marquesa. Pedro I pegava joias de sua mulher para dá-las a amante. A imperatriz só expressou sua contrariedade para confidentes próximos, chamando a rival de “aquela bruxa”.
A ‘santa casamenteira’
Leopoldina morreu em 1826, aos 29 anos. Por seu temperamento doce, era chamada de “mãe dos pobres”. A população, arrasada, procurava um culpado. Pedro I estava no Sul do país. Domitila escondeu-se por alguns dias na casa de uma de suas damas de companhia. Um de seus irmãos foi agredido na rua.
— Meses depois, Pedro I mandou emissários brasileiros à Europa procurarem uma nova esposa para ele. Era uma missão complicada, pois toda a Europa acompanhou estarrecida como o imperador exibia a amante. — conta Rezzutti. — Ele diminuiu seus critérios para conseguir uma nova mulher, uma nobre bávara de segundo escalão, D. Amélia.
Para escapar de novos escândalos, Pedro I mandou, em 1829, Domitila e sua família para São Paulo. Em 38 anos, ela conquistou uma boa reputação.
— Ela brigou para conseguir seus direitos como marquesa, que passaram a ser desprezados por Pedro I. Ao mesmo tempo, trouxe a pompa que aprendeu no Rio para São Paulo, uma cidade provinciana — lembra Rezzutti. — Promoveu festas e saraus em seu solar, apresentando as moças locais para estudantes de direito. Ali começaram muitos casamentos.
Não à toa, Domitila tornou-se uma espécie de santa casamenteira. Diz-se que as mulheres que dão três voltas ao redor de sua lápide e beijam o seu retrato, no Cemitério da Consolação, em São Paulo, arrumam marido. Também é conhecida como “santa das prostitutas”, por ter ajudado estas mulheres, nas últimas décadas de sua vida. Domitila levou para o túmulo a ambiguidade que cercou sua vida. Promoveu o “amor romântico” em sua casa paulistana, mas foi lembrada pelo “amor carnal” no palacete carioca construído pelo primeiro imperador do Brasil.
Fonte: O Globo