A onda de assassinatos de indígenas milionários nos anos 1920 que inspirou filme de Scorsese
Cem anos atrás, uma série de mortes em circunstâncias misteriosas começou a ganhar manchetes em jornais americanos. As vítimas pertenciam à tribo indígena Osage, que algumas décadas antes havia descoberto petróleo em suas terras no Estado de Oklahoma.
Na década de 1920, a nação indígena Osage estava entre os povos mais ricos do mundo, com a fortuna derivada do petróleo estimada em mais de US$ 30 milhões por ano, o equivalente a mais de US$ 400 milhões (cerca de R$ 2 bilhões) em valores atuais.
Em uma época em que os indígenas nascidos nos Estados Unidos ainda não tinham nem o direito à cidadania automática e eram vítimas de preconceito, muitos dos membros da nação Osage levavam vidas luxuosas, com mansões, carros com motorista particular, empregados domésticos, jóias e roupas caras.
Mas essa prosperidade logo atraiu o interesse de golpistas e criminosos. Não se sabe ao certo o número total de vítimas, mas calcula-se que pelo menos 60 pessoas, tanto membros da tribo quanto testemunhas e investigadores, tenham sido assassinadas ou desaparecido entre 1921 e 1925.
A onda de crimes ficou conhecida como “Reinado do Terror” e se tornou o primeiro grande caso de homicídio da agência que se transformaria no FBI (Federal Bureau of Investigation, a polícia federal dos Estados Unidos).
Esse capítulo da história americana, que durante décadas ficou esquecido, agora é tema do filme Assassinos da Lua das Flores, dirigido por Martin Scorsese e estrelado por Leonardo DiCaprio, Robert De Niro e Lily Gladstone, que estreou na sexta-feira (20/10). O filme é baseado no best-seller de mesmo nome, de David Grann, publicado em 2017.
O texto abaixo contém spoilers do filme.
Riqueza e oportunistas
No final do século 19, quando os indígenas da nação Osage saíram do Estado do Kansas e chegaram à área no que se tornaria o futuro Estado do Oklahoma, eles já haviam sido forçados pelo governo federal a deixar suas terras anteriormente, assim como outras tribos.
Em 1872, mais uma vez deslocados, os Osage compraram aproximadamente 595 mil hectares que ninguém queria, já que não eram propícios à agricultura. Mas havia petróleo nessa área, e nos anos seguintes os indígenas começaram a fazer uma fortuna.
“Os royalties eram pagos à tribo como um todo e distribuídos igualmente entre os membros, com cada beneficiário recebendo uma fatia igual”, diz a Sociedade Histórica de Oklahoma.
“Esse direito era hereditário e repassado aos herdeiros legais imediatos de um beneficiário falecido. E não era preciso pertencer à tribo Osage para herdar esse direito.”
A riqueza dos Osage começou a chamar a atenção, com reportagens em jornais e revistas. Forasteiros brancos de todo o país se instalaram na região, muitos em busca de casamento com indígenas ricos.
O governo federal também passou a interferir, determinando que indígenas classificados como “incompetentes” por um tribunal precisariam de um guardião branco para administrar seu dinheiro. Esse sistema não era fiscalizado, e historiadores afirmam que muitos guardiões se apossaram de grandes somas dos indígenas de maneira irregular.
“À medida que a notícia (da fortuna) se espalhou, oportunistas chegaram às terras dos Osage, procurando separá-los da sua riqueza por qualquer meio necessário – até mesmo assassinato”, diz o FBI em sua página sobre o caso.
‘Um período terrível’
“O Reinado do Terror foi um período terrível para o povo Osage”, diz o governo da tribo. “Tudo começou no início dos anos 1920, uma época que deveria ter sido próspera. O boom do petróleo estava em pleno andamento, e o povo Osage prosperava.”
Os primeiros casos a despertar atenção ocorreram em maio de 1921. “O corpo decomposto de Anna Brown, uma indígena Osage, foi encontrado em um barranco em uma área remota. O agente funerário descobriu um ferimento a bala em sua nuca”, diz o FBI.
Outro indígena, Charles Whitehorn, também foi encontrado morto com marcas de tiros. Uma irmã de Anna, Minnie, já havia morrido recentemente, vítima de uma doença misteriosa.
Em julho de 1921, dois meses após o corpo de Anna ter sido encontrado, sua mãe, Lizzie Q Kyle, também morreu misteriosamente. ”Havia suspeita de envenenamento”, observa a Sociedade Histórica de Oklahoma.
Além de sua própria fatia da renda do petróleo, Lizzie também havia herdado os direitos de seu primeiro marido e das duas filhas que já haviam morrido.
Dois anos depois, em 1923, um primo de Anna e sobrinho de Lizzie, Henry Roan, foi morto a tiros. Em março daquele ano, outra filha de Lizzie e irmã de Anna, Rita Smith, foi morta ao lado do marido, William E. Smith, e da empregada, Nettie Brookshire, quando sua casa foi destruída por uma explosão.
Nesse período, ocorreram mais de 20 outras mortes ligadas à tribo, também sem explicação. “Qualquer um que levantasse suspeitas e apontasse para evidências sobre o que poderia estar acontecendo recebia ameaças de morte ou era morto, como o advogado W.W. Vaughn, que foi jogado de um trem”, afirma o FBI.
De acordo com a Sociedade Histórica de Oklahoma, esses crimes raramente eram investigados, e muitos permanecem até hoje sem solução. “As mortes de algumas supostas vítimas que não apresentavam ferimentos visíveis foram simplesmente atribuídas a “indigestão”, “doenças peculiares” ou “causas desconhecidas”.”
Todos os indígenas mortos tinham direitos à renda de petróleo, que poderiam repassar a seus herdeiros. No caso de Anna, Lizzie e Rita, sua fortuna foi herdada pela única sobrevivente da família, Mollie, que era casada com um homem branco, Ernest Burkhardt.
“Mollie Burkhart estava arrasada e também afligida por uma doença misteriosa”, diz o FBI. Mais tarde, investigadores iriam descobrir que ela também estava sendo envenenada.
Marco na criação do FBI
A comunidade estava aterrorizada diante de tantas mortes, mas as investigações das autoridades locais não davam resultado. “Uma série de detetives particulares e outros investigadores não encontraram nada, e alguns até tentaram desviar esforços honestos”, diz o FBI.
Em março de 1923, o conselho tribal pediu que o governo federal enviasse detetives para ajudar a investigar os casos, e o Bureau of Investigation (BOI, precursor do FBI) mandou um grupo de agentes para o território Osage.
Na época, o BOI era uma agência ainda pequena, com menos de 20 anos de existência e agentes que não contavam com a confiança da população. As mortes dos indígenas Osage se tornariam seu primeiro grande caso de homicídio e são consideradas um marco crucial na criação do FBI.
O período coincidiu com a chegada de J. Edgar Hoover, que foi nomeado diretor do BOI com apenas 29 anos de idade e começou a transformar a cultura na agência. Ele se tornaria o primeiro diretor do FBI, onde atuou até morrer, em uma carreira de quase meio século.
Segundo o FBI, “desde o início as suspeitas apontavam para William Hale”, um pecuarista branco nascido no Texas e que se tornou personagem poderoso no território dos Osage, proprietário de bancos e lojas e detentor de grande influência política.
Hale era tio de Ernest Burkhart, o marido de Mollie. “Se Anna (a primeira vítima), sua mãe e duas irmãs morressem, todos os direitos (relativos à renda com o petróleo) passariam para Ernest, e Hale poderia assumir o controle”, diz o FBI.
“Sem intervenção, Mollie, já doente por causa do veneno (que vinha ingerindo sem saber), e Ernest provavelmente teriam morrido logo”, destaca a Sociedade Histórica de Oklahoma.
A descoberta dos culpados
No entanto, mesmo com as suspeitas, as investigações enfrentavam vários obstáculos.
“Os moradores locais não queriam falar”, diz o FBI. “Hale havia ameaçado ou subornado muitos deles, e outros simplesmente desconfiavam de estranhos. Hale também plantou pistas falsas (que confundiram os investigadores).”
O BOI então decidiu enviar ao território Osage um grupo de agentes disfarçados como vendedores de seguros ou compradores de gado, entre outras profissões. Sob o comando de Tom White, os agentes começaram aos poucos a conquistar a confiança dos moradores.
Seu foco inicial foi a morte de Henry Roan. “Ao ser interrogado, Ernest Burkhart vinculou John Ramsey ao assassinato de Roan. Ramsey, um caubói local, admitiu que havia sido contratado por Hale para matar Roan”, diz a Sociedade Histórica de Oklahoma.
Ramsey também confessou seu envolvimento no assassinato dos Smith e implicou Hale como o mandante, além de outros dois homens que haviam morrido em circunstâncias suspeitas logo após a explosão que matou o casal e a empregada.
De acordo com o FBI, os agentes conseguiram provar que Hale havia ordenado tanto os assassinatos da família de Mollie, com o objetivo de herdar seus direitos relativos ao petróleo, quanto o de Henry Roan, que tinha um seguro de vida cujo beneficiário era Hale. Além disso, ele havia mandado matar outras pessoas que ameaçavam contar o que sabiam.
Hale, Burkhart e Ramsey foram detidos em janeiro de 1926. Três meses depois, outros dois homens, Kelsie Morrison e Byron Burkhart, irmão de Ernest Burkhardt, foram indiciados pelo assassinato de Anna Brown.
Os julgamentos, em tribunais estaduais e federais, se estenderam por três anos, atraindo intensa atenção da mídia. Ernest Burkhart, Hale, Ramsey e Morrison foram sentenciados à prisão perpétua, mas alguns anos depois ganharam a liberdade.
“Burkhart acabou sendo perdoado pelo governador de Oklahoma em 1965. Hale viveu até os 87 anos de idade e está enterrado na cidade de Wichita, no Kansas”, diz o governo da nação Osage.
“Em 1925, para impedir outro Reinado do Terror, o Congresso americano aprovou uma lei proibindo pessoas que não sejam Osage de herdar os direitos (ao petróleo) de membros da tribo.”
Mas, segundo o governo Osage, cerca de 26% desses direitos continuam ainda hoje nas mãos de indivíduos e instituições de pessoas que não pertencem à tribo.