A outra grande obra de Charles Darwin que poucos conhecem (e não é sobre a evolução)
Dalia Ventura
As pessoas demonstram espanto abrindo muito os olhos e a boca e levantando as sobrancelhas? A vergonha provoca um rubor e, especialmente, a que altura do corpo se estende esse rubor? Quando um homem está indignado ou provocando, ele fica carrancudo, mantém o corpo e a cabeça erguidos, enquadra os ombros e aperta os punhos?
Essas são as três primeiras perguntas de um questionário de 17 que o naturalista e biólogo britânico Charles Darwin (1809-1882) enviou a amigos, parentes e, o mais importante, a naturalistas, missionários, comerciantes e viajantes baseados em lugares remotos.
Em 1866, Darwin havia se dedicado a uma pesquisa sobre as emoções, e durante os anos seguintes ele compilou observações sobre o tema em escala global.
O cientista estava interessado particularmente nos povos que haviam tido até então pouca comunicação com colonizadores europeus, pois seu objetivo era medir até que ponto as expressões emocionais eram culturais e convencionais ou instintivas e universais.
As respostas chegaram da Austrália, Nova Zelândia, Bornéu, Malásia, China, Calcutá (Índia), Ceilão (atual Sri Lanka), a África meridional e ocidental, América do Norte e América do Sul.
Ele, porém, também fez experimentos em casa. Durante uma série de jantares, de março a novembro de 1868, Darwin pediu a seus convidados que interpretassem as expressões de um sujeito que aparecia em 11 fotografias feitas pelo anatomista francês Guillaume-Benjamin Duchenne, para examinar o movimento dos músculos faciais.
Segundo os relatos, eles concordaram, de forma quase unânime, em suas interpretações de algumas fotografias, aquelas que descreviam medo, surpresa, alegria, tristeza e raiva.
Darwin queria determinar se havia uma série de emoções “cardeais” que eram expressadas e percebidas por todos os seres humanos da mesma maneira — e se estas eram inatas ou biológicas.
Suas pesquisas fizeram parte do livro A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, no qual descreveu sua opinião de que a expressão era uma característica que os humanos compartilhavam com os animais.
Da Terra do Fogo
O interesse de Darwin na expressão emocional já era evidente na sua famosa viagem no navio Beagle, durante a qual ficou fascinado pelos diferentes sons e gestos trocados entre povos da Terra do Fogo (extremo sul da América do Sul). Na volta, ele registrou observações em um conjunto de cadernos, depois intitulados “Metafísica sobre a Moral e Especulações sobre a Expressão”.
Em 1866, três décadas após seu regresso, ele escreveu ao oficial naval e hidrógrafo Bartolomé James Sulivan, tenente do HMS Beagle, para que pedisse ao missionário Waite Hockin Stirling que observasse “durante uns meses a expressão de semblante diante de diferentes emoções de qualquer ‘fueguino’ (habitante da Terra do Fogo), mas especialmente daqueles que não haviam tido muito contato com os europeus”.
Era, disse Darwin, uma “antiga paixão pela qual sinto muita curiosidade e sobre a qual busquei informações em vão”.
Ele também pesquisara o assunto em seu próprio ambiente. Desde antes de ter seus filhos, que ele estudava detalhadamente, juntamente com sua mulher, registrando cada observação, ele pedia a parentes e conhecidos que lhe enviassem suas observações sobre as expressões de bebês e crianças.
E seus amados animais de estimação, cachorros e gatos, também eram objeto de sua observação, assim como os de conhecidos seus, incluindo aves em gaiolas e peixes dentro de aquários.
Os animais do zoológico de Londres também eram observados — e quando a resposta não era suficiente, Darwin buscava uma maneira de encontrá-la onde fosse necessário.
Em 1868, ele escreveu, por exemplo, ao botânico e entomologista George Henry Kendrick Thwaites, superintendente dos jardins botânicos de Peradeniya (Ceilão, hoje Sri Lanka), para pedir-lhe um favor “que parecerá um dos mais estranhos já solicitados”.
Disse Darwin em sua carta: “Sir J Emerson Tennant disse que os elefantes capturados, quando gemem e gritam, choram de modo que as lágrimas brotam de seus olhos (…) Você poderia observar isso, sem confiar na memória de ninguém?”.
O britânico também manteve correspondências com vários especialistas em diversos campos, inclusive da área médica, como o cirurgião oftalmologista William Bowman, a quem lhe pediu que observasse se “quando um bebê grita violentamente, ele cerra os músculos orbiculares para comprimir os olhos e evitar que se encham de sangue”.
Ele se comunicou, ainda, com o oftalmologista holandês Franz Donders, que realizou experimentos detalhados em seu nome para determinar quais eram as fibras nervosas específicas responsáveis pela secreção de lágrimas.
Suas perguntas desafiaram os especialistas a investigar novos fenômenos e ampliaram o conhecimento fisiológico.
Como Darwin acreditava que aqueles considerados loucos compartilhavam com as crianças a incapacidade de controlar ou ocultar emoções fortes, pediu a ajuda de James Crichton Browne, o superintendente de um asilo. Browne, que tentava fazer da instituição um centro de investigação sobre a loucura e as enfermidades do cérebro, produziu descrições detalhadas de pacientes que padeciam de transtornos emocionais como medo extremo, fúria e melancolia.
Apesar de todo esse esforço, porém, Darwin esteva a ponto de jogar a toalha antes de compartilhar com o mundo o que havia pesquisado.
Quase não saiu
Depois da publicação de A Origem das Espécies, em 1859, Darwin sofreu um longo período de enfermidade que o levou ao desespero e a pensar que nunca poderia completar seu projeto de estender aos seres humanos a teoria que havia exposto — a da descendência com modificação por meio da seleção natural em animais e plantas.
Sua investigação sobre as emoções era parte desse projeto. Em um momento particularmente difícil, em 1864, ele chegou até a oferecer todo seu material a seu colega Alfred Russel Wallace: “Eu compilei algumas notas sobre o homem, mas não creio que jamais vá usá-las… Há muito mais que eu gostaria de escrever, mas não tenho forças”.
Entretanto, ele persistiu. A Origem do Homem e a Seleção Sexual foi publicado em 1871. Um ano depois, veio A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, a grande obra que muitos desconhecem.
Ambos os livros estavam conectados por um tema: o poder das pequenas modificações para, com o passar do tempo, produzir grandes objetivos.
Apesar de A Origem das Espécies ter provocado uma mudança de paradigma nas ciências da via, a noção que a obra expôs — de que, dada uma variação que ocorria aleatoriamente numa população, se ela conferisse uma vantagem de reprodução ou sobrevivência, ela tendia a se preservar, o que levava com o tempo a uma diferença — não incluía o ser humano.
Admitir a ideia da evolução (uma palavra que não figurava em A Origem das Espécies) dos humanos e que de era um processo sem fim e de que podíamos compartilhar um antepassado comum com os macacos era ir muito longe até para muitos dos que haviam aplaudido Darwin até então.
Até então acreditava-se que a racionalidade humana, a espiritualidade e a civilização eram prova da criação divina. A origem do homem era um assunto para os teólogos, não uma área legítima de estudo para os naturalistas.
No entanto, e se houvesse evidência suficiente para demonstrar que os humanos e os animais tinham muito mais em comum do que se aceitava? E a melhor prova para isso eram as emoções.
Emocionante
De fato, um dos principais argumentos contra sua teoria da evolução era de que a capacidade de sentir, expressar e interpretar as emoções era exclusiva dos humanos, o que provava que não poderiam ter nada em comum com os símios.
Essa opinião tinha um fundamento sólido: a referência sobre o rosto humano até esse momento era “Ensaios sobre a Anatomia e a Filosofia da Expressão” (1824), do anatomista, cirurgião e fisiólogo escocês Charles Bell, e em que, seguindo os princípios da teologia natural, se afirmava a existência de um sistema exclusivamente humano de músculos faciais ao serviço de uma espécie humana com uma relação única com o Criador (Deus).
Darwin baseou-se em grande medida no enfoque experimental iniciado por Bell, mas estava certo de que os sentimentos internos dos seres humanos e dos animais manifestavam-se externamente de maneira similar.
Longe de ter um conjunto de músculos faciais desenhados especialmente para comunicar sentimentos morais e espirituais superiores, Darwin acreditava que as expressões deveriam ter se desenvolvido por meio de mecanismos evolutivos comuns e que eram “uma prova diária e viva de [nossa] ascendência animal”, como explica Janet Browne em sua biografia de Darwin.
Mesmo contendo essas perigosas ideias, 9 mil exemplares de A Expressão das Emoções foram vendidos em quatro meses. Na época foi a obra mais popular daquele que, apesar de tudo, era uma das figuras mais respeitadas no mundo da filosofia natural.
Leitores ficavam encantados com as histórias de animais e as divertidas anedotas sobre as crianças, assim como a maneira de Darwin de nos envolver nos processos de investigação e no uso não apenas de ilustrações, mas também de fotografias, algo bastante novo numa publicação científica, permitido graças aos avanços em tecnologia e adaptações específicas para essa publicação.
Foi um dos primeiros exemplos de tentativas de congelar o movimento para análise. Ainda que várias imagens não se comparem aos padrões modernos de objetividade, o livro marcou o nascimento do uso de fotografias como evidência científica.
Desde então, a obra A Expressão da Emoção no Homem e nos Animais foi esquecida e desenterrada; suas teorias, atacadas e defendidas; seus experimentos, refutados e respaldados… Prova de que é uma obra fundamental.
“As descobertas [de Darwin] não são apenas historicamente interessantes, na verdade seguem guiando nosso pensamento sobre como desenvolvemos medidas para estudar enfermidades”, disse à BBC Peter Snyder, professor de neurologia na Universidade de Brown. “Ainda estamos usando o que Darwin descobriu.”
“Era realmente um gênio e teve influência em todo tipo de campo, mas uma das áreas que Darwin não é muito conhecido por influenciar é a psicologia humana.”