A revolta causada pela seca que enfraqueceu um dos impérios mais poderosos do mundo
Andrea Duffy
No fim do século 16, centenas de bandidos invadiram os campos rurais da Anatólia a cavalo, saqueando vilas, incitando a violência e desestabilizando o poder do sultão.
Quatrocentos anos depois e a algumas centenas de quilômetros de distância, onde hoje é a Síria, uma série de protestos generalizados se transformou em 2011 em uma sangrenta guerra civil que perdura até hoje.
Esses episódios sombrios da história do Mediterrâneo compartilham características-chave que servem de alerta para o futuro: ambos os eventos forçaram muitas pessoas a deixar suas casas. Da mesma forma, ambos tiveram origem na política e resultaram em consequências políticas dramáticas.
E ambos foram impulsionados por temperaturas extremas que costumam ser associadas às mudanças climáticas.
Como historiadora ambiental, pesquisei e escrevi extensivamente sobre conflitos e pressões ambientais na região do Mediterrâneo Oriental.
Embora secas severas, furacões, aumento do nível dos oceanos e migração climática possam parecer fenômenos novos e únicos do nosso tempo, crises passadas como a que acabei de mencionar, assim como outras, oferecem lições importantes sobre como as mudanças climáticas podem desestabilizar as sociedades humanas.
Vamos analisar isso mais de perto.
Seca no coração de um império
Vivemos em uma era de aquecimento global devido em grande parte às práticas humanas insustentáveis.
Geralmente conhecida como Antropoceno, esta era é amplamente considerada como tendo surgido no século 19, na esteira de outro período de grande mudança climática global chamado de Pequena Era do Gelo.
A Pequena Era do Gelo levou temperaturas mais frias do que a média, assim como um clima extremo, a várias partes do mundo.
Diferentemente do aquecimento antropogênico atual, provavelmente foi causada por fatores naturais, como a atividade vulcânica, e afetou diferentes regiões em momentos distintos, em diferentes graus e de maneiras bastante distintas.
Seu início no fim do século 16 foi particularmente notável na Anatólia, uma região predominantemente rural que chegou a ser o coração do Império Otomano e cujos limites são aproximadamente os da atual Turquia.
Tradicionalmente, grande parte de suas terras se destinava ao cultivo de grãos ou ao pasto de ovelhas e cabras. Eram uma importante fonte de alimento para a população rural, assim como para os moradores da movimentada capital otomana, Istambul (antes chamada de Constantinopla).
As duas décadas em torno do ano 1600 foram especialmente difíceis.
A Anatólia passou por alguns de seus anos mais frios e secos da história, sugerem os anéis das árvores e outros dados paleoclimatológicos.
Esse período também teve secas frequentes, assim como geadas e inundações. Ao mesmo tempo, os habitantes da região sofreram devido a uma praga animal e políticas estatais opressivas, incluindo a apreensão de grãos e carnes para enfrentar uma guerra custosa na Hungria.
As rebeliões Celali
As fracas colheitas prolongadas, a guerra e as dificuldades expuseram deficiências importantes do sistema de abastecimento otomano.
As intempéries paralisaram os esforços do Estado para distribuir suprimentos limitados de alimentos, a fome se espalhou pelo zona rural até Istambul, acompanhada por uma epidemia mortal.
Em 1596, uma série de levantes coletivos conhecidos como rebeliões Celali estouraram, se convertendo na ameaça interna mais duradoura ao poder do Estado nos seis séculos de existência do Império Otomano.
Camponeses, grupos seminômades e líderes provincianos contribuíram para esse movimento com uma onda de violência, vandalismo e instabilidade que durou até o século 17.
Com a persistência da seca, das doenças e do derramamento de sangue, o povo abandonou as fazendas e vilarejos, fugindo da Anatólia em busca de áreas mais estáveis, enquanto a fome matava muitos que não tinham recursos para partir.
O enfraquecimento do Império Otomano
Antes desse ponto, o Império Otomano havia sido um dos regimes mais poderosos do início da era moderna.
Abrangia grandes territórios na Europa, Norte da África, Oriente Médio e controlava os lugares mais sagrados do Islã, do Cristianismo e do Judaísmo.
Durante o século anterior, as tropas otomanas haviam entrado na Ásia Central para anexar grande parte da Hungria. Também avançaram para o Império dos Habsburgo, ameaçando Viena em 1529.
As rebeliões Celali deixaram consequências políticas importantes.
O governo otomano conseguiu restaurar a relativa calma nas zonas rurais da Anatólia em 1611, mas a um custo.
O controle do sultão sobre as províncias enfraqueceu irreversivelmente, e o controle interno sobre a autoridade otomana ajudou a conter seu movimento de expansão.
As rebeliões Celali fecharam a porta da “Era de Ouro” otomana, colocando este império monumental em uma espiral de descentralização, reveses militares e fraqueza administrativa que atormentaria o Estado otomano durante os três séculos restantes de sua existência.
Mudanças climáticas: um multiplicador de ameaças
Quatrocentos anos depois, o estresse ambiental voltou a coincidir com a agitação social e lançou a Síria em uma duradoura e devastadora guerra civil.
Este conflito surgiu no contexto de opressão política e do movimento da Primavera Árabe, e no final de uma das piores secas da Síria na história moderna.
A magnitude do papel do meio ambiente na guerra civil síria é difícil de se medir porque, como nas rebeliões Celali, seu impacto esteve indelevelmente ligado a pressões sociais e políticas.
Mas a combinação brutal dessas forças não pode ser ignorada. É por isso que especialistas militares hoje falam da mudança climática como um “multiplicador de ameaças”.
Entrando agora em sua segunda década, a guerra da Síria expulsou mais de 13 milhões de sírios de suas casas.
Cerca de metade se deslocou internamente, enquanto o restante buscou refúgio em países vizinhos, na Europa e mais além, intensificando consideravelmente a crise global de refugiados.
Lições para hoje e para o futuro
A região do Mediterrâneo pode ser particularmente propensa aos efeitos negativos do aquecimento global, mas essas duas histórias estão longe de ser casos isolados.
À medida que as temperaturas do planeta sobem, o clima vai dificultar cada vez mais as questões humanas, exacerbando os conflitos e impulsionando a migração.
Nos últimos anos, países de baixa altitude como Bangladesh foram devastados por enchentes, enquanto a seca afetou vidas no Chifre da África e na América Central, enviando um grande número de migrantes para outros países.
A história do Mediterrâneo oferece três lições importantes para abordar os atuais problemas ambientais globais:
— Em primeiro lugar, os efeitos negativos das mudanças climáticas recaem desproporcionalmente sobre indivíduos pobres e marginalizados, que têm menos capacidade de reagir e se adaptar;
— Em segundo lugar, os desafios ambientais tendem a afetar mais quando combinados com movimentos sociais, e os dois estão frequentemente indistintamente conectados;
— Terceiro, a mudança climática tem o potencial de impulsionar a migração e o reassentamento, estimular a violência, derrubar regimes e transformar dramaticamente as sociedades humanas em todo o mundo.
Em última análise, a mudança climática afetará a todos nós, de maneiras dramáticas, angustiantes e imprevistas. Mas, à medida que contemplamos o futuro, podemos aprender muito com nosso passado.
* Andrea Duffy é diretora de Estudos Internacionais da Universidade do Estado do Colorado, nos EUA.