A TARDE realizou cobertura histórica da Primeira Guerra Mundial

O uso das informações transmitidas por cabo submarino foi ampliado e os textos combinaram notícias curtas e reportagens com análise mais elaboradas

Tropas canadenses participaram da Batalha de Vimy Ridge em 1917
Tropas canadenses participaram da Batalha de Vimy Ridge em 1917 – 
Em agosto de 1914 começaram as batalhas da Primeira Guerra Mundial. Foi a escalada de eventos iniciados com o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, e de sua esposa, Sofia Chotek, em 28 de junho daquele ano. A Áustria, aliada da Alemanha, declarou guerra à Sérvia, nação do autor do assassinato, o estudante Gavrilo Princip. A Sérvia era aliada da Rússia. Esta última tinha os apoios de França e Inglaterra e assim outros países foram sendo arrastados para o conflito. Para realizar a cobertura da Primeira Guerra, A TARDE solidificou a sua adesão ao jornalismo moderno com o uso de tecnologias, como o sistema de cabo submarino, e o exercício do texto mais objetivo.

O cabo submarino era, como o nome indica, um sistema submerso que se conectava aos telégrafos. A forma de transmissão tem semelhanças, na forma, com a fibra ótica de hoje. O sistema chegou ao país no século XIX. Essa tecnologia já havia auxiliado na cobertura da chamada Guerra de Secessão nos EUA, no século XIX, e provocou até mudanças na forma narrativa do jornalismo. Antes muito parecido com o estilo da crônica literária, o modelo passou a priorizar a informação mais importante, depois a mais ou menos importante. Essa técnica ficou conhecida como “pirâmide invertida” por seguir o caminho contrário à literária que deixa o ápice da história para o final.

“A primeira grande guerra mundial foi um marco importante da era moderna, não apenas para o jornalismo. O período é visto como o da sociedade industrial especialmente por incorporar processos industriais e mais tecnologia na práxis de várias profissões. É o que Barbosa Lima Sobrinho, em seu livro O problema da imprensa, já chamava de “jornalismo industrial”, elencando duas tendências fortes da época: de um lado o jornal-empresa, nos países capitalistas, e, de outro o monopólio midiático dos partidos políticos, nos países socialistas. Na época, o jornalismo brasileiro passava por um momento de consolidação de novos modos de produção, com criação de jornais e parques gráficos com novas tecnologias de impressão e difusão de notícias”, explica a jornalista Ivanise Hilbig de Andrade, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Professora da Faculdade de Comunicação da Ufba, Ivanise Hilbig é diretora de Comunicação da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e pesquisadora nas áreas de análise de produtos e processos de Comunicação, Mediatização e Jornalismo Local. De acordo com a professora, o texto objetivo é resultado não apenas dos avanços tecnológicos, mas também das mudanças sociais.

“É um período em que a sociedade começa a exigir e a buscar menos opiniões e mais fatos nas páginas dos jornais. Conforme a professora Marialva Barbosa, pesquisadora em história da imprensa no Brasil, já no fim do século XIX, as correntes em defesa da liberdade de imprensa interferem na formação da opinião pública. O pós-guerra estimula, também, a consolidação de conhecimentos e liberdades democráticas. Com isso, no Brasil, são criados cursos de Jornalismo e universidades, momento em que o campo começa a elaborar seus manuais e diretrizes do que se considerava ser o ‘bom jornalismo’”, acrescenta.

A professora analisa que o jornalismo baiano segue essas tendências mundiais. A TARDE já surgiu em 1912 estabelecendo uma marca de se conectar ao que tinha de novo na forma de fazer jornal. Seu fundador, Ernesto Simões Filho (1886-1957) era um entusiasta da tecnologia moderna do setor. Assim, a cobertura com o cabo submarino, que já era usado em A TARDE para a recepção das notícias de outros Estados, passou a ser intensificada na cobertura da guerra. As reportagens sobre esse assunto não apenas traziam os dados dos últimos acontecimentos, mas também análise. Na edição de 29 de julho de 1914, a capa incluiu, além das matérias, um mapa da Sérvia e como a guerra estava prestes a começar apesar de notícias sobre propostas de mediação.

“Dizem os telegrammas de hontem que o exercito austro-huqgaro invadiu a Servia, por Mitrovitz, sem outro esclarecimento, o que induz a duvida por existir na penisula balcânica outra cidade de nome quase egual —Mitrovitza. Aquella pertence à Hungria sendo banhada pelo Sava que delimita esse paiz da Servia, estabelecendo, em parte, a sua fronteira norte. Se a invasão deu-se por esse ponto, o exercito austro-hungáro visa Belgrado, capital da Servia, que se acha a pequena distancia e cuja conquista se nos a figura bem fácil por ella, ser, além de mal fortificada, sugeita ao bombardeio de Seline, cidade húngara que lhe fica quasi fronteiriça”. (A TARDE, 30/07/1914, Capa).

O que era expectativa se tornou certeza nos primeiros dias de agosto com ataques alemães a territórios belgas e a contraofensiva franco-britânica. Os telegramas, via o sistema de cabos, fizeram a cobertura de A TARDE ficar mais próxima da linguagem direta, que se consolidou como modelo do jornalismo brasileiro moderno a partir da escola objetiva. O contraponto é a linguagem subjetiva que permite estilos, como o jornalismo literário também chamado de não ficção, interpretativo e, mais recentemente, contextual. Nestes casos se permite reportagens mais próximas das crônicas literárias, em gêneros híbridos que combinam informação e análise mais robusta.

O jornal manteve a cobertura da guerra até 1918, quando ela foi encerrada. O anúncio do fim foi destacado em um conteúdo especial com análises e as últimas notícias destacando a derrota da Alemanha marcada pela rendição do kaiser, Guilherme II.

“Urgente— Telegramma de Amsterdam para a United Press informa que o Kaiser está a caminho das linhas inglesas a fim de se entregar à prisão”. (A TARDE, 12/11/1918, Capa).

Guilherme II (1859-1941) é apontado como o responsável por ter levado a Alemanha a ser a protagonista do início dos conflitos. Ele assumiu uma postura belicista ao pressionar a Áustria para declarar guerra à Sérvia. Com a derrota da Alemanha, Guilherme II fugiu para a Holanda e renunciou. A Rússia estava sob o comando do czar Nicolau II (1868-1918); a Inglaterra tinha Herbert Henry Asquit (1852-1928) como primeiro-ministro e depois David Lloyd George (1863-1945) assumiu este posto. O rei inglês era Jorge V (1865-1936). A França estava no governo de Raymond Poincaré (1860-1934).

A edição de A TARDE com as notícias do fim da Primeira Guerra, em 12 de novembro de 1918, trouxe também as notícias que tiveram um desdobramento para a eclosão do segundo conflito mundial décadas mais tarde: o desmembramento da Alemanha e as condições que o país derrotado foi obrigado a assumir com a rendição.

Modelo do documento em que eram registradas as notícias que chegavam pelos sistemas de transmissão como o telégrafo
Modelo do documento em que eram registradas as notícias que chegavam pelos sistemas de transmissão como o telégrafo | Foto: Cedoc A TARDE

Campanha

Além da adesão aos modernos sistemas de tecnologia de informação e comunicação do período, outra característica que marca a trajetória de A TARDE esteve evidente durante a cobertura da Primeira Guerra Mundial realizada pelo jornal: as campanhas de interesse público.

Em maio de 1918, A TARDE passou a acompanhar a parada em Salvador da esquadra enviada pelo governo do presidente brasileiro Venceslau Brás (1868-1966) em apoio ao bloco liderado por França, Inglaterra e Rússia na Primeira Guerra. A TARDE publicou textos de exaltação aos marinheiros e organizou uma missa que foi celebrada na Igreja do Bonfim com a presidência do arcebispo de Salvador, Dom Jerônimo Tomé da Silva (1849-1924). Este episódio foi resgatado em uma reportagem publicada em 7 de março de 1988, no Caderno 2 de A TARDE. Os detalhes mostram a imponência do evento.

“Na Catedral, depois da entrada solene do primaz, chegaram o governador António Moniz, seus secretários, o intendente da capital que, recebidos pela Redação de A TARDE, foram levados até o cadeiral, junto ao altar-mor. Chegaram, em seguida, oficiais e marinheiros da divisão. Pela desaparecida Rua do Colégio, da qual somente resta um lado, apareceu primeiramente a guarnição do Bahia, com sua bandeira que é levada ao altar-mor. À medida que surgiam as demais guarnições, suas bandeiras se postavam, um momento, à porta principal do templo, com guarda de honra de baionetas caladas”. (A TARDE, 07/03/1988, Caderno 2, p.8).

Após o encerramento da missa, houve um desfile até o Teatro Politeama onde a divisão de combatentes brasileiros foi homenageada com um almoço. Ernesto Simões Filho foi um dos oradores durante a segunda parte das homenagens. Os registros desse evento ganharam destaque na edição de 20 de maio de 1918, na capa de A TARDE com cinco imagens dos detalhes da cerimônia, incluindo o cortejo pelas ruas do Centro Histórico.

Uma rápida análise dessa cobertura da Primeira Guerra identifica os principais pontos que fizeram A TARDE estabelecer marcos históricos no jornalismo da Bahia com destaque para o uso do cabo submarino, cuja saga de chegada ao Estado foi contada em uma reportagem de 1915. O resgate ultrapassa a memória institucional, pois está relacionado à da comunicação social na Bahia. Por isso considero importante transcrever o texto completo deste importante registro:

“Foi em 31 de dezembro de 1874 que, nesta capital teve logar, no edifício da Associação Commercial, em presença de grande número de espectadores, a inauguração dos trabalhos do cabo submarino do telegrapho electrico, que põe em communicação rápida esta capital com todo o Universo. Em 11 de dezembro de 1870 aqui aportou o vapor inglês Hooper, que conduzia o cabo tendo immergido 1300 miilhas de fio electrico, entre o Pará e Pernambuco, e 431 milhas de Pernambuco a esta capital, ao todo 1731 milhas, seguindo depois o dito vapor para submergir a 3ª secção do cabo até o Rio de Janeiro. O cabo é, pois, anniversariante, hoje, com quarenta e um annos de idade”. (A TARDE, 31/12/1915, Capa).

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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