A terrível vida dos escravizados que eram obrigados a carregar fezes dos senhores
Conhecidos como escravos tigre, eles transportavam tonéis repletos de excrementos
Antes do saneamento básico e dos programas de higiene do governo, os grandes centros do Brasil, ainda a latrina, tinham como base do despejo de dejetos sanitários. Sem privadas, até os mais ricos defecavam e urinavam numa insólita casinha ou em penicos, que eram esvaziados diariamente e preenchiam nojentos tonéis ou valas presentes no lado de fora da casa.
Todavia, por trás desse sistema pouco higiênico, uma figura intimamente associada ao escravismo urbano era obrigada a desempenhar o papel: era o escravo responsável pela recolha dos dejetos, apelidado de “tigre”. Por mais de trezentos anos, eles recolheram as fezes dos senhores e despejavam no mar ou num rio próximo.
Os escravizados tinham que carregar nas costas grandes tonéis repletos de cocô, sendo que muitos deles, geralmente, eram sujos ou não suportavam a quantidade depositada, fazendo com que o explorado fosse atingido pelo excremento. Como consequência, muitos deles eram marcados por gotas ou lastros de fezes na pele, resultando em listras (que podiam até marcar por conta da acidez). Assim nasceu o apelido “tigre”.
Ou seja, muitos dos escravos, agredidos com a sujeira e a amônia dos dejetos, ficavam com marcas brancas permanentes na pele. Os “tigrados” receberam o nome de maneira pejorativa. Para se ter ideia, as pessoas se afastavam desses prisioneiros nas ruas, por conta do mau cheiro e da reputação, causando forte impotência e isolamento, e prováveis abalos psicológicos.
Ao mesmo tempo, existem teorias onde é afirmado que, apesar da indigna função, os escravos tigre ainda não estavam no final das hierarquias mentais criadas entre os negros em cativeiro. Na situação de refém, os explorados muitas vezes buscavam refúgios em superioridades, mesmo que quase nulas, em relação a outros. Os tigres estavam mal, mas para muitos deles, estavam melhor que os escravizados que catavam o cocô e os colocavam nos tonéis.
Isso dava uma ideia de “maior dignidade”. Era melhor carregar do que lidar com o bruto e, pelo menos, junto às fezes dos senhores, estavam seus próprios excrementos. Ele carregava o próprio dejeto, também, argumento que era usado para manter o mínimo de sanidade. Porém, essa teoria está ligada a um circuito informal de hipóteses romantizadas sobre o período, sendo difícil atestar em uma pesquisa documental.
Segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro, em fala à BBC, esse “eram escravos ou escravos de aluguel que, geralmente, eram destacados para esse tipo de trabalho”. Como eram proibidas as fossas no Rio de Janeiro, capital imperial, muitas famílias endinheiradas tinham ao menos um desses trabalhadores, que eram usados nesse oficio unicamente até a década de 1860. Para o estudioso, por mais que seja a impressão, dada a pobreza desses trabalhadores, o escravo “não era uma mão de obra barata”.
Inclusive, já nos estudos de Gilberto Freyre, revelados em Casa Grande & Senzala, se entendia que o trabalho dos escravos tigre era usado de forma extensiva numa rede de dominação que pleiteava todas as esferas da vida na sociedade senhorial, até a vida íntima sanitária. Segundo o sociólogo, a extensão do uso desse modo de trabalho retardou a criação de redes mais higiênicas de sanitarismo nas cidades.
Escravo tigre em pintura de Debret / Crédito: Domínio Público
A presença desses escravizados começou a se diluir na capital a partir dos anos 1860: a cidade passou a receber grandes obras de saneamento por iniciativa de Dom Pedro II, que trazia novas tecnologias de fora. Muitas dessas práticas sanitaristas eram, inclusive, novas na Europa, pois cidades como Londres e Paris também eram bem pouco higiênicas até o fim do século 19.
Cidades, mesmo capitais, mais periféricas mantiveram esse ofício por um longo tempo. É o caso de São Paulo e Recife, que tiveram tigres até os anos 1880. A partir do início das campanhas pelo saneamento básico, começou-se a atrelar o emprego dos escravos ao atraso, como se fossem eles e não a escravidão (apesar de as políticas abolicionistas estarem em auge na época) um obstáculo ao interesse público.