Em 1900, o deputado federal George Henry White, republicano da Carolina do Norte e único membro negro do Congresso americano na época, apresentou na Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara Federal) um projeto de lei sem precedentes para que linchamentos fossem processados como crimes federais.
Na virada do século passado, poucas décadas depois da abolição da escravidão nos Estados Unidos e em um período de grande violência racial, linchamentos eram investigados e processados por autoridades locais e estaduais, e a grande maioria dos autores ficava impune.
Apesar de aplaudida pelos demais deputados, a proposta de White não foi adiante. Desde então, quase 200 outros projetos de lei anti-linchamento foram apresentados ao Congresso ao longo dos anos, mas todos acabaram engavetados ou derrubados.
Mas nesta quarta-feira, 120 anos depois da proposta de White, a Câmara aprovou um projeto de lei do deputado Bobby Rush, democrata do Estado de Illinois, que torna linchamento um crime de ódio sob a lei federal. O texto recebeu 410 votos a favor e quatro votos contra.
No ano passado, o Senado já havia aprovado por unanimidade uma proposta semelhante, de autoria dos únicos três senadores negros entre os cem integrantes da Casa, os democratas Cory Booker (Nova Jersey) e Kamala Harris (Califórnia) e o republicano Tim Scott (Carolina do Sul).
A passagem do projeto na Câmara abre caminho para que a lei seja enviada ao presidente Donald Trump. A expectativa é de que seja sancionada ainda em fevereiro, que nos Estados Unidos marca o Mês da História Negra.
Mais de 4 mil linchamentos
De acordo com a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), uma das principais organizações de direitos civis dos Estados Unidos, foram registrados 4.743 linchamentos no país no período entre 1882 e 1968. Desses, 3.446 tiveram como vítimas pessoas negras.
Segundo a associação, entre as vítimas brancas, muitas foram linchadas por ajudar negros. A maioria dos linchamentos ocorreu no Sul do país, que até a década de 1960 vivia sob rígidas leis de segregação racial. Calcula-se que 99% dos autores ficaram impunes.
Antes de seu longo discurso diante da Câmara dos Representantes, White havia passado dois anos pesquisando linchamentos ao redor do país. Em 1898, o deputado havia testemunhado um massacre na cidade de Wilmington, em seu Estado, Carolina do Norte, onde uma multidão de supremacistas brancos matou pelo menos 60 moradores negros e expulsou centenas de outros. Ninguém foi punido pelas mortes.
Depois do fracasso da proposta de White, episódios de violência racial continuaram a ocorrer no país, com mais de cem linchamentos registrados a cada ano. Vítimas eram mortas a tiros, incendiadas, mutiladas e torturadas, geralmente diante de centenas de pessoas. Muitas vezes, os planos de linchamento chegavam a ser anunciados em jornais locais.
Alguns episódios tinham uma única vítima, e podiam ser desencadeados por motivos banais. Outros envolviam dezenas ou até centenas de mortos. Era comum que os crimes ocorressem diante da polícia, sem intervenção. Segundo historiadores, muitas autoridades locais na época, especialmente no Sul, eram integrantes do grupo supremacista branco Ku Klux Klan.
Manobras do Senado
Em 1917, uma multidão de moradores brancos matou pelo menos 39 homens, mulheres e crianças negros em East St. Louis, em Illinois, em um massacre que durou três dias. Nove brancos morreram no confronto, que ocorreu durante uma greve trabalhista e em meio à tensão racial na cidade, que havia visto sua população negra triplicar em apenas uma década, o que levou à maior competição por empregos.
Testemunhas relatam terem visto casas incendiadas, pessoas arrancadas à força de bondes, outras mortas a tiros ao tentar fugir cruzando o rio a nado e vítimas penduradas em postes de luz. Alguns acreditam que o número de negros mortos pode ter passado de 100. Muitos moradores negros fugiram da cidade depois do massacre.
O episódio em East St. Louis, localizada na divisa com o Estado Missouri, levou o deputado federal republicano Leonidas Dyer, que representava um distrito vizinho, a apresentar um projeto de lei em 1918 que punia com multa e prisão autoridades que se recusassem a proteger pessoas de linchamentos e a processar os culpados, e oferecia ajuda financeira a famílias afetadas. Os autores do crime seriam julgados em tribunais federais.
Os esforços para aprovar a legislação tinham grande participação da NAACP, que naquele ano já havia publicado um levantamento sobre linchamentos no país. Uma proposta baseada na iniciativa de Dyer acabou sendo aprovada pela Câmara em 1922, mas não foi adiante no Senado.
Entre 1920 e 1940, a Câmara chegou a aprovar outros dois projetos semelhantes, mas as propostas não avançaram no Senado. Para evitar que os crimes fossem investigados e julgados pelo governo federal, políticos do Sul, que vivia sob segregação racial, alegavam que uma lei nesse sentido violaria os direitos dos Estados.
O argumento dos opositores dessas medidas era o de que os Estados eram capazes de resolver o problema por conta própria. Em alguns casos, autoridades chegavam a aprovar leis locais, alegando que, por isso, não havia necessidade de legislação federal. Essas leis, porém, eram ignoradas.
As sucessivas manobras de obstrução no Senado ao longo de décadas chegaram a motivar, em 2005, um pedido formal de desculpas da Casa por seus repetidos fracassos em aprovar uma lei federal que tornasse linchamento crime.
Na época, a senadora democrata Mary Landrieu, de Louisiana, disse que “talvez não haja nenhuma outra injustiça na história americana pela qual o Senado tenha tanta responsabilidade”.
Emmett Till
A lei aprovada pela Câmara nesta quarta-feira recebeu o nome de Emmett Till, adolescente negro de 14 anos cujo linchamento em 1955, no Mississippi, chocou o país e impulsionou o movimento por direitos civis nos Estados Unidos.
Bobby Rush representa o distrito em Chicago onde a família de Till morava e falou em entrevistas sobre o impacto que as imagens do corpo desfigurado do jovem em um caixão aberto, publicadas pela revista Jet Magazine, tiveram sobre ele, que tinha oito anos de idade na época.
A mãe de Till, Mamie Till Mobley, havia exigido que o filho fosse velado em caixão aberto, para que o mundo visse seu corpo mutilado, resultado da violência racial que assolava o país. Os dois homens brancos acusados do crime foram absolvidos.
Till foi morto quando visitava familiares na zona rural do Mississippi, depois que a mulher do proprietário de um mercado local o acusou de ter assobiado, falado obscenidades e a agarrado pela cintura. Quatro dias após o incidente, seu marido, Roy Bryant, e seu meio-irmão, J.W. Milam, sequestraram, espancaram e torturaram o jovem, antes de matá-lo com um tiro na cabeça e jogar seu corpo em um rio.
Depois de serem absolvidos por um júri composto apenas de homens brancos, os acusados confessaram o crime em entrevista a uma revista, mas morreram sem ser punidos. Anos depois, Carolyn Donham, a mulher que havia acusado Till, voltou atrás em uma entrevista e disse que o adolescente não tinha feito avanços verbais ou físicos contra ela.
Mais do que gesto simbólico
Décadas depois do auge do terror racial nos Estados Unidos, linchamentos ficaram no passado, mas analistas afirmam que a aprovação da lei não deve ser encarada apenas como um gesto simbólico.
“É o reconhecimento do tipo de terror racial a que negros, e também outras pessoas de cor e pessoas pobres, foram sujeitados por tantas décadas”, diz à BBC News Brasil a historiadora Brenda Stevenson, especialista em conflitos raciais e professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles.
Stevenson observa que o conhecimento sobre esse capítulo da história americana pode ajudar as pessoas a entender melhor o legado do racismo no país e compreender temas atuais como injustiça racial, problemas no sistema de justiça criminal e a luta de comunidades marginalizadas.
“Faz com que mais pessoas entendam a história do país e, portanto, entendam melhor o que está acontecendo na sociedade atualmente.”
Mesmo que linchamentos não sejam mais comuns, os Estados Unidos ainda registram crimes de motivação racial, como o massacre de nove fiéis negros em uma igreja em Charleston, na Carolina do Sul, em 2015.
“De Charlottesville a El Paso, ainda estamos sendo confrontados com o mesmo racismo violento e ódio que tiraram a vida de Emmett e de tantos outros”, disse Rush, o autor da proposta, referindo-se a uma manifestação de supremacistas brancos realizada em 2017 e um massacre a tiros ocorrido no ano passado, em que latinos eram a maioria das vítimas.
Stevenson afirma que o fato de tanta gente dizer que a lei é apenas simbólica pode ter sido um dos motivos pelos quais pode finalmente ser aprovada agora. “Porque as pessoas que se opõem à igualdade racial sentem que isso é algo que podem apoiar, porque não vai fazer diferença”, ressalta.
“Mas eu acho que vai fazer diferença. Porque quanto mais conhecimento tivermos da história de opressão racial neste país, mais seremos capazes de incorporar esse conhecimento em nossos projetos para o futuro, para eliminar o problema.”