A visita ao Brasil de Marie Curie, única mulher a ganhar duas vezes o Nobel
No dia 18 de agosto de 1926, Guimarães Rosa, Juscelino Kubitschek e Pedro Nava, com idades entre 18 e 24 anos, assistiram a uma palestra sobre radioatividade e sua aplicação no tratamento do câncer no auditório da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte.
Não era uma palestra qualquer. Naquele dia, a UFMG recebeu a visita ilustre de Marie Curie, então com 59 anos. A cientista polonesa naturalizada francesa ganhou duas vezes o mais importante prêmio científico do planeta, o Nobel — o primeiro, de física, em 1903, e o segundo, de química, em 1911.
Até hoje, apenas cinco cientistas, de um total de 954, ganharam dois prêmios Nobel. São eles: Marie Curie (física, 1903, e química, 1911), Linus Carl Pauling (química, 1954, e paz, 1962), John Bardeen (física, 1956 e 1972), Frederick Sanger (química, 1958 e 1980) e Barry Sharpless (química, 2001 e 2022).
Uma curiosidade: o recordista em premiações é o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Fundado em 1863 pelo filantropo suíço Henry Dunant, ganhou três vezes o Nobel da Paz: em 1917, 1944 e 1963.
“Era pequena de estatura. Andava de vestido negro, saia arrastando. Apresentou-se sempre com a mesma roupa, mal penteada, mãos vermelhas maltratadas e vi suas botinas de salto baixo tendo abotoadas só o botão de cima”, descreveu o médico e escritor Pedro Nava em Beira-Mar (1978), o quarto volume de suas memórias.
“Mas, ensinando, transfigurava-se e as suas palavras nosso anfiteatro iluminou-se ainda mais — como se passassem por suas paredes raios urânicos, centelhas radioativas e faíscas ferromagnéticas”.
Uma celebridade pop
A visita de Marie Skłodowska-Curie ao Brasil durou 44 dias: de 15 de julho a 28 de agosto de 1926.
Chegou ao Rio de Janeiro, a capital do país, vinda de Marselha, na França. Veio a bordo do Pincio, um navio de luxo movido a vapor, em companhia da primogênita, Irène, que exercia a função de secretária particular.
À época, Marie Curie já era viúva do físico francês Pierre Curie. Seu marido morreu atropelado por uma carruagem no dia 19 de abril de 1906, ao atravessar uma rua movimentada de Paris, a Dauphine.
Mãe e filha foram recebidas no Brasil por uma comissão formada, entre outros notáveis, pelos médicos Juliano Moreira, um dos pioneiros da psiquiatria no Brasil, e Roquette Pinto, um dos pais da radiodifusão.
Durante sua visita, Marie Curie foi acompanhada por Bertha Lutz, então presidente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e uma das maiores ativistas na luta pelos direitos políticos das mulheres brasileiras.
“Madame Curie chegou ao Brasil como uma estrela. Havia sempre um vagão de luxo reservado para ela e sua filha. Era tratada como um ser divino”, afirma João Pedro Braga, pós-doutor em Química pela Universidade de Princeton e coautor, ao lado de Cássius Klay Nascimento, de A Visita de Marie Curie ao Brasil (2017).
“Nos locais que frequentou, as pessoas usavam as mais elegantes vestimentas – a última moda em Paris. Já Marie Curie usava, como observou Pedro Nava, um ‘costume sebento’. Ela sempre foi uma mulher simples”.
Por uma série de doze conferências, Marie Curie ganhou 75 mil francos (o equivalente hoje a 419 mil reais) — 25 mil francos do governo francês, antes da viagem, e 50 mil do governo brasileiro, ao chegar ao Rio.
Cansadas da viagem de navio, que durou 13 dias, Marie e Irène seguiram direto para o Hotel dos Estrangeiros, no Flamengo. Enquanto Marie se deitou para descansar — a cientista já sentia os efeitos nocivos da prolongada exposição à radiação —, Irène vestiu um maiô e tomou banho de mar.
Em 17 de julho, Marie Curie escreveu uma carta para Ève, a caçula que permanecera em Paris. Entre outras coisas, elogiou o quarto de hotel, que classificou de “muito bonito”, e reclamou do barulho dos bondes.
Apesar de sua aversão à imprensa, desde que tabloides franceses expuseram seu caso amoroso com um homem casado, Paul Langevin, a cientista concedeu entrevista ao jornal O Paiz.
A primeira das doze conferências aconteceu no dia 20 de julho, no salão nobre da Escola Politécnica, e foi transmitida pela Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a primeira emissora do Brasil, inaugurada três anos antes.
Muitos alunos, por falta de espaço, não puderam assistir à apresentação. Houve um princípio de tumulto e, por essa razão, as conferências seguintes foram transferidas para o andar térreo da instituição.
Entre uma conferência e outra, Marie Curie conheceu pontos turísticos da cidade, como o Pão de Açúcar, o Corcovado e o Jardim Botânico, e visitou municípios vizinhos, como Petrópolis, Vassouras e Barra do Piraí.
Do Rio, Marie Curie seguiu para São Paulo. Na capital paulista, permaneceu três dias: 13, 14 e 15 de agosto.
Hospedada no Hotel Terminus, na esquina da Brigadeiro Tobias com a Washington Luís, deu sua palestra em um dos anfiteatros da Faculdade de Medicina.
Em São Paulo, visitou o Butantan, viajou até Águas de Lindóia e assistiu a um baile em sua homenagem.
A última etapa da visita ocorreu em Belo Horizonte, entre os dias 16 e 18 de agosto.
Na capital mineira, hospedou-se no Grande Hotel Internacional, onde hoje funciona o Edifício Arcângelo Maletta, e deu palestra na Faculdade de Medicina.
Visitou as cidades de Sabará e Lagoa Santa, distantes 19 e 35 quilômetros da capital mineira.
Uma das fotos tiradas durante sua visita ao Brasil foi em frente ao Instituto de Rádio de Belo Horizonte, que pertence hoje ao Hospital das Clínicas da UFMG.
Marie e Irène Curie voltaram ao Rio no dia 18 de agosto e seguiram para Marselha, dez dias depois, no dia 28.
Além do Brasil, Marie Curie visitou também a Bélgica, a Espanha e a Tchecoslováquia. Nos Estados Unidos, chegou a ser recebida na Casa Branca pelo então presidente Herbert Hoover, em 1929.
No mesmo ano de sua visita ao Brasil, assistiu ao casamento da filha, Irène, com Frédéric Joliot.
Juntos, os dois ganharam um Nobel de química, em 1935, pela radioatividade artificial. Foi o terceiro Nobel que a família Curie levou para casa.
“No lançamento de nosso livro em polonês, os netos do casal Curie, Hélène e Pierre, contaram que o pai, Frédéric, sempre questionou, em tom de brincadeira, o fato de que, bem no ano de seu casamento, a futura noiva, Irène, permaneceu tanto tempo no Brasil”, diz João Pedro Braga.
Proibido para mulheres
Maria Salomea Sklodowska, a futura Madame Curie, nasceu no dia 7 de novembro de 1867, em Varsóvia, na Polônia. Era a caçula de cinco irmãos: Sofia, Joseph, Bronia e Helena. Seus pais eram professores. O pai, Wladyslaw, dava aulas de física e matemática, e a mãe, Bronislawa, de música.
Em 1874, aos sete anos, Maria perdeu a irmã mais velha, Sofia, vítima de tifo. E, em 1876, aos dez, a mãe, de tuberculose.
No Liceu Russo de Varsóvia, por ser a primeira da turma, conquistou medalha de ouro. Mas, naquela época, as instituições de ensino superior fechavam suas portas para as mulheres.
Se quisessem continuar estudando, tinham que se mudar para outro país. E foi o que Maria e a irmã, Bronia, fizeram. Foram estudar na França.
Mas, por falta de grana, foi uma de cada vez: Bronia, primeiro; Maria, depois. Para ajudar a pagar a faculdade da irmã, Maria trabalhou como governanta de uma família de Szczuk, a 100 quilômetros de Varsóvia. Aos 18 anos, dava aulas particulares para as filhas de um rico fazendeiro.
Em 1891, Bronia concluiu o curso de medicina. Casada, convidou Maria para morar com ela e o marido, Casimir, que conheceu na faculdade. A futura Madame Curie tinha 23 anos.
Em Paris, Maria começou a estudar na Universidade de Sorbonne. Era uma das 23 estudantes matriculadas num universo de dois mil alunos.
Maria Sklodowska conquistou o primeiro lugar no curso de física em 1893 e o segundo no de matemática, em 1894. Logo, foi convidada por um professor, Gabriel Lippmann, para trabalhar em seu laboratório.
Foi lá também, na capital francesa, que conheceu seu futuro marido, o físico Pierre Curie.
Os dois se casaram em 26 de julho de 1895 e tiveram duas filhas: Irène e Ève. A caçula foi a única da família que não seguiu a carreira científica. Em vez de química ou física, trabalhou com música. Foi pianista.
Durante a semana, Marie e Pierre trabalhavam em seus laboratórios. Aos sábados e domingos, passeavam de bicicleta.
Duas vezes Nobel
O primeiro Nobel veio em 1903, há exatos 120 anos. Pierre e Marie Curie ganharam o prêmio, concedido pela Academia Real de Ciências da Suécia, juntamente com Henri Becquerel. Foi Becquerel quem descobriu que minérios de urânio emitiam uma estranha forma de radiação.
Os dois não puderam comparecer à premiação em Estocolmo, na Suécia. Já sentiam os primeiros efeitos da exposição excessiva à radiação. Pierre sentia tantas dores nas pernas que, às vezes, chegava a passar dias na cama, sem conseguir se levantar. Já as mãos doíam tanto que mal conseguia escrever.
A morte do marido, em 1906, abalou profundamente Marie Curie.
“Ela saía para o jardim debaixo de chuva e lá se sentava, com os cotovelos apoiados nos joelhos, a cabeça entre as mãos, como se estivesse esperando pelo companheiro que nunca mais haveria de voltar”, relatou Ève na biografia Madame Curie, publicada em 1937.
Em 1911, Marie Curie ganhou o segundo Nobel. Ela descobriu, sozinha, dois elementos radioativos: polônio (batizado em homenagem à sua terra natal) e rádio.
Sua pesquisa levou quatro longos anos e, neste período, chegou a perder sete quilos. O laboratório em que trabalhava não passava de um galpão abandonado, com goteiras no telhado e chão de terra.
No verão, os pesquisadores morriam de calor. No inverno, congelavam de frio.
“Quando o Nobel procurou Pierre Curie para indicá-lo junto com Becquerel, ele recusou o prêmio. A comissão, então, voltou atrás e a ‘nomeou’. Foi o único prêmio vencido por um casal e não por cientistas”, observa Gabriel Pugliese Cardoso, doutor em Ciência Social pela Universidade de São Paulo (USP) e autor da dissertação de mestrado “O Caso Marie Curie — A Radioatividade e a Subversão do Gênero”.
“No discurso de entrega, Marie Curie foi mais uma vez tratada como auxiliar do marido”.
Após ter sido a primeira mulher a ganhar o Nobel, Marie Curie tornou-se, também, a primeira cientista a ganhar duas vezes o famoso prêmio.
O comitê de química do Nobel sugeriu que a cientista recusasse a premiação devido a seu affair com Paul Langevin, ex-aluno de seu falecido marido. Embora Marie fosse viúva, Paul era casado e tinha quatro filhos.
“O prêmio foi concedido pela descoberta do rádio e do polônio”, respondeu a cientista em carta ao comitê do Nobel. “Não há conexão entre meu trabalho científico e minha vida privada”.
“Marie Curie foi perseguida pelo núcleo mais conservador da sociedade. Alguns grupos reacionários diziam que ela deveria ser expulsa da França”, afirma João Pedro Braga. “Um fato interessante é que a neta de Marie Curie, Hélène, se casou com o neto de Paul Langevin, Michel”.
Ao longo da carreira, Marie Curie se acostumou a ser a primeira em muitas coisas. Entre outras proezas, tornou-se a primeira mulher da França a receber o título de doutora; a primeira professora a dar aula na Universidade de Sorbonne; e a primeira mulher a ser sepultada no Panteão de Paris.
Por outro lado, foi recusada na Academia de Ciências da França — a maior parte dos membros se opôs à eleição de uma mulher. Nem ela, nem sua filha, Irène, ingressaram na instituição.
Em compensação, Pierre, seu marido; Frédéric, seu genro; e até Pierre Joliot-Curie, seu neto, foram admitidos.
Curiosamente, a primeira mulher eleita para a Academia de Ciências da França, em 1961, foi aluna de Marie Curie: Marguerite Catherine Perey.
“Marie Curie é uma inspiração para mulheres que fazem ciência. Foi uma pessoa fora do comum que enfrentou dificuldades pelo simples fato de ser mulher. Apesar da dedicação e empenho demonstrados, sofreu misoginia e xenofobia”, afirma a socióloga e historiadora Cristina Araripe Ferreira, doutora em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz).
“No Brasil, apenas 19% dos membros da Academia Brasileira de Ciências são mulheres. Houve mudanças, mas estamos longe da tão desejada equidade de gênero. Felizmente, as mulheres não aceitam mais o silêncio das instituições, nem convivem com colegas que naturalizam as desigualdades”.
Uma heroína no front
Em 1914, Marie Curie se ofereceu para prestar serviços durante a Primeira Guerra Mundial.
Incansável, recolheu doações, recrutou voluntários, capacitou enfermeiros.
Persuadiu fabricantes de automóveis a transformar vinte modelos em unidades móveis, equipadas com aparelhos de raio-x. Seu objetivo era socorrer feridos nos campos de batalha. As ambulâncias ganharam o apelido de “petites Curies” (“Pequenas Curies”, em francês).
Seu primeiro paciente tinha balas no braço, nos quadris e na cabeça, e estilhaços de bomba por todo o corpo.
Com a ajuda de um médico, Marie e Iréne colocaram o rapaz em cima de uma maca e, com um aparelho de raios-x, localizaram os projéteis.
Só no primeiro dia, radiografaram mais de 30 soldados. Muitos deles, graças aos raios-x, não precisaram ter seus braços e pernas amputados.
“A maior contribuição de Marie Curie à ciência foi a descoberta de novos elementos radioativos”, afirma o físico Roberto de Andrade Martins, doutor em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Descobrir um elemento novo não é algo simples. ‘Ah, alguém entrou na mata e, por acaso, descobriu um fóssil novo’. Não é isso. O trabalho dela não teve nada de sorte. É uma visão equivocada de ciência. Cientistas são movidos por hipóteses e conjecturas. Ciência não é feita apenas de acertos. Há muita tentativa e erro”.
Tragédia em família
Exausta e doente, Marie Curie queixava-se, entre outros sintomas, de perda de visão e zumbido no ouvido. Em maio de 1934, sentiu-se mal e foi para casa. Nunca mais retornou ao laboratório.
A princípio, os médicos suspeitaram de tuberculose. Foi mandada para um sanatório, em companhia de Ève. De nada adiantou. Marie Curie tinha 66 anos quando morreu, no dia 4 de julho de 1934. A causa da morte foi anemia aplástica.
Irène Curie morreu no dia 17 de março de 1956, aos 58 anos, e Ève, em 22 de outubro de 2007, aos 102.
Tanto Irène quanto Frédéric morreram em decorrência da exposição excessiva à radiação.