Entre agosto e novembro de 1884, um quadrinho exposto por 100 dias no prédio da antiga Academia Imperial de Belas Artes, no centro do Rio de Janeiro, retratava uma cena incomum.
Um mulher, de costas, sentada em frente a um cavalete que sustentava uma tela, conversava com uma mulher mais velha.
Rodeada por quadros e esculturas, a profissional da arte era o tema de Um Canto do Meu Ateliê. Mais que isso, era um autorretrato da autora, Abigail de Andrade.
Naquela época, as mulheres não podiam estudar na Academia Imperial de Belas Artes. Só homens eram admitidos na instituição mais prestigiosa para o ensino da arte no país, fundada por Dom João 6º.
“Por conta dessa situação institucional, os críticos consideravam as mulheres sempre ‘amadoras’, porque elas não podiam se profissionalizar na instituição”, destaca a pesquisadora Ana Paula Simioni Cavalcanti, que estudou a artista em sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP).
O termo era usado por críticos importantes como Luiz Gonzaga Duque Estrada e refletia a ideia de que o grande papel das mulheres estava circunscrito à esfera doméstica e que qualquer coisa fora desses limites, inclusive a pintura e a escultura, era secundário, um hobby.
E foi como “amadora” que a jovem, então com 20 anos, foi premiada na Exposição Geral de 1884.
As exposições de belas artes eram grandes eventos sociais no Segundo Império.
Realizadas desde 1840, elas surgiram a partir de duas mostras organizadas em 1829 e 1830 pelo pintor francês Jean Baptiste Debret, membro da missão artística francesa que chegara ao Brasil em 1816 e professor da Academia Imperial de Belas Artes.
Foram 26 ao todo, com a participação de 516 artistas. A última, em 1884.
Dois dos cinco trabalhos que Abigail apresentou naquele ano levaram a medalha de ouro de 1º grau: O Cesto de Compras e Um Canto do Meu Ateliê.
Aquela era a primeira vez que o júri especializado dava o mais alto reconhecimento da mostra a uma mulher.
Um século ‘esquecida’
A trajetória da artista, apesar de intensa, seria curta.
Ela morreu cinco anos depois, em Paris, vítima de tuberculose, semanas após dar à luz o segundo filho.
E por quase um século — por uma série de razões que incluem sua polêmica biografia —, o nome de Abigail de Andrade foi sendo gradualmente apagado da história da arte brasileira.
Até que, em 1989, um livro chamado 150 anos de Pintura no Brasil resgata a vida e a obra da artista.
O trabalho era do pesquisador Donato Mello Junior, feito com base no acervo do megacolecionador Sérgio Fadel, que era dono de alguns quadros assinados por Abigail.
O livro ganhou uma exposição, que amplificou a “redescoberta tardia”.
“Abigail, uma artista visionária sobre cuja obra pouco se sabe, exibia já naquela época uma técnica pré-modernista similar ao que de mais consistente surgia então nas artes plásticas europeias”, dizia uma nota no jornal O Globo em 23 de junho daquele ano.
Foi por meio dessa notícia que a museóloga e restauradora de arte Míriam Andréa de Oliveira soube da existência da pintora.
Há anos ela procurava uma artista daquele período — o tema de sua dissertação de mestrado era as mulheres na arte no Segundo Império.
“Eu já estava quase no final, (quase) para entregar o trabalho, e não achava quadro nenhum”, conta.
“Já discutia com minha orientadora porque não apareciam quadros de mulheres, porque tinha ficado apagado na história.”
Até que um colecionador para quem ela trabalhava comentou sobre a nota no jornal.
“Fui na mostra e fiquei enlouquecida com a estética da obra dela.”
Da elite do café ao romance com um abolicionista
Abigail de Andrade nasceu no interior do Rio de Janeiro, na cidade de Vassouras, em 1864.
Supõe-se que sua família fosse abastada e estivesse ligada à lavoura de café, já que aquela região concentrou a maior produção cafeeira do mundo entre 1850 e 1900.
“Do ponto de vista social, ela (a cultura do café) gerou uma nova aristocracia, os barões do Vale do Paraíba”, diz Míriam Andréa na dissertação.
Reconstituir o pouco que se sabe sobre a biografia da pintora não foi fácil. A pesquisadora viajou a Vassouras, mas não encontrou registros sobre a família na cidade.
As informações vieram de especialistas como Donato Mello Junior, autor de 150 Anos de Pintura no Brasil, e do museólogo Arnaldo Machado, que a presenteou com uma das poucas fotos que existem de Abigail de Andrade — e que inspirou Um Canto do Meu Ateliê.
Não se sabe de onde veio o interesse da jovem pelas artes e nem o que a levou a deixar a casa dos pais e resolver morar com uma tia na capital para estudar no Liceu de Artes e Ofícios.
Para a pesquisadora Ana Paula Cavalcanti Simioni, a mudança é um dos indicativos de que na jovem existia “um desejo efetivo de se tornar uma profissional da arte no campo da pintura — o que não era uma coisa impossível no Brasil, mas era muito rara”.
“Ainda mais supondo que ela era de elite. O Liceu de Artes e Ofícios não era um lugar de formação para as elites.”
O nome de Abigail de Andrade aparece em uma exposição organizada pelo liceu em 1882.
Um ano antes, a escola passara a aceitar mulheres entre os alunos.
A abertura de vagas para o sexo feminino 25 anos depois da fundação da escola, entretanto, não foi exatamente um projeto de democratização do acesso à educação.
A ideia era qualificar as mulheres pobres para que elas pudessem contribuir para o orçamento doméstico.
“A aceitação da formação profissional das mulheres não era uma questão de gênero, não havia uma valorização da intelectualização em si. O que tais discursos afirmavam era a necessidade de colaborar para que a mulher pobre obtivesse recursos”, diz a pesquisadora no livro Profissão Artista – Pintoras e Escultoras Acadêmicas Brasileiras.
Assim, a formação no liceu era “eclética”, incluindo temas como “chapelaria” e “prendas do lar”.
A grade dispunha de poucos cursos mais técnicos ligados às chamadas “artes superiores”.
Os estudantes de desenho pouco aprendiam sobre anatomia, por exemplo — disciplina contemplada, por sua vez, no curso da Academia Imperial de Belas Artes, que até então não aceitava matrículas de mulheres.
Na análise formal que faz da obra de Abigail, Míriam Andréa destaca a “informação precária de anatomia” muitas vezes presente nas figuras humanas pintadas pela artista.
“Ela também não tinha acesso a isso, não podia fazer aula de modelos vivos.”
Assim, provavelmente em busca de uma formação complementar, Abigail decidiu ter aulas também em um ateliê particular.
Seus mestres eram o fotógrafo Insley Pacheco e o desenhista e pintor Angelo Agostini.
“Até onde eu sei foi a única aluna que eles tiveram”, diz Ana Paula.
A dupla era conhecida pela preferência por temas do cotidiano, o chamado realismo social, que começava a ser valorizado na época como símbolo da pintura moderna — em oposição à pintura histórica.
As temáticas “menores” também estiveram no centro da obra de Abigail.
Ela pintou cenas do dia a dia do campo em obras como Estendendo a Roupa e Paisagem, que retrata um cenário bucólico empobrecido, em que um homem divide o espaço em uma rua esburacada de terra com vacas e galinhas.
A hora do pão, por sua vez, registra uma cena do cotidiano de um bairro pobre do Rio de Janeiro: a hora em que o vendedor ambulante de pão chegava à rua e gritava para a clientela.
Retratar as periferias da capital era algo que fugia dos padrões recorrentes no período.
Datado de 1888, aquele foi um de seus últimos quadros.
Pouco tempo depois, Abigail deu à luz sua primeira filha, Angelina Agostini, fruto de um romance clandestino — em uma época em que não havia divórcio no Brasil — que teve com seu professor, Angelo Agostini.
Sob grande pressão social, ambos se mudam às pressas para a França.
“Ele era um homem muito mais velho, casado, com filhos, e era uma figura pública muito importante, o editor da Revista Illustrada, abolicionista convicto, republicano”, destaca Ana Paula.
“A Abigail foi muito intimidada”, acrescenta a museóloga Míriam Andréa.
Foi no navio rumo à Europa, em 1888, que a jovem provavelmente contraiu tuberculose, diz a pesquisadora.
Em Paris, Abigail ainda pintou algumas telas. E chegou a participar, ao lado da pernambucana Alice Santiago, da Exposição Universal de 1889.
Uma das estruturas criadas especialmente para a feira, a “porta de entrada” para o Champ de Mars, acabou se tornando o maior símbolo da cidade: a torre Eiffel.
A pintora morreria pouco depois, meses após dar à luz o segundo filho. Desolado, Ângelo Agostini volta para o Rio de Janeiro com a filha Angelina — que mais tarde também tornaria pintora.
O pai entrega a menina à meia-irmã, Laura Alvim, que a criou como filha.
As razões para o ‘esquecimento’
Para Ana Paula, pelo menos quatro razões explicam porque o nome de Abigail foi sendo esquecido com o tempo.
Além de ela ter morrido precocemente e, por isso, ter deixado poucos trabalhos, todas as telas das quais se tem conhecimento estão nas mãos de colecionadores particulares.
Há ainda o fato de que, por muito tempo, a arte produzida no século 19 no Brasil foi pouco pesquisada.
“A gente passou boa parte do século 20 sob o triunfo do modernismo e, depois, do concretismo e do neoconcretismo. Então, é como se tudo o que fosse feito o século 19 fosse desinteressante”, explica a cientista social.
Finalmente, há ainda o fato de a pintora ter sido considerada pela crítica especializada da época como “amadora”.
“Foi muito difícil para mim convencer os pesquisadores (que hoje se dedicam a estudar) do século 19 de que o Gonzaga Duque não estava sempre certo.”
Apesar de o crítico ser considerado “o nosso Baudelaire” pela academia, segundo ela, cada vez mais se aceita a visão de que muito do que ele escreveu refletia em parte as concepções de época.
“É uma visão de que ele não era um homem infalível, era um homem do seu tempo.”
O direito das mulheres à educação
No ano da morte de Abigail, o Brasil se tornou uma república.
Em 1893, a Academia Imperial de Belas Artes, rebatizada como Academia Nacional de Belas Artes, passou a aceitar matrículas de mulheres.
Mas aquilo não significava uma democratização completa do ensino para ambos os gêneros.
Como conta Ana Paula em Profissão Artista – Pintoras e Escultoras Acadêmicas Brasileiras, o currículo “diferenciado” ao qual as meninas eram submetidas no ensino secundário dificultava a preparação para as provas cada vez mais rigorosas que selecionavam os estudantes da instituição.
Naquela época, muitos currículos ainda enfatizavam as aulas de “prendas do lar” para as meninas em detrimento dos conteúdos científicos.
O direito das mulheres pela educação, escreve a pesquisadora, foi conquistado de forma paulatina, sem um movimento organizado que levantasse essas bandeiras.
Histórias como as de Abigail eram casos isolados.
Foi o oposto do que aconteceu em países como a França e a Inglaterra, por exemplo, onde grupos de mulheres lutaram pelo direito de acesso à educação superior — inclusive nas escolas de arte — e, posteriormente, ao voto.