Alice no País das Arbitrariedades

Por Aldir Guedes Soriano

Repentinamente, a paz pode ser substituída pelo conflito, pela guerra ou por alguma forma de totalitarismo. O excesso de regulamentação legal pode pavimentar o caminho para a erosão das nossas liberdades de pensar ou de dizer alguma coisa.”

Alice no País das Maravilhas, obra-prima da literatura inglesa, é um dos livros que mais me incomodam. Mergulhar nesse universo surrealista envolvendo sonhos, pesadelos, fantasias, delírios insanos e psicodélicos me irrita como se tivesse grãos de areia nos olhos. Por outro lado, assim como as ostras do mar produzem as suas pérolas em torno dos irritantes grãos de areia, talvez a presente releitura do mencionado livro também possa produzir algum resultado satisfatório. Como seres humanos, somos todos vulneráveis e estamos sujeitos a pesadelos, comédias e tragédias.

Lembre você leitor amigo que Alice, em sua aventura no estranho país das maravilhas, se depara com o seu próprio julgamento, marcado pela inversão da lógica e das regras jurídicas do mundo real. Inusitadamente, a rainha, autoridade tirânica desse insano lugar, assim determinou: “— Primeiro a execução, depois a sentença.” Isso é o contrário do que normalmente ocorre nos diversos países democráticos onde primeiro vem a sentença e depois a execução.

A inversão das regras e da lógica, que, obviamente, acontece tão somente no país das maravilhas, cria um ambiente de medo, insegurança, dor e sofrimento. Nesse contexto fantasioso, podemos imaginar que pessoas indiciadas por algum crime poderiam ser arbitrariamente presas até mesmo sem sentença condenatória ou mesmo inexistindo acusação formal. Meros indiciados poderiam ser apenados com o cancelamento de salários e aposentadorias ou, ainda, com a retenção de seus passaportes. Também podemos supor que as penas poderiam ser impostas por autoridade incompetente, atuando como delegado de polícia, promotor de justiça e juiz. Isso é pura ficção, que acabei de acrescentar ao livro de Lewis Carroll. Tais arbitrariedades, evidentemente, jamais aconteceriam em um país democrático como o nosso em que o princípio da legalidade é sagrado.

No lendário país das maravilhas, o magistrado poderia antecipar a sentença ou voto para os meios de comunicação antes da denúncia ou julgamento. O advogado do cidadão indiciado, sem acesso aos autos do sigiloso inquérito, teria que se informar mediante a mídia, abastecida por informações convenientemente fornecidas pelo tribunal. O magistrado também poderia continuar negando o acesso da defesa aos autos mesmo no curso do processo. Essas coisas somente ocorrem na ficção. Apesar de absurdas, servem para demonstrar a importância da ampla defesa e do devido processo legal. Felizmente podemos contar com inúmeras garantias constitucionais do mundo real.

Na nossa realidade democrática, se alguém ousasse violar regras constitucionais de competência atuando como juiz e vítima, certamente seria duramente criticado pela imprensa livre e independente. As nossas associações de advogados e de magistrados não admitiriam esse nível de desatino autoritário. Esse tipo de desvio ético e legal também não seria tolerado pelo Congresso Nacional.

Violações de direitos humanos com o encarceramento em massa de idosos, mulheres e crianças, seguido por maus tratos e tortura foram observadas tão-somente nas bárbaras eras do nazismo alemão e, também, nas revoluções comunistas. Encarceramentos em massa sob perfídia e com graves violações dos direitos humanos jamais aconteceriam no território nacional, evidentemente. Ademais, não temos no nosso meio presos políticos nem jornalistas exilados, parlamentares indiciados por crime de opinião, nem qualquer tipo de censura das redes sociais. Não temos perfis de usuários de redes sociais derrubados ou desmonetizados, nem muito menos pessoas comuns asil adas em outros países. Jamais tivemos uma rede social banida ou sequer temporariamente suspensa.

Em 2009, juristas brasileiros protestaram em face da perseguição religiosa e o encarceramento de 36 bahá’ís no Irã, sem acusação formal. Se algo assim ocorresse no Brasil, legiões de ativistas e de associações de direitos humanos se levantariam imediatamente. É de dar dó quando pensamos nos nossos ociosos e entediados defensores de direitos humanos. Que marasmo; eles devem se contentar em denunciar as repetidas violações que ocorrem em ditaduras distantes como China, Venezuela, Cuba, Irã e Coreia do Norte. Não há registro recente de perseguições políticas ou religiosas no Brasil.

Felizmente, vivemos em um Estado Democrático de Direito. Nossas instituições preservam fielmente as garantias consagradas na Constituição de 1988. Assim, podemos dormir em paz. Acordaremos em segurança porque estamos em uma democracia. Conforme a Constituição, temos liberdade de expressão. Temos o direito de associação e de reunião pacífica. “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão em virtude da lei.” “Não há crime sem prévia cominação legal.” Os nossos magistrados são guardiões do devido processo legal; são discretos; falam apenas nos autos; não se intrometem em assuntos políticos; são imparciais; respeitam o princípio do juiz natural; levam a jurisprudência da Corte a sério, não atuam casuisticamente e sob nenhuma hipótese violariam a liberdade de expressão do cidadão. Jamais veríamos nossos ministros antecipando os seus julgamentos ou votos diante da televisão aberta.

No livro mencionado, a rainha determina a execução de Alice por decapitação.  Nesse trágico momento, a menina desperta do sono ao ouvir a voz da irmã. Já experimentei algo parecido. Em uma bela manhã do século passado, eu sonhava que a minha cidade estava sofrendo um ataque aéreo. Enquanto o bombardeio prosseguia, escutava as explosões das bombas. Era 02 de setembro, dia do aniversário da cidade, e o que eu estava ouvindo, na realidade, era a salva comemorativa de tiros. No momento de maior temor ouvi a voz de minha mãe: “acorda, hoje você deve ir ao desfile na avenida.” Que alívio! Como é bom acordar de um pesadelo.

Mesmo vivendo em um país tropical e edílico como o nosso, não podemos ficar totalmente descuidados. Repentinamente, a paz pode ser substituída pelo conflito, pela guerra ou por alguma forma de totalitarismo. O excesso de regulamentação legal pode pavimentar o caminho para a erosão das nossas liberdades de pensar ou de dizer alguma coisa. A propósito disso, vale lembrar Thomas Jefferson para quem “o preço da liberdade é a sua eterna vigilância.” Precisamos permanecer despertos!


[1] Aldir Guedes Soriano –  escritor, advogado e jurista com destacada atuação em direitos humanos e liberdade religiosa. Possui publicações relevantes sobre direito constitucional e liberdades individuais. Foi o primeiro presidente da Academia Venceslauense de Letras & ndash; AVL.

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