Amigo secreto: livro de Rubens Paiva é leitura obrigatória

‘Ainda Estou Aqui’ transita entre os porões da ditadura e os labirintos da memória

 

SÃO PAULO, SP, BRASIL, 21-08-2014: Literatura: o escritor Marcelo Rubens Paiva, durante entrevista sobre o regime miliar, em São Paulo (SP). A participação emocionada de Marcelo Rubens Paiva na Festa Literária Internacional de Paraty deste ano de 2014, na mesa sobre os 50 anos da ditadura, comoveu o público, reverberou nas redes sociais e se tornou alvo de polêmica, após manifestações agressivas de Roger, líder da banda Ultraje a Rigor, na internet. O escritor, filho do deputado Rubens Paiva, morto sob tortura em 1971, havia citado o músico, no debate em Paraty, como exemplo de quem desconhece a ditadura. No Twitter, Roger reagiu: "Minha família não foi perseguida pela ditadura porque não estava fazendo merda". Escritor, jornalista, roteirista e dramaturgo, tuiteiro, blogueiro, com tração das quatro rodas. Assim Rubens Paiva, nascido em 1959 em São Paulo, se define. Publicou 11 romances, entre os quais o best-seller "Feliz Ano Velho" (1982). Nesta entrevista, ele, que também é dramaturgo e colunista do jornal "O Estado de S. Paulo", fala da ditadura e de seus ecos. (Foto: Fabio Braga/Folhapress)

Maria Carolina Maia

Não se trata aqui de embarcar na campanha que ganhou força nesta semana nas redes sociais, em que, grosso modo, mediante o uso da hashtag #meuamigosecreto, mulheres denunciavam conhecidos que tiveram contra elas atitudes machistas. Mas tão somente de aproveitar a tradicional confraternização de fim de ano para indicar um livro que deveria ser leitura obrigatória para quem passou por 2015: Ainda Estou Aqui (Alfaguara), o segundo volume de memórias de Marcelo Rubens Paiva, que nele se dedica a falar tanto do pai, o deputado federal Rubens Paiva, cassado e assassinado pela ditadura militar, como da mãe, a advogada Eunice Paiva, defensora de direitos humanos – com destaque para os indígenas.

O título é válido para ambos. Para Rubens Paiva, pois a sua morte levou décadas para ser confirmada pelo Estado e ainda reverbera entre a família, que por anos lidou com as dificuldades advindas das negativas oficiais – com o marido dado como foragido, Eunice enfrentava obstáculos para adquirir um imóvel em São Paulo, por exemplo. “Os familiares dos desaparecidos viviam num limbo civil, além de emocional (temos ou não um pai, uma mãe, um filho, uma filha ou netos vivos?). A burocracia engessava atividades corriqueiras. Não sabíamos nem a data em que deveríamos decretar como o dia da morte. (…) Meu pai foi preso no dia 20 de janeiro. Estava morto na noite do 21 para o 22 de janeiro. Para nós, da família, a data da sua morte é 20 de janeiro. Só recentemente soubemos que ele morreu entre 21 e 22”, escreve Marcelo.

E para Eunice, que, hoje com Alzheimer, está boa parte do tempo alheia, mas ainda se faz presente em lampejos de raciocínio e na própria figura física, como a dizer, “Ainda estou aqui”. “Ficar ao seu lado é como ficar ao lado de um bebê, mas não é. Ela está lá. Sua história está com ela, foi vivida por ela. (…) Ela pegou o porta-retratos com lugar de destaque na sala com a foto do meu filho de um ano e o abraçou com delicadeza. Minha coisinha, disse. Todo dia que ela o vê, diz: – É a coisinha mais linda que existe.”

rubens-paiva-originalRubens Paiva, o filho, que se aventurou pelo terreno da memória com Feliz Ano Velho(Objetiva), título de 1982 em que narra o acidente que o deixou tetraplégico, aqui se faz coadjuvante, além de um narrador capaz de desenrolar com fluência o que deseja contar. O livro transita o tempo todo entre os porões da ditadura e os labirintos da memória, onde os pais permanecem presos. Para a surpresa do leitor, a trajetória de Eunice, para muitos apenas a viúva de Rubens Paiva, embora a família tenha sempre evitado a autocomiseração como vítima da ditadura, se mostra tão interessante quanto a do marido morto pelos militares. Determinada, a dona-de-casa se formou em direito, assumiu causas importantes e, fonte de confiança de diversos amigos, que a procuravam para resolver questões pessoais, reuniu pecúlio suficiente para viver com a aposentadoria com dignidade – e foi então que a doença a pegou de surpresa, e injustamente. Sua história pode ser lida como um bom romance.

A história de Rubens Paiva, o pai, já é mais conhecida, mas adquire tons sombrios com a descrição da tortura aplicada contra o ex-deputado do PTB que teve o mandato cassado em 1962 e, levado de casa em um dia de praia em 1971, nunca mais veria os filhos. É em parte por essa descrição que o livro se torna necessário, ainda mais num ano em que a volta da ditadura se tornou pauta de descontentes nas ruas, como se a solução para o desgoverno do Brasil passasse pelo atraso do autoritarismo.

A partir do depoimento de ex-presos políticas, como Cecília Viveiros de Castro e Marilene Corona Franco, que foram detidas juntamente com Rubens Paiva, mas sobreviveram aos horrores da ditadura, o livro reconta as horas absurdas vividas pelo ex-deputado. As cenas são fortes.

“Quando chegamos ao chamado ‘aparelhão’ na Barão de Mesquita e o carro parou, colocaram uma toalha me cobrindo o rosto e CAPA_ainda estou aqui.inddo paletó na cabeça do dr. Rubens, e nos fizeram descer. Eu estava aterrorizada, já conhecia de fama o DOI das prisões de meu filho, e com dificuldades para respirar devido ao capuz preto que me colocaram. Não sei quanto tempo ali fiquei; sei que nesta mesma tarde fui fotografada e fichada e estivemos muito tempo em pé”, descreve Cecília. “Como não aguentasse ficar sem me apoiar na parede, acabaram me colocando numa cadeira. Eu ouvia os gritos do Rubens Paiva sendo interrogado e de vez em quando passava alguém e batia no meu ouvido ou puxava meu cabelo ou falava bem perto: ‘Vá se preparando está ouvindo? Está chegando a sua vez…’ Parecia um pesadelo, os gritos: ‘Eu não aguento mais’; ‘Eu não sei de nada’, ‘Não façam isso’ do torturado e música de vitrola com o máximo de som e de vez em quando os xingamentos e expressões vulgares que me diziam ao ouvido.”

(…)

“O mesmo fato foi presenciado pelo ex-preso político Edson de Medeiros, que aguardava no térreo do prédio sua transferência para um quartel no bairro do Leblon. (…) Lembra-se perfeitamente de que os agentes colocaram uma música de Roberto Carlos – Jesus Cristo – em alto volume, possivelmente com o objetivo de abafar os gritos. Algum tempo depois viu de sua cela passarem dois recrutas puxando pelos pés um homem forte e gordo, com mais de cem quilos. Esse homem foi colocado na cela ao lado e gemia muito. Chamou também a atenção do depoente o fato de que ele não aparentava ser um estudante, pois já era um homem de meia-idade. (…) Algumas horas depois, o depoente viu alguns agentes retirarem da cela um corpo inerte e totalmente coberto.”

Há passagens ainda mais pesadas, como a que narra como o torturador de Rubens Paiva pulou sobre o abdômen do ex-deputado até levá-lo a uma hemorragia fatal. São trechos duros de ler, mas necessários.Ainda Estou Aqui pode ser considerada uma leitura fácil, no sentido de fluida. Mas é ao mesmo tempo uma leitura difícil de se empreender. E necessária. Bastante necessária. Anote para o seu amigo secreto: Ainda Estou Aqui é dos melhores lançamentos de 2015.

Fonte: Veja

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