Aos 82 anos, Prentice de Carvalho decora Salvador com obras de azulejaria
É possível que você já tenha passado em frente ao modesto sobrado de número 70, localizado no Porto dos Tainheiros, na Ribeira, e sequer desconfiado que ali mora um ‘bom velhinho’. De fato, nesse ponto da cidade, nosso olhar se volta para o mar, onde barquinhos adornam as águas quentes e calmas da Península Itapagipana, e chamam mais atenção do que a fachada da casa desgastada pelo tempo.
Nela, vive o artista visual Prentice de Carvalho, de 82 anos. Lá também funciona seu ateliê, onde trabalha, de forma devotada, de domingo a domingo, pintando azulejos. Apesar de uma queda que levou, a saúde física e mental está em dia. E pintar nem é mais trabalho, e sim propósito de vida. “Se eu parar de produzir, eu morro”, me conta logo no começo da nossa conversa.
O sobrado antigo, que abriga a casa e o ateliê do artista, é uma atração à parte Foto: Paula Fróes/ Correio |
Adentrar no sobrado construído há 162 anos é uma experiência interessante. A quantidade de obras, ele não sabe precisar, mas são centenas de peças de azulejaria e cerâmica penduradas nas paredes. Objetos atuais e de épocas passadas, quando ainda pintava telas e retratos. Com o tempo, o taco de madeira que utilizava como base foi substituído pelo azulejo, que passou a chamar mais atenção dos clientes. Seu trabalho retrata símbolos religiosos e da nossa cultura, como santos, orixás, mestres de capoeira, baianas de acarajé, igrejas e pontos turísticos.
E, mesmo não sendo assim um Papai Noel clássico, o artista nos presenteia com intervenções de azulejaria por diversos locais da capital baiana. As placas de cerâmica com os nomes e os números das ruas do Pelourinho; o monumento ao lado da Igreja da Boa Viagem; o painel de Nossa Senhora e outro da Via Sacra, na Igreja Mãe Rainha (Stiep); o painel na entrada do Cemitério da Quinta dos Lázaros, bem como retratos em lápides; painéis nos Alagados; o painel com caravanas no Shopping da Liberdade; a numeração da tradicional loja A Primavera, na Praça da Sé; o painel de Nossa Senhora das Graças, na Igreja da Graça; o painel de Santa Bárbara, na Fundação José Silveira, na Ribeira. Tem também o chafariz da comunidade de Gameleira, na Ilha de Itaparica. E essas são apenas algumas das obras assinadas por Prentice de Carvalho aqui pertinho de nós. Encomendas particulares são incontáveis, instaladas em prédios, casas e apartamentos.
Novela
O artista baiano garante que já recebeu presidentes, ministros, xeiques árabes, gente de todas as partes do mundo em sua casa-ateliê. Além dos visitantes brasileiros, o livro de presença registra mensagens de turistas da Itália, Espanha, Portugal, França, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, Colômbia, Japão e até da Ucrânia. Pessoas que vem em busca de comprar peças, mas também de conhecer o senhor que adora contar causos e histórias da sua vida.
Como a da época da escola, no colégio Teixeira de Freitas, onde não se saía bem nas outras disciplinas, mas, na de desenho, era fera. “Desenhava para os colegas e conquistava muitas namoradas assim”, lembra, aos risos, espiando a reação de dona Valdeci de Oliver Carvalho, a companheira de seis décadas.
O artista com a esposa, dona Valdeci, 78, companheira da vida Foto: Paula Fróes/Correio |
A simpática senhora é um dos braços direitos de Prentice. Ao atravessar a porta do sobrado, me deparo com os dois sentados, lado a lado, numa cena frugal, mas cheia de significados de companheirismo. Quituteira de mão cheia, ela deixou de fazer salgados de festa e passou a ajudar o marido no ateliê. Ali, atravessa o dia realizando vendas, recebendo clientes e conversando com quem entra e sai. “Você já mostrou pra ela as fotos da novela?”.
A novela a qual dona Valdeci se refere é Segundo Sol (2018), que tinha a capital baiana – mais especificamente, o bairro do Santo Antônio Além do Carmo – como um dos cenários. A azulejaria do bar do Dodô, personagem de José de Abreu, foi produzida pelo artista da Ribeira. O material era levado para a locação nos estúdios da Globo, no Rio.
Pedido de Irmã Dulce
Prentice de Carvalho vive quase recluso e só costuma sair para comprar tintas, pincéis, azulejos e material de trabalho em geral. “Pouca gente me conhece como artista até aqui no bairro. Falo com todo mundo da vizinhança, mas não sou de sair. Sou reservado. Sempre fui mais de observar, desde criança”, explica.
Na infância, seus pais, uma professora e um dentista, já se preocupavam com o filho introvertido. À medida que ele foi crescendo, passaram a se preocupar com seu interesse pela pintura. Tinham medo que o rapaz virasse mendigo: “Meu pai queria que eu colocasse um anel de doutor no dedo, mas não cheguei a me formar. Entrei na Escola de Belas Artes por uma porta e saí pela outra. Os professores diziam que eu não tinha o que aprender lá. Já sabia tudo”, conta Prentice, cujo nome dado pela mãe significa, ironicamente, ‘aprendiz’ em inglês.
“Meu pai queria que eu colocasse um anel de doutor no dedo, mas não cheguei a me formar. Entrei na Escola de Belas Artes por uma porta e saí pela outra. Os professores diziam que eu não tinha o que aprender lá. Já sabia tudo”
Autodidata com orgulho, o artista foi (e ainda é) bastante requisitado para dar aulas e ministrar oficinas, embora esteja sempre negando: “Faço as coisas do meu jeito. Não tenho isso de querer ensinar nada a ninguém, não”. Também nunca expôs seu trabalho, e, mesmo com os convites para participar de mostras artísticas lá fora, ele sequer cruzou os limites geográficos da Bahia: “O mais longe que já cheguei foi na Linha Verde, antes de Sergipe. Não gosto de sair de casa”.
Talvez o isolamento auto imposto tenha dificultado que mais pessoas conhecessem seu trabalho. Apesar de ter convivido com nomes das artes plásticas como Carybé (1911-1997), Mário Cravo Jr. (1923-2018) e até o ceramista alemão radicado em Salvador, Udo Knoff (1912-1994), com quem trabalhou, Prentice de Carvalho não teve a mesma projeção dos seus contemporâneos.
Ainda assim, algumas das suas obras ganharam o Brasil e o mundo. Na Paraíba, o jazigo do ex-presidente Epitácio Pessoa (1865-1942) possui um painel de azulejos produzido por ele. No Ceará, o artista baiano acredita que a residência de Ciro Gomes também tenha uma peça sua, levada por uma equipe do ex-candidato à presidência. Em Dallas, EUA, o painel intitulado A Dança dos Orixás decora a casa de um cliente. Na Itália, o restaurante de um empresário exibe uma parede de cerâmica pintada em homenagem ao imperador romano Magno Máximo (335-388). Para o Vaticano, rumou o retrato do Papa João Paulo II (1920-2005), encomendado por freiras italianas.
Painel A Dança dos Orixás, que foi feito para um cliente em Dallas, EUA Foto: Paula Fróes/Correio |
Dois dos trabalhos que mais lhe dão alegria, no entanto, estão aqui em Salvador. São os painéis de Santo Antônio cuidando dos enfermos, na entrada do hospital das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), no Bonfim, e de Santa Rita de Cássia, no mesmo prédio. “Não cobrei nada por eles. A própria Irmã Dulce veio aqui no ateliê me pedir, lembro como se fosse ontem. O pagamento foi uma carteirinha com acesso livre ao hospital, que nunca usei e acho que nem vale mais. Essas são as minhas obras que considero mais importantes, porque quem solicitou hoje em dia é uma santa”.
Painel de Santa Rita de Cássia, no hospital de Irmã Dulce, no Bonfim, é um dos seus maiores orgulhos Foto: Reprodução |
“A própria Irmã Dulce veio aqui no ateliê me pedir, lembro como se fosse ontem. O pagamento foi uma carteirinha com acesso livre ao hospital, que nunca usei e acho que nem vale mais”
Não me amarro a dinheiro
Prentice sabe tudo sobre santos, mas não se considera um homem religioso. Ainda assim, acredita em Deus e se vale de princípios cristãos como a humildade e o desapego aos bens materiais. Ao passear pelo casarão onde vive com três dos sete filhos (cinco são da relação com dona Valdeci e duas do relacionamento anterior), logo se vê que o senhor teimoso, de riso fácil e olhar manso não acumulou riqueza com o ofício iniciado há décadas.
Bastante jovem, ele administrou uma fábrica de cerâmica em Dias D´Ávila e desenhou para a Nestlé e para blocos tradicionais de Carnaval, como Internacionais, Ilê Aiyê e Corujas. Também coordenou a sessão de Feiras do Instituto Mauá, nos anos de 1980. Em uma das feiras de artesanato realizadas no Porto da Barra, garante que presenciou os primeiros shows da nossa futura Ministra da Cultura. “Ouvi muito Margareth Menezes cantar ‘Faraó’. Eu assinei a liberação para que ela se apresentasse com a banda nos eventos do Mauá”, conta.
“Ouvi muito Margareth Menezes cantar ‘Faraó’. Eu assinei a liberação para que ela se apresentasse com a banda nos eventos do Mauá”
No ateliê, Prentice divide espaço com o filho Raimundo Oliver de Carvalho, 50, que é designer gráfico. Outras duas filhas, Agla, 53, e Débora, 58, também desenvolvem trabalhos artísticos, pintando camisetas e bonecas. A admiração pela figura paterna é visível: “Meu pai me ensinou o amor à arte, o compromisso com o trabalho, a curiosidade”, revela Raimundo.
Os preços das peças expostas no local variam. Azulejos pequenos custam R$ 35; médios, R$ 50; obras mais elaboradas podem chegar a R$ 7 mil. Se ele for com a sua cara, é capaz que você até saia de lá com um presente. “Minha filha, tem gente que vê as peças, gosta, não tem como me pagar e eu acabo ficando com pena e dando de graça”, entrega.
Pelo retrato de uma moça chorando, cuja imagem se assemelha à de Nossa Senhora, conta ter recebido de um xeique árabe a proposta de R$ 150 mil. Recusou. “Essa eu não vendo por nada”, diz, justificando a atitude como apego emocional à obra.
Um xeique árabe chegou a oferecer R$ 150 mil pelo retrato de uma moça, que se assemelha a Nossa Senhora Foto: Reprodução |
“Gostaria muito de abrir um museu com meu nome, para deixar como legado para minha família e para que as futuras gerações conheçam minha arte”
“Nunca quis ser rico. Vivo dignamente. A coisa mais bonita que a gente tem na vida são as amizades, a consciência tranquila, o bate-papo com os amigos, como esse que a gente tá tendo aqui”, afirma, sem demagogia. Deixa escapar que tem um único sonho: “Gostaria muito de abrir um museu com meu nome, para deixar como legado para minha família e para que as futuras gerações conheçam minha arte”.
Para visitação
O ateliê funciona todos os dias, das 8h30 às 18h
Porto dos Tainheiros, 70, Ribeira
3316-3376
Exposição apresenta azulejaria contemporânea no Museu Udo Knoff
“A Bahia tem uma uma história muito rica e próxima com a azulejaria. Nós somos o maior repositório de azulejos do Brasil”: quem garante é Renata Alencar, coordenadora do Museu Udo Knoff, localizado no Pelourinho, e o primeiro museu de azulejaria e cerâmica do país. “A gente tem um museu de azulejo a céu aberto para ser descoberto, visitado e preservado”, ressalta.
Tela do artista plástico Max Urban faz parte de exposição no Museu Udo Knoff, no Pelourinho Foto: Divulgação |
Para ver mais de perto a beleza da pintura em azulejos, o público pode conferir no espaço a exposição ‘O que não foi achado deve estar bem escondido – O (des)caminho da arte da azulejaria contemporânea em Salvador’. Uma parceria com a Universidade Federal da Bahia (Ufba), a mostra apresenta obras dos artistas plásticos Bel Borba, Max Urban, Wagner Lacerda, Jenner Augusto e Axoloti Keropi. A visitação é gratuita e vai até 10 de janeiro, de terça a sexta, das 10h às 16h; e aos sábados, das 12h às 16h. É obrigatório o uso de máscara.
“Nós somos o maior repositório de azulejos do Brasil. A gente tem um museu de azulejo a céu aberto para ser descoberto, visitado e preservado”
Administrado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), o Museu Udo Knoff de Azulejaria e Cerâmica foi fundado em 1994, para preservar e expor o rico acervo organizado pelo ceramista e pesquisador alemão Horst Udo Knoff, que morou na capital baiana.
Além das obras de autoria de Udo, o local reúne azulejos portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, holandeses e italianos, datados dos séculos XVI ao XX, e criações de artistas locais como Jenner Augusto, Genaro de Carvalho, Sante Scaldaferri, Calasans Neto e Carybé.
Origem do azulejo
A origem do azulejo é egípcia, mas foram os árabes que levaram a técnica à Península Ibérica, formada por Portugal, Espanha, Andorra, Gibraltar e uma pequena porção do território da França. A palavra azulejo vem de “al-zulaich”, que quer dizer algo como pedrinha polida. A partir de 1498, os azulejos começaram a ser feitos em Portugal e, aos poucos, foram ganhando um estilo característico, com desenhos mais realistas e grande riqueza de detalhes. A azulejaria portuguesa, uma das mais famosas do mundo, fez uma opção preferencial pelo azul. Foram esses os azulejos trazidos para o Brasil pelos colonizadores.
Fonte: Correio