As mulheres que provavam a comida de Hitler
Imagine saber que cada prato de comida pode ser seu último. O café da manhã, o almoço e o jantar são potencialmente fatais. E você tem de comê-los mesmo assim.
Para um grupo de jovens mulheres no Terceiro Reich, essa foi a realidade diária: elas provaram a comida de Hitler durante os últimos dois anos e meio da 2ª Guerra Mundial.
O líder nazista exigia que moças alemãs provassem cada uma das refeições feitas para ele – uma precaução para detectar possíveis tentativas de envenenamento. Tal papel era visto como uma espécie de honra – uma maneira de servir.
A história das experiências dessas jovens só veio à luz em 2013, quando Margot Wölk, então com 95 anos, revelou sua antiga função à revista alemã Der Spiegel.
A peça Hitler’s Tasters (Degustadoras de Hitler, em tradução livre), de Michelle Kholos Brooks, imagina como era a rotina de arriscar a vida, garfada a garfada.
A história se concentra em quatro jovens (na realidade, cerca de 15 foram usadas) que viviam em uma escola ao lado da Toca do Lobo, a sede da Frente Oriental de Hitler na Prússia Oriental (atual Polônia).
Passado e presente reunidos em cena
Brooks ouviu falar sobre as degustadoras de Hitler por acidente – um parceiro de escrita mencionou a história de passagem quando eles estavam matando tempo antes de um voo.
“Eu disse ‘você vai escrever sobre isso? Porque, se você não for, eu vou'”, lembra ela.
Brooks percebeu de imediato que a temática era rica. “Isso mexe com tudo que penso e me preocupo: como mulheres jovens são tratadas, como as crianças são usadas em zonas de guerra, como é difícil ser uma mulher adolescente, manipulação política…”
Pode soar como algo pesado, mas a peça é na verdade uma comédia – ainda que de humor ácido. E Brooks retrata tudo isso em seu momento histórico, enquanto imagina ao mesmo tempo essas jovens como adolescentes de hoje.
Elas dançam ao som de música pop, posam para selfies e fofocam sobre seus sentimentos por Frank Sinatra, Clark Gable e o próprio Hitler. Falam como as garotas atuais, mas depois disparam palavras de ódio contra o povo judeu.
“Eu estava vendo algumas jovens tirando selfies, se esforçando para conseguir a melhor foto possível, e me ocorreu que essas são as mesmas garotas. Não há diferença, exceto pelo tempo. Não queria que essas personagens fossem figuras histórias em tons de sépia, queria que parecessem ser atuais”, diz Brooks sobre sua decisão de ter essa dupla perspectiva.
A peça usa esse estranho capítulo da história da 2ª Guerra Mundial como uma forma de examinar a experiência universal de ser uma adolescente – embora em um ambiente de alto risco.
Na vida das degustadoras, cada garfada era um perigo, mas também era parte de uma existência incrivelmente banal e chata.
Uma dieta vegetariana – e aterrorizante
Em comparação com as experiências de muitas pessoas na guerra, elas viviam uma situação melhor de certa maneira: em 1944, muitas pessoas passavam fome na Alemanha, enquanto elas faziam três refeições por dia.
É claro que eram refeições vegetarianas – Hitler evitava comer carne.
Wölk descreveu em seu relato uma dieta de vegetais, arroz, macarrão e frutas exóticas, uma verdadeira raridade na época.
Mas, embora a comida “fosse boa, muito boa”, ela acrescentou, em uma entrevista em 2013, que elas não conseguiam aproveitar.
“Algumas das meninas caíam no choro quando começavam a comer, porque estavam com muito medo. Tínhamos de comer tudo e esperar por uma hora, e toda vez tínhamos medo. Costumávamos chorar também de felicidade por ter sobrevivido.”
Os membros da SS, o braço paramilitar do partido nazista alemão, serviam a comida, esperavam para ver se as meninas passavam mal e, se isso não acontecesse, a comida era levada para Hitler. Mas, entre cada refeição, as moças tinham pouco a fazer, exceto sentar e esperar para ver se estavam morrendo.
Brooks quis mostrar na peça “como elas matavam o tempo, como evitavam o tédio”. “Do que elas falavam? Imagino que tivessem que continuar a ser garotas: trançar o cabelo uma da outra e rir, encontrar uma forma de entender a insanidade que estava acontecendo.”
Até onde sabemos, nenhuma das garotas foi realmente envenenada pela comida. Mas a história delas é mal documentada – se não fosse por Wölk, nunca teria sido conhecida.
Parece que ela foi a única das degustadoras de Hitler que sobreviveu: enquanto as forças russas avançavam, ela escapou escondida em um trem e foi para Berlim.
Acredita-se que todas as outras garotas que permaneceram foram mortas por soldados soviéticos.
Fazer comédia a partir de tal situação pode envolver “uma linha tênue”, reconhece Brooks – algumas pessoas perguntaram a ela se não havia problema em rir da peça e outras até mesmo se recusaram a ver o espetáculo.
“Algumas pessoas disseram que não querem vê-lo, porque estamos rindo de algo horrível – mas se você visse, saberia [que não estamos]. Não estamos ao lado de Hitler, realmente não gostamos dele!”, brinca Brooks, um pouco incrédula que tal coisa precise ser dita explicitamente.
As degustadoras de Hitler se comportam como qualquer jovem inocente – e reconhecem que rir dos fascistas melomaníacos é uma maneira de diminuir seu poder.