As pessoas podem ficar eufóricas no momento da morte?

estátua representando a morteDireito de imagemGETTY IMAGES

“As pessoas geralmente parecem estar dormindo logo após a morte, com uma expressão facial neutra. Mas um dos meus parentes, que sentiu dores intensas nas horas que antecederam sua morte e não teve acesso a cuidados médicos, tinha uma expressão radiante e de êxtase. Durante décadas, me perguntei se os últimos minutos da vida dele poderiam ter sido felizes. Morrer talvez desencadeie uma enxurrada de endorfina, principalmente na ausência de analgésicos?”

A questão acima foi enviada à BBC pelo leitor Göran, de 77 anos, de Helsingborg, na Suécia.

O pesquisador Seamus Coyle, especialista em Pesquisa Clínica da Universidade de Liverpool, tentou respondê-la com base em estudos e em sua experiência em cuidados paliativos.

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O poeta Dylan Thomas tinha algumas coisas interessantes a dizer sobre a morte, inclusive em um de seus poemas mais famosos:

E você, meu pai, lá na triste altura

Maldição, abençoe-me agora com suas lágrimas ferozes, eu rezo.

Não vá docemente nessa boa noite.

Raiva, raiva contra a morte da luz.

Supõe-se frequentemente que a vida trava uma batalha até o fim contra a morte. Mas é possível chegar a um acordo entre elas?

Como especialista em cuidados paliativos, acho que há um processo de morrer que acontece duas semanas antes de a morte ocorrer de fato. Durante esse período, as pessoas tendem a ficar mal.

Elas normalmente têm dificuldade para andar e ficam mais sonolentas, conseguindo ficar acordadas por períodos cada vez mais curtos. Nos últimos dias de vida, a capacidade de engolir comprimidos ou consumir alimentos e bebidas diminui.

Especialistas em cuidados paliativos dizem que as pessoas estão “morrendo ativamente”, e geralmente pensamos que isso significa que elas têm dois a três dias de vida. Muitas pessoas, no entanto, vão passar por toda essa fase dentro de apenas um dia.

E algumas pessoas podem realmente ficar à beira da morte por quase uma semana antes de morrerem de fato, algo que em geral é extremamente angustiante para as famílias. Então, coisas diferentes ocorrem com pessoas distintas — e não podemos prever as sequências de acontecimentos.

Alterações químicas

É difícil decifrar o momento real da morte. Mas um estudo ainda não publicado do meu próprio grupo de pesquisa indica que, à medida que as pessoas se aproximam da morte, há um aumento nos substâncias químicas relacionadas ao estresse no corpo.

Para as pessoas com câncer, e talvez outras também, os marcadores inflamatórios aumentam. Essas são as substâncias que aumentam quando o corpo está combatendo uma infecção.

Há quem aponte que pode haver uma “enxurrada” de endorfinas antes de alguém morrer. Mas simplesmente não sabemos se isso é verdade, pois ninguém ainda pesquisou essa possibilidade.

Um estudo de 2011, no entanto, mostrou que os níveis de serotonina, outra substância química do cérebro que também contribui para sentimentos de felicidade, triplicaram no cérebro de seis ratos pouco antes de sua morte. Não podemos descartar que algo semelhante possa acontecer em humanos.

É um indício interessante, no entanto, e existe a tecnologia para observar os níveis de endorfina e serotonina em humanos.

estátua representando a morte

Mas obter amostras sequenciais, especialmente de sangue, nas últimas horas da vida de alguém é desafiador do ponto de vista logístico. Conseguir o financiamento para fazer essa pesquisa também é difícil.

No Reino Unido, por exemplo, pesquisas sobre câncer em 2016 receberam um total de US$ 756 milhões (cerca de R$ 3,2 bilhões), enquanto toda a pesquisa sobre cuidados paliativos teve menos US$ 2,6 milhões (R$ 8,6 milhões) em financiamento.

Não há indícios de que analgésicos, como a morfina, impediriam a produção de endorfinas. A dor nem sempre é um problema quando as pessoas morrem. Minhas próprias observações e discussões com colegas indicam que, se a dor já não fosse um problema para uma pessoa antes, é pouco comum que ela se torne um problema durante o processo de morte.

Não sabemos por que isso ocorre — pode estar relacionado a endorfinas. Novamente, nenhuma pesquisa ainda foi feita sobre isso.

Existem vários processos no cérebro que podem nos ajudar a superar a dor intensa. É por isso que os soldados no campo de batalha geralmente não sentem dor no momento em que se ferem. O trabalho de Irene Tracy, na Universidade de Oxford, demonstra o poder fascinante do placebo, sugestões e crenças religiosas na superação da dor. Meditação também pode ajudar.

Experiências eufóricas

Mas o que poderia causar uma experiência eufórica durante a morte, além das endorfinas? À medida que o corpo “desliga”, o cérebro é afetado. É possível que a maneira pela qual isso acontece influencia de alguma forma as experiências que temos no momento da morte.

A neuroanatomista americana Jill Bolte-Taylor descreveu em uma palestra no TED como ela experimentou euforia e até “nirvana” durante uma experiência de quase morte na qual seu hemisfério esquerdo do cérebro, que é o centro da lógica e do pensamento racional, foi desligado após um derrame.

Curiosamente, mesmo que uma lesão tenha ocorrido no lado esquerdo do cérebro, uma lesão no lado direito também pode aumentar seus sentimentos de “estar perto de algo maior.”

Acho que há uma chance de alguém ter uma profunda experiência ou realização espiritual. Eu sei que quando meu avô morreu, ele levantou a mão e o dedo como se estivesse apontando para alguém. Meu pai, um católico devoto, acredita que ele viu minha avó. Meu avô morreu com um sorriso no rosto, o que trouxe uma profunda tranquilidade ao meu pai.

O processo de morrer é sagrado para os budistas, que acreditam que o momento final oferece um grande potencial para a mente. Eles vêem a transição do viver para o morrer como o evento mais importante da sua vida, aquele em que você carrega o Karma desta vida para outras.

Isso não significa que as pessoas religiosas tenham experiências de morte mais alegres. Testemunhei que padres e freiras ficam extremamente ansiosos quando se aproximam da morte, talvez consumidos por preocupações com seu histórico moral e pelo medo do “julgamento”.

Por fim, cada morte é diferente — e você não pode prever quem terá uma mais pacífica. Eu acho que alguns dos que eu vi morrer não se beneficiaram com um aumento da endorfina. Posso pensar em várias pessoas mais jovens sob meus cuidados, por exemplo, que acharam difícil aceitar que estavam morrendo. Eles tinham famílias jovens e nunca lidaram bem com o processo de morte.

Lembro-me de uma mulher que estava recebendo nutrição pelas veias. Ela tinha câncer de ovário e não conseguia comer. Pessoas alimentadas assim estão em risco de infecções graves. Depois de sua segunda ou terceira infecção com risco de vida, ela mudou.

A sensação de paz que emanava dela era palpável. Ela conseguiu deixar o hospital e ir para casa por curtos períodos e ainda me lembro dela falando sobre a beleza do pôr do sol. Essas pessoas sempre ficam na minha memória e me fazem refletir sobre minha própria vida.

Por fim, sabemos muito pouco sobre o que acontece quando alguém está morrendo. Podemos dizer como você morre por afogamento ou por ataque cardíaco, mas não sabemos como você morre de câncer ou pneumonia. O melhor que podemos fazer é descrever essas situações.

Minha pesquisa está focada em tentar desmistificar o processo de morrer, entender a biologia básica e desenvolver modelos que prevejam as últimas semanas e dias de vida. Com o tempo, também podemos pesquisar o papel das endorfinas nas últimas horas e realmente responder à pergunta do nosso leitor definitivamente.

É possível que experimentemos o nosso momento mais profundo no interior sombrio entre a vida e a morte. Mas isso não significa que devemos parar de se enfurecer contra a morte. Como afirmou o diplomata sueco Dag Hammarskjöld: “Não busque a morte. A morte vai encontrar você. Mas procure o caminho que faz da morte uma realização”.

Este artgo é parte de Life’s Big Questions, uma nova série da BBC World Service que está sendo co-publicada com a BBC Future (leia a versão original em inglês). Ela procura responder a perguntas incômodas de leitores sobre vida, amor, morte e o Universo. As respostas são dadas por pesquisadores e profissionais que dedicaram suas vidas a descobrir novas perspectivas sobre as questões que moldam nossas vidas. Se você tiver uma pergunta que gostaria de ser respondida, envie uma mensagem no Facebook ou Twitter ou por e-mail ([email protected])

*Seamus Coyle é pesquisador honorário de Pesquisa Clínica da Universidade de Liverpool, na Inglaterra.

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