Nas primeiras páginas de sua mais recente obra Balas de Washington – uma história da CIA , dos golpes e assassinatos (Editora Expressão Popular), o historiador e jornalista indiano Vijay Prashad transporta o leitor ao seu espaço cotidiano, como se estivesse recebendo uma visita para conversar sobre o mundo.
Em primeira pessoa, ele descreve o que há a sua volta, de uma maneira que beira a delicadeza. Parece tentar preparar quem se aventura pelo livro para a gravidade do que está por vir: a narrativa sobre os massacres imperialistas que minaram, ou tentaram minar, iniciativas de libertação, busca pela justiça e enfrentamento da luta de classes. “Livros e documentos que detalham as tragédias impostas aos povos do mundo me cercam”, relata Vijay.
Ao seguir a contextualização, ele cita a sessão de sua biblioteca sobre a os golpes colocados em prática pela Agência Central de Inteligência (CIA) do governo dos Estados Unidos; relatórios do Fundo Monetário Internacional (FMI), que “contam sobre os obstáculos colocados aos países que tentam achar uma saída para sua pobreza e sua desigualdade”; arquivos; documentos; memórias e discursos.
“Essas palavras criam um mundo – elas explicam porque há tanto sofrimento ao nosso redor e porque este sofrimento não leva à luta, mas à resignação e ao ódio. Ergo o braço e puxo um arquivo sobre a Guatemala. É sobre o golpe promovido pela CIA em 1954. Por que os EUA destruíram aquele pequeno país?”, reflete o autor.
É a primeira pergunta da obra. De certa forma, o leitor já está ao lado de Vijay neste momento e sabe a resposta para o questionamento. Mas há outra certeza aqui: é preciso revisitar os fatos, rever os momentos, destrinchar as injustiças. “Trata-se de um livro sobre as sombras; mas se funda em uma literatura luminosa”, pontua.
O exemplo do golpe contra o então presidente da Guatemala, Jacobo Arbenz, que virou alvo porque tentou liderar uma reforma agrária no país tem elementos que se repetem ao longo da obra.
Com apoio da CIA, Arbenz foi retirado do cargo e exilado. Seus planos ameaçavam a posse de terras da gigante United Fruit Company, empresa estadunidense que estrangulou economias da América Central por décadas com a exploração de terras, recursos e trabalhadores.
Intelectuais, políticos e lideranças foram presos e mortos. O apoio dos Estados Unidos ao golpe foi tão direto, que o regime que se seguiu, liderado pelo coronel da reserva Carlos Castillo Armas, tinha como guia o histórico manual massacres da CIA A Study of Assassination (Um estudo sobre o assassinato).
Vijay encerra suas páginas de contextualização perguntando a si mesmo e ao leitor quais são os outros mistérios presentes nos arquivos e livros que o cercam. “O que essas histórias nos contam? Que quando o povo e seus representantes tentaram criar um caminho justo a se seguir, foram frustrados por suas classes dominantes, impulsionadas pelas forças do Ocidente. Que o que sobrou é um cenário de desolação”.
O autor abre caminho para narrar dezenas de outros fatos. Do golpe militar na Guatemala – primeiro de muitos dessa natureza que vieram a ser promovidos pela CIA na América Latina – ao golpe parlamentar e midiático que tirou Dilma Rousseff da presidência do Brasil em 2016.
O historiador passa pelos desmandos e guerras em países socialistas a partir da segunda metade do século passado, pelos horrores colocados em nações do Oriente Médio e da Pérsia, que perduram até hoje, pelo enfraquecimento do poder público e pelo controle internacional imposto a nações como o Haiti.
Os tentáculos imperialistas estadunidenses estão em todos os continentes. Separados pelo tempo e pela conjuntura, carregam princípios básicos e o modo de operação muda muito pouco: encontra aliados dispostos a rifar o próprio povo, por poder ou por dinheiro, estrangula economias, cria o caos social e, por fim, leva países a condições sobre-humanas, de atraso e desigualdade gritantes.
“Nunca aos povos do Terceiro Mundo foi permitido viver no mesmo momento histórico que seus contemporâneos do Ocidente – eles foram forçados a viver com menos oportunidades e menos dignidade social”, aponta.
A principal virtude da obra está no chamado à reação. Longe de ser um apanhado de conspirações cruéis e detalhes sórdidos, Balas de Washington é muito mais um convite à continuidade da luta.
Em declaração ao Brasil de Fato Vijay ressalta que “seres humanos têm uma grande capacidade de lutar contra as adversidades”.
“Nós não desistimos. O intelectual marxista Mahdi Amel disse que, enquanto você está resistindo, você não foi derrotado. Eu acredito nisso completamente”, afirma.
Encarar a luta de classes e o imperialismo, para o autor, é o que parece permitir que a história da humanidade não se resuma à busca incondicional pelo poder e pela dominação.
“Nossa resistência é um pé na porta da história, nossa recusa em permitir que as forças batam a porta para a esperança e o futuro. A esperança e o amor nos apegam, certificam-se de que nós – como seres humanos – não caímos no desespero eterno, mas continuamos lutando para que nossos sonhos se tornem realidade”, aponta.
É com foco nessa convicção que Vijay encerra Balas de Washington relembrando o poeta da Guatemala, Otto René Castillo. Assassinado em 1967, ele havia se juntado às Fuerzas Armadas Rebeldes (Forças Armadas Rebeldes) e nunca deixou de produzir poesia. É de Castillo o grito poético que diz: “Nós acreditamos no homem e na vida/ e a vida e o homem/ nunca nos decepcionaram.”