Por Marcelo Tognozzi*
Sirvam nossas façanhas de modelo à toda terra. Alguns poucos gaúchos levaram ao pé da letra este trecho do hino do Rio Grande, fazendo dele uma profissão de fé. Um deles foi João Saldanha (1917-1990), o seu João, com quem convivi no antigo Jornal do Brasil. Érico Veríssimo, a quem faltou um Nobel, também deixou um legado de façanhas, e Paixão Côrtes (1927-2018), modelo da estátua do laçador, também.
Esta gauchada dispara mundo afora largando seu resto de façanhas, como fez meu arqui-amigo Bernardo Garicochea. Bernardão virou um dos maiores oncologistas do mundo, respeitado nos 4 cantos deste planeta, professor, pesquisador e cientista. Uma curiosidade incontida sobre a ciência, compulsivo, mas dono de uma característica distinta: sensibilidade à flor da pele para literatura, artes, vinhos e tudo o que faz bem à alma. Estudando na Inglaterra, enveredou pelo mundo dos recrutas no front da 1ª Guerra Mundial, leu suas cartas, entendeu e se emocionou com o sofrimento daqueles meninos diante da morte.
Trocamos livros, experiências culinárias, conversamos sobre gregos e troianos. Ele é ex-aluno do professor Cláudio Moreno do Noites Gregas, também meu mestre para os clássicos de Homero, Ovídio e a cultura grega. Rimos juntos das tiradas de Moreno, misturando gauchismos com helenismos: “E aí fulano pisou no poncho de Zeus”. Era a senha para a confusão certa.
Vi meu amigo Bernardo Garicochea pela última vez em 29 de setembro de 2024. Almoçamos no Arabia da Haddock Lobo, em São Paulo. Foi um longo e delicioso almoço. Demos muita risada, como sempre. Uma regra de ouro para nossos encontros: nada de falar de medicina. Nesse dia, ele quebrou o protocolo, contando sobre uma cirurgia marcada para o início de outubro. Tinha veias meio entupidas pelo cálcio nelas depositado, coisas do coração. “Não precisa se preocupar porque não é nada demais”, disse.
O Bernardo dava gargalhadas quando eu o provocava dizendo ser ele um produtor de artigos finos para cavalheiros. Difícil dizer qual das suas 3 filhas é a mais bonita. Morria de orgulho delas, coberto de razão. Nunca houve uma única ocasião em que deixasse de contar alguma proeza das meninas. Julia, Sofia e Bia sempre foram sua razão de viver.
Por mais de uma década convivi com um dos melhores sujeitos que Deus já mandou para este mundo. Cada garrafa de vinho era esvaziada sempre com as devidas explicações e detalhes, minúcias de sommelier sofisticado, um contador de histórias maravilhosas. Sempre uma inspiração para algum artigo, uma leitura, um filme. Tínhamos projetos, compartilhávamos sonhos. Rimos muito juntos.
Sempre achei que os bons médicos, dedicados e obcecados pela cura, cuidavam muito bem dos outros, mas pouco deles mesmos. Com meu arqui-amigo não foi diferente. Salvou milhares de vidas ao longo dos últimos 40 anos. Sofreu por seus pacientes, inquietou-se com riscos, chorou derrotas e celebrou as vitórias. A medicina é uma profissão que precisa ser temperada de amor. Sem ele, vira um ofício qualquer, um comércio de vida e morte.
Bernardo contribuiu para uma melhor compreensão da genética do câncer e doenças raras no Brasil. Graças ao seu talento e generosidade, estudou os perfis de mutações genéticas em mulheres portadores de câncer de mama nas diversas regiões do Brasil. Sua pesquisa ajudou (e continua ajudando) a salvar milhares de vidas de mães, esposas, avós, filhas, noras, netas, todas as mulheres, livres para celebrar a vida, transformadas pela cura.
Dia 9 de setembro, desde o País de Gales, ele manda uma foto com Cristina, casal lindo. Estava atrás de um queijo chamado stinkingbishop. Coisas do Bernardo. Me engajei na busca e acabei achando uma tal The Cheese Society onde o queijo do Bernardo era vendido por 6 libras cada 100 gramas. Mandei o link. Queijo parecido com camembert, branquinho por fora e mole por dentro, lavado com suco de pera antes da fermentação. Fedorentinho, na definição do Bernardo. Durante o almoço do Arábia nos divertimos com as peripécias dele em Gales atrás do sitinking bishop.
Na noite de 10 de outubro Bernardo foi embora! Escrevo este texto triste, as lágrimas escorrendo pela cara, pela saudade que já sinto cada vez que me lembro das nossas conversas, do carinho dele por mim. Bernardo me salvou duas vezes. Quando médico algum conseguiu dizer o que eu tinha, ele me acolheu e cuidou de mim. Não é fácil encarar certos desafios. Um alívio quando um dos maiores médicos do mundo é teu amigo de tragos, confissões e risadas.
A única coisa que posso dizer, meu amigo, é a minha imensa gratidão. Gratidão pela nossa amizade, pelo privilégio de ter convivido contigo, poder ligar, trocar ideias, compartilhar comidas, vinhos, impressões de um mundo cada vez mais estranho. Gratidão por celebrarmos a vida.
Você não leva contigo tuas façanhas! Elas ficarão por aqui vibrando e servindo de modelo à toda terra, herança para seus alunos e colegas. São façanhas de cura, de amor às pessoas, coisas de gente grande. Vou sentir muita saudade, meu amigo. Agora, nada mais atravanca teu caminho, você está livre, virou passarinho, foi cantar num galhinho da árvore da eternidade.
*Jornalista