Biografia de Hitler lembra como uma democracia vira ditadura

Talento de ator, força como orador de massa, esperteza política são algumas das características pessoais que explicam o “caso Hitler”, diz biógrafo. Mas não eximem os alemães da culpa pelo Holocausto.

    

Foto de Adolf HitlerCaracterísticas pessoais de Adolf Hitler foram essenciais para sua ascensão e queda

A cultura alemã da memória está sob ataque dos populistas de direita. Eles querem o fim da abordagem autocrítica da era nacional-socialista, declarando-a um mero interlúdio numa história, de resto, gloriosa. Exemplo disso foi a declaração do presidente do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), Alexander Gauland, minimizando Adolf Hitler e os nazistas como um “cocô de passarinho em nossa história mais do que milenar”.

Para o historiador e jornalista Volker Ullrich, declarações como essa são perigosas do ponto de vista histórico-político: “Quem pratica esse tipo de manipulação eufemística da história deve saber que está balançando os fundamentos da república”, condena Ullrich, que acaba de publicar o segundo e último volume de sua biografia de Hitler.

Ele apresenta o “caso Hitler” como um exemplo cautelar, demonstrativo da rapidez com que a democracia pode ser desmontada e de quão fina é a camada separando a civilização da barbárie.

Já em seu primeiro volume, lançado em 2013, sobre os anos anteriores à eclosão da Segunda Guerra Mundial, Ullrich colocara a pessoa do ditador no centro de sua análise – na contramão da tendência predominante na pesquisa sobre o nazismo, há anos concentrada de forma crescente nas condições estruturais que levaram à ascensão e domínio nacional-socialista.

O historiador não deixa essas questões de fora, mas ao mesmo tempo enfatiza as características pessoais de Hitler que fizeram dele um “Führer” tão atraente para tantos alemães: seu talento de ator, sua força como orador de massa e organizador, assim como a esperteza em adaptar-se rapidamente a mudanças na situação política.

Nazistas tomam o poder no Reichstag de Berlim, em 30/01/1933Nazistas tomam o poder no Reichstag de Berlim, em 30/01/1933

Hitler como pessoa

Nas 894 páginas do segundo volume, Adolf Hitler – Die Jahre des Untergangs 1939-1945(literalmente: Os anos da queda), o biógrafo prossegue de forma consequente, sobretudo na avaliação do papel do líder nazista como supremo senhor da guerra e no Holocausto.

Sua tese é que se, por um lado, o assassinato dos judeus europeus não teria sido possível sem milhares de ajudantes, ele tampouco o seria sem a pessoa do ditador nascido na Áustria. Já na radicalização da política para com os judeus até 1939, ele detinha o controle sobre a sequência das ações, como última instância – um padrão que se repetiu nos tempos de guerra.

Ullrich mostra que o genocídio não foi precedido apenas pela declaração geral de intenção de Hitler pelo extermínio sistemático dos judeus europeus: em diversos casos foi necessária sua aprovação pessoal – fosse para obrigar os semitas a portar a estrela de Davi ou para deportá-los do território do Reich.

Foi no papel de supremo senhor da guerra que vieram à tona os déficits pessoais do ditador, acredita Ullrich. Entre eles, não só a propensão a subestimar o adversário, como a muito mais grave tendência de apostar tudo numa carta só.

Hitler reagiu com acessos de ira e ódio às derrotas no front oriental, achando que sabia tudo melhor e punindo também pessoalmente os membros do comando supremo da Wehrmacht. Contrariando o costume até então, nas reuniões estratégicas ele não dava mais a mão a nenhum dos presentes, e durante um tempo deixou de participar do almoço e jantar coletivos.

O autonomeado “Feldherr” (comandante de campo) possivelmente se envergonhava diante dos militares de carreira, supõe Ullrich: “Ele permanecia longe do alto escalão não só por seu ressentimento para com os militares, mas também por não mais poder se apresentar diante deles na pose superior de comandante-gênio.”

Adolf Hitler e outros oficiais nazistas participam de congresso do Partido Nazista em 1936Oficiais nazistas participam de congresso do Partido Nacional-Socialista em 1936. A dír., Hilter

Sem desculpas para os alemães

Nascido em 1943, o historiador e jornalista Volker Ullrich dirigiu de 1990 a 2009 a seção “Livro político” no semanário hamburguês Die Zeit. Por sua atuação como publicista recebeu, entre outros, o Prêmio Alfred Kerr de 1992.

Para sua apresentação sobre Hitler, erudita e de leitura fluente, o autor pesquisou numerosos documentos de arquivo. Com essa avaliação pessoal, contudo, ele não deixa nenhuma brecha para desculpas – nem para os generais, que depois de 1945 tentaram minimizar a própria participação na catástrofe moral e militar, apontando para Hitler.

E tampouco para os alemães, em si, que após o Holocausto pretenderam de nada saber: “Desse modo, procede que apenas alguns poucos alemães sabiam tudo sobre a ‘solução final’, mas também eram muito poucos os que não sabiam de nada.”

O POGROM NAZISTA “NOITE DOS CRISTAIS”

Sinagoga destruída em Chemnitz

O que ocorreu entre 9 e 10 de novembro de 1938?

Ataques antissemitas, liderados por paramilitares da SA, foram lançados por toda a Alemanha nazista. Sinagogas como esta, na cidade de Chemnitz, no leste do país, e outros estabelecimentos de propriedade de judeus foram destruídos. Judeus foram sujeitados à humilhação pública e presos. Pelo menos 91 deles – mas provavelmente muitos mais – foram mortos.

Incêndio de sinagoga em Berlim

Por trás do nome

A violência contra os judeus alemães observada nas ruas de todo o país é conhecida por uma série de nomes. Em Berlim, costuma-se referir-se a ela como “Kristallnacht”, ou, em português, “Noite dos Cristais”. Atualmente, porém, é mais comum entre os alemães falar na “Noite do Pogrom” ou nos “Pogroms de Novembro”.

Herschel Seibel Grynszpan

O que desencadeou o pogrom?

O estopim do episódio foi o assassinato do diplomata alemão Ernst vom Rath, em Paris, por um adolescente judeu polonês chamado Herschel Grynszpan. Não se sabe ao certo se ele sobreviveu ao regime nazista ou se morreu em algum campo de concentração.

Adolf Hitler e Joseph Goebbels

Como a violência realmente começou?

Após a morte de von Rath, Adolf Hitler deu uma permissão verbal ao Ministro da Propaganda, Josef Goebbels, para lançar o pogrom. A violência já havia eclodido em alguns lugares. Os paramilitares da SS foram instruídos a permitir “apenas medidas que não impliquem nenhum perigo para vidas e propriedades alemãs”.

Estabelecimento judeu saqueado em Magdeburg

A violência foi uma expressão de raiva popular?

Não. Essa foi a versão oficial do partido nazista, mas ninguém acreditou nela. Referências constantes a “operações” e “medidas” indicam claramente que a violência foi um ato de Estado. Não está claro o que a população alemã achou do episódio. Há evidências de desaprovação popular – embora o fato de o casal à esquerda da foto estar rindo também dizer muito.

Pogrom de November 1938

O que os nazistas esperavam obter com a violência?

Conforme a ideologia racista do partido, os nazistas queriam intimidar os judeus para que estes deixassem a Alemanha. Com esse intuito, judeus eram frequentemente exibidos de forma humilhante pelas ruas, como nesta imagem. Seus algozes também tinham motivações econômicas: judeus fugindo do Terceiro Reich tinham que pagar “taxas de emigração”, e suas propriedades eram confiscadas com frequência.

Sinagoga na rua Fasanenstrasse, em Berlim, após o pogrom de novembro de 1938

O pogrom alcançou o seu propósito?

Após o episódio, os judeus não podiam mais nutrir qualquer ilusão sobre as intenções dos nazistas, e aqueles que tiveram a chance, fugiram. Mas a agressão aberta caiu mal na imprensa internacional e contrariou muitos alemães que defendiam a ordem. Foi assim que surgiram medidas mais burocráticas, como a exigência de que os judeus usassem estrelas de David amarelas visíveis em suas roupas.

Propriedade judaica danificada em Berlim

Qual foi o resultado imediato?

Depois do pogrom, a liderança nazista instituiu uma série de medidas antijudaicas, inclusive – não sem um certo cinismo – uma taxa para ajudar a pagar pelos danos de 9 a 10 de novembro de 1939. Hermann Göring, o segundo homem mais poderoso do Terceiro Reich na época, notoriamente observou: “Eu não gostaria de ser judeu na Alemanha”.

Incêndio de sinagoga

O que a “Noite dos Cristais” representou para a história?

Em 1938, ainda faltavam dois anos para o início do Holocausto. Mas há uma clara linha de continuidade desde o pogrom até o assassinato em massa de judeus europeus, na qual a liderança nazista continuaria a desenvolver e aprimorar seu ódio antissemita. Nas palavras de um historiador contemporâneo, o pogrom foi um “prelúdio do genocídio”.

Autoria: Jefferson Chase (ip)

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