“Black Mirror’ nos faz ver como usamos o sofrimento alheio para expiar nossa insatisfação”

Maurício Dieter, professor de criminologia da USP, conversa sobre punitivismo a partir da série

Especialista discute justiçamento nas redes sociais e espetacularização de prisões no Brasil

Black Mirror, quarta temporada
Maurício Dieter, professor de criminologia na USP MARCOS SANTOS USP IMAGENS

A série Black Mirror é um dos maiores sucessos de público e crítica da Netflix. O êxito alcançando se deve, muito provavelmente, ao fato de que os enredos distópicos trabalham com situações extremamente tangíveis no horizonte da humanidade. Carros voadores estão fora de questão, o que torna o mundo assustadoramente diferente são tecnologias que já usamos hoje em dia. Em três episódios específicos, White BearHated in The Nation White Christmas, a ideia de Justiça como a conhecemos hoje no mundo Ocidental é sacudida. O que aparece em seu lugar é um justiçamento com requintes de crueldade que desrespeita direitos fundamentais e é possibilitado pela tecnologia.

Para refletir sobre os três enredos, o professor de Criminologia da Universidade de São Paulo Maurício Stegemann Dieter participou de uma palestra no Sesc em abril deste ano. A ideia era entender, a partir da criminologia – campo que engloba disciplinas como filosofia, direito e ciências sociais – a motivação por trás do traço latente de punitivismo das sociedades, em especial da brasileira. Com o lançamento neste dia 29 de dezembro da quarta temporada de Black Mirror, o EL PAÍS conversou com Dieter por telefone para falar sobre esse que tem sido um dos traços mais marcantes da era das redes sociais: a substituições dos meios tradicionais de Justiça por um justiçamento virtual express, mas, não por isso, mais justo.

Pergunta. Por que os três episódios tocam tanto a nossa sensibilidade?

Resposta. Eles fazem isso porque trabalham no campo da hipérbole. No White Bear, por exemplo, uma personagem é usada como exemplo de pena em um martírio público a partir da espetacularização da dor. O episódio leva o argumento da pena ao máximo e o que nos choca é que percebemos que essa espetacularização da pena e da prisão já existe no nosso próprio cotidiano. A questão é que isso aparece no dia a dia em doses homeopáticas e, por isso, não nos incomoda tanto quanto ao vermos isso levado ao extremo na série. Contudo, as pessoas celebram o fato de que criminosos sejam presos, algemados, expostos, tenham o cabelo raspado e usem uniformes. É o caso, por exemplo, do Fantástico mostrando um conhecido empresário brasileiro sendo desmascarado com sua peruca. O que isso interessa? Toda essa encenação punitivista é parecida com a do White Bear. A única diferença é que no episódio a coisa é levada ao extremo. A distopia nos faz rever as práticas do nosso cotidiano e como, de alguma forma, elas naturalizaram essa função simbólica da pena, que vê, pelo sofrimento alheio, a forma de expiar nossa insatisfação.

P. O episódio Hated in The Nation mostra que assassinatos em série estão acontecendo por causa do uso de um programa de vigilância secreto do Governo britânico que permite o reconhecimento facial. A privacidade tem sido cada vez mais devassada e menos valorizada, por que ela é tão importante?

R. Há uma publicização do privado cada vez maior por causa das ferramentas que usamos na Internet, esse novo espaço público virtualizado. Cada vez mais, a sociedade tem revelado questões que eram de foro estritamente íntimo, então fica parecendo que a violação do direito fundamental à privacidade já não é algo assim tão importante. Daí que nascem os clichês “eu não tenho nada a esconder” ou “eu faço questão de abrir meu sigilo bancário”. Parece que as pessoas dão cada vez menos valor para essa prerrogativa fundamental, para ter uma vida íntima e privada que esteja a salvo do escrutínio público. E por que a vida privada é assim um valor tão alto? O que não se percebe é que sem a possibilidade de termos os nossos segredos, a nossa vida autônoma, podendo definir nosso destino de maneira íntima, ficamos sujeitos a um controle social absurdamente violento. A construção de nossa subjetividade depende de um espaço privado, reservado, onde podemos definir nossos afetos, destinar nossos recursos. O mais terrível é que estamos perdendo esse direito por causa de uma forma de colaboracionismo ingênuo.

P. O senso comum diz frases como “eu não tenho nada a esconder”, mas ele realmente acredita nisso. Tanto que isso é dito repetidamente.

R. Isso é porque as pessoas desconhecem o direito. Até 2012, a conta feita pelo Ministério da Justiça era de que temos 1680 crimes no Brasil. Hoje já deve ter passado dos 1700. São coisas muito esdrúxulas, como molestar cetáceos, danificar plantas ornamentais e aquecer água de piscina ou sauna com gás de cozinha. Tem tanto crime hoje que a possibilidade de eu prender qualquer um é um ato discricionário. É impossível conversar uma hora com alguém e não descobrir um ou dois crimes que a pessoa praticou. A gente nem sabe o cardápio punitivo que tem, há crimes que não tem objeto definido, que são absolutamente vagos. E vamos abrir mão da privacidade? E se eu posso ter tantas hipóteses para prender alguém, quer dizer que a gente vive num estado policial, não à toa nos reconhecemos no Black Mirror.

P. De qualquer jeito, as pessoas são presas por poucos tipos de crimes.

R. É verdade. Dentro desse universo inteiro de crime, só se prende por cinco motivos. Mais de 80% da população carcerária masculina está presa por furto, tráfico de drogas, roubos, posse ilegal de armas e homicídio. Todo mundo poderia ser preso por um monte de coisa, mas a gente só prende as mesmas pessoas pelos mesmos crimes. Quanto mais você criminaliza, mais você aumenta a expressão forte da seletividade penal. Mas agora há ricos sendo presos também e isso dá a impressão de que o sistema está se nivelando, não é? Mas não está. O que está sendo nivelado é a injustiça, não a promoção da Justiça para todos.

P. Alguém pode argumentar que em um país que os presos são majoritariamente pobres e negros, a prisão de grandes empresários é uma boa notícia.

R. Mas a defesa dos direitos fundamentais do homem não pode ser casuística, circunstancial ou pessoal. Defender os direitos do maníaco do parque ou do Sérgio Cabral não significa ter simpatia pelo que eles podem ter feito. É compreender que o que garante a liberdade deles frente ao poder punitivo do Estado são as mesmas prerrogativas que me asseguram como cidadão. Esse conceito de cidadania é um conceito que neutraliza as particularidades para nos dissolver em uma categoria política de proteção contra a arbitrariedade. Os direitos humanos não podem ser pensados a partir de características físicas, econômicas ou sociais.

Tem tanto crime hoje que a possibilidade de eu prender qualquer um é um ato discricionário

P. E comemorar prisões não é exclusividade de um lado ou outro do espectro político…

R. Não mesmo. Isso tanto a direita quanto a esquerda faz. Linchamento real ou linchamento virtual são só escalas de um mesmo mesmo sentimento. Você produzir difamação de alguém, destruir personalidades, expor pessoas… A direita vive disso, mas e a esquerda? É aquilo: a pessoa é favorável aos direitos fundamentais até alguém ser acusado de assédio, aí pode expor no Facebook. Mas isso é esperado, o que mais me incomoda é a atitude da imprensa. O jornalismo brasileiro atual é de uma decadência moral absurda. O político A usa cocaína? E daí? A pergunta deve ser: ele usa cocaína e isso afeta o trabalho dele como político? Se não afeta, problema dele. Isso não é notícia. O político B tem uma amante? E daí? O político C é homossexual? O grande empresário usa peruca? E filmar o político D sendo socorrido em uma ambulância durante um ataque de indignação? Pode rir disso e mostrar como se fosse notícia? É opinião pessoal, mas acredito que grande parte do linchamento nas redes sociais é incentivado pela mídia brasileira. Na União Europeia, existe uma resolução que proíbe mostrar o rosto de um suspeito na mídia. Aqui a gente mostra foto interna do regime penitenciário.

P. Em diversos episódios do Black Mirror, as redes sociais aparecem como um espaço de justiçamento. Já estamos vivendo isso hoje também em menor escala?

R. Sim, mas eu não quero culpar o Facebook por estar emitindo opinião de como os casos devem ser julgados. Eu espero isso das pessoas. O que me preocupa é que o direito tenha aceitado isso. Mais e mais. E por que isso está acontecendo? Porque hoje raramente você vê juízes, desembargadores e ministros no Brasil, em matéria penal, tomarem decisões com base técnica. Foi o próprio sistema judicial que abriu espaço para essa influência. A invasão da opinião popular em relação ao conhecimento científico técnico aplicado em matéria criminal só acontece porque há permeabilidade nesse sentido. Quer um exemplo? Juízes que participam do Twitter emitindo opinião sobre casos que estão julgando. Outro exemplo: os próprios operadores da Lava Jato dizem que, sem a ajuda da mídia, ela seria impossível. Como é que pode ser uma coisa dessas? O processo, que deveria ser regido pela mais rígida e técnica conduta, não pode depender da opinião pública. Hoje as pessoas estão à mercê de uma distribuição lotérica do processo: se eu tiver sorte, eu pego um juiz que pensa assim, se eu tiver azar, pego um juiz que pensa assado. Como é que pode ser isso se tudo o que o direito pode ser é um instrumento técnico de controle?

Defender os direitos do maníaco do parque ou do Sérgio Cabral não significa ter simpatia pelo que eles podem ter feito

P. Mas tudo isso não aparece por que as pessoas esperam mais rapidez da Justiça?

R. Mas rapidez não tem nada a ver com Justiça. A gente usa a palavra burocracia com um sentido vulgar, mas ela é a mediação que existe entre a cidadania e o Estado, ela é o que permite a interação entre o cidadão e o Estado. É importante que essa relação seja burocratizada porque a burocracia tem como prerrogativa a impessoalidade. O Estado tem que atender o seu pleito sem levar em conta se você é famoso, se você é feio, inteligente, velho ou mulher. O fundamento dos direitos humanos é precisamente tomar decisões contramajoritárias. Os fins não justificam os meios no direito. Mas a finalidade é nobre? Não interessa. Por exemplo, o cara é criminoso, mas confessou sob tortura. É criminoso? Sim. Mas se teve tortura o processo é nulo. Tem que ser nulo! A história são sístoles e diástoles. É um pêndulo que uma hora vai para um lado e outra para outro. Se você não tiver rigor na definição de onde vai a ingerência estatal, um dia vão bater na sua porta. A Lava Jato acelerou os processos? Eu não vou negar que a operação explicitou uma corrupção sistêmica que estava enraizada no processo político. Mas ela não nos salvou disso. Ou alguém vai me dizer que a estrutura política brasileira melhorou depois da operação? Quem dirige as políticas públicas do Brasil hoje é gente menos ou mais qualificada? Essa é prova de que no direito tanto os fins quanto os meios tem que ser legítimos, não adianta reclamar da burocracia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *