Briga no Ministério Público Federal expõe problemas da eleição para PGR
Em 2003, em seu primeiro ano de mandato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) uma lista com três nomes de procuradores que a entidade gostaria que ocupassem o cargo. Atendeu ao pedido e nomeou o primeiro da lista: Cláudio Fonteles. A partir de então, todos os PGRs foram escolhidos do mesmo jeito. Lula se vangloria disso como um passo democrático e independente de escolha do chefe do MPF.
Acontece que só participam do processo os 1.240 membros ativos e inativos da Ministério Público Federal associados à ANPR. Ficam de fora, por exemplo, outros ramos também chefiados pelo PGR, como o Ministério Público do Trabalho, que tem mais de 750 membros.
A ANPR sempre defendeu que o modelo da lista “assegura liderança e independência na chefia da instituição”. Mas na semana passada, o ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão, procurador da República, lançou suspeitas sobre até que ponto funciona a lógica cartesiana de um processo pretensamente democrático.
Em carta aberta ao atual PGR, Rodrigo Janot, Aragão conta como agiu para que Janot fosse nomeado, no lugar da procuradora Ela Wiecko, também indicada na lista tríplice.
“Quando ouvimos boatos de que a mensagem ao Senado, com a indicação da doutora Ela [Wiecko], estava já na Casa Civil para ser assinada, imediatamente agi, procurando o ministro Ricardo Lewandowski, que, após recebê-lo, contatou a presidente para recomendar seu nome. (…) Na verdade, para se tornar procurador-geral da República, o senhor teve que fazer alianças contraditórias, já que não aceitaria ser nomeado fora do método de escolha corporativista”.
A carta de Aragão deixa claro que a eleição da lista pela ANPR não só não eliminou a política de bastidores (para confirmar a escolha do primeiro colocado), como criou uma variável extra: o candidato passou a ter que assumir compromissos corporativistas para ter os votos necessários.
Compromissos à parte, o artigo 84 da Constituição Federal deixa claro que compete privativamente ao presidente da República nomear, após aprovação pelo Senado Federal, o procurador-geral da República — independentemente de qualquer indicação. Na prática, a “tradição” inaugurada por Lula esvazia uma prerrogativa constitucional do Presidente da República e a transfere para uma categoria.
O constitucionalista Lenio Streck, que foi do Ministério Público por 25 anos, diz que a lista tríplice gera problemas, porque ocasiona guerra de facções politicas internas e externas. “Há que se construir um outro modo. Pode ser até o mais antigo, como no Supremo Tribunal Federal, sugere. Assim, o procurador já saberia quem em alguns anos será o PGR”, sugere. A questão central, no entanto, diz ele, é que o chefe do MP deve “governar” de forma “parlamentarista”, compara. Ou seja, descentralizar o poder.
Na Justiça
A questão de eleições para os cargos do MP já foi discutida na Justiça Federal, que concluiu que o poder do povo, representado pelo presidente da República, não pode ser reduzido por pleitos corporativos. A Justiça considerou inconstitucional a eleição para os cargos do MP sem previsão constitucional. A norma em discussão era a Portaria PGR 588, de 2003, que criou eleição para os cargos de procurador regional eleitoral e procurador regional dos direitos do cidadão, com mandato de dois anos. A portaria prevê eleição por chapas para os cargos.
Ao julgar o caso, o desembargador Fábio Prieto, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, afirmou que a eleição tinha “caráter ilusório e artificial” e, além disso, comprometia a independência funcional. O desembargador afirma que a lei complementar é enfática ao atribuir ao Conselho Superior do Ministério Público, não à Procuradoria-Geral da República, “elaborar e aprovar as normas sobre as designações”.
Ainda assim, o Conselho não poderá atropelar a previsão constitucional de que a promoção e a remoção de promotores e procuradores seja feita sob critérios individuais da antiguidade e do merecimento, nos termos das opções da Portaria PGR 588 de 3 de setembro de 2003.
Prieto cita o entendimento do Supremo Tribunal Federal em recursos extraordinários e ações diretas de inconstitucionalidade para, então, condensá-los: “nem a lei — ordinária ou complementar — tem aptidão para violar o sistema de proteção concedido aos integrantes do Ministério Público Federal. Menos, ainda, repita-se, uma portaria; ou, uma portaria sobre outra portaria”.
A decisão, que já transitou em julgado, traz ainda uma reflexão de Ronaldo Porto Macedo Júnior, procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo e professor da Faculdade de Direito da FGV-SP: “o Ministério Público vem demonstrando que corre o risco de vitimar-se pela burocratização em razão de diversos aspectos”, entre eles, o “corporativismo demagógico estimulado pela introdução de mecanismos eleitorais sem a necessária democratização interna de suas práticas políticas, com a desconcentração e transparência no exercício do poder”.
A afirmação, lembra Prieto, “faz coro com a sentença desagradável e persistente de Sérgio Buarque de Holanda: ‘A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido’”.