Carne mais barata: Geovane Mascarenhas completa 10 anos de assassinado em outro marco da violência policial
Por Ana Clara Pires, do BN
“A carne mais barata do mercado é a carne negra/ Que vai de graça pro presídio/ E para debaixo do plástico/ E vai de graça pro subemprego/ E pros hospitais psiquiátricos”. Imortalizada na voz de Elza Soares, a canção “A Carne” é uma triste realidade do povo brasileiro. E, em meio a esse problema, uma chaga se mantém aberta: a violência policial. O tema tem sido recorrente em protestos e denúncias ao longo das últimas décadas no Brasil — e na Bahia. Casos emblemáticos, muitas vezes marcados por abusos de poder, seguem ecoando nas ruas e nas memórias da sociedade baiana. Esses episódios trágicos revelam um padrão de violência que ameaça a vida dos baianos.
Em um caso recente, um funcionário da embasa, identificado como Welson Figueiredo Macedo, de 28 anos, foi morto por policiais militares com um tiro nas costas, no bairro de Castelo Branco, enquanto voltava do trabalho de moto.
Welson voltava do trabalho de moto e passou no bairro para deixar um amigo. Após levar levá-lo, Welson seguiu para o bairro de Fazenda Grande 2, onde morava com a esposa e o filho de oito anos. No percurso, policiais que estavam em uma viatura alegam que o teriam confundido com um suspeito.
Em nota, a PM informou que agentes faziam rondas, quando viram três suspeitos, de moto, assaltando um casal. Com a aproximação dos policiais, eles atiraram contra a viatura e fugiram. Pouco depois, os policiais receberam denúncias de que eles estavam no fim de linha do bairro. Houve troca de tiros e Welson foi encontrado ferido. Após ser baleado, o homem foi levado ao Hospital Eládio Lassere, onde morreu durante uma cirurgia.
A família acusa a Polícia Militar de matar a vítima, enquanto a corporação afirma que houve troca de tiros.
Se engana quem acredita que este é apenas mais um caso isolado, esse caso vem se somar a uma série de episódios semelhantes que, ao longo dos anos, continuam a expor a falha do sistema de segurança pública em garantir direitos básicos de proteção e segurança para a população.
No ano de 2023, foram registradas 1.702 mortes por ações policiais na Bahia em 2023. Este é o segundo ano consecutivo em que a Bahia supera os índices registrados no Rio de Janeiro e São Paulo, dois dos três estados brasileiros com maiores populações. As informações fazem parte da pesquisa Pele Alvo, da Rede de Observatório de Segurança, divulgados no dia 7 de novembro.
A Rede de Observatórios de Segurança monitora a situação em nove estados brasileiros: Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. Dentre esses, a Bahia foi o único estado a registrar mais de mil óbitos no ano passado.
Das 1.702 pessoas mortas em operação, a população negra representou 94,6% do total e 99,5% são homens, com uma vítima a cada sete horas. Segundo o estudo, a polícia baiana é a que mais mata, sendo responsável por quase a metade dos casos (47,5%) de pessoas negras mortas em ações policiais de todos os nove estados estudados. A juventude também faz parte do perfil mais vitimado: 62,0% dos mortos tinham entre 18 e 29 anos e 102 jovens de 12 a 17 anos foram mortos por agentes de segurança.
A violência policial na Bahia carrega uma história marcada por episódios que abalaram a sociedade e levantaram questionamentos sobre o uso excessivo da força e a impunidade. Ao longo das décadas, casos emblemáticos expuseram a fragilidade na relação entre as forças de segurança e a população, especialmente nas comunidades mais vulneráveis. Relembre, a seguir, alguns desses episódios que deixaram cicatrizes profundas no estado e continuam a ecoar na memória coletiva como símbolos da luta por justiça e direitos humanos.
Nesta reportagem, revisitamos momentos que definiram a relação entre a polícia e as comunidades, levantando questões sobre a impunidade, os direitos humanos e a busca por justiça em um estado marcado pela desigualdade.
Geovane Mascarenhas
No fim da tarde de 2 de agosto de 2014, Geovane Santana dos Santos, de 22 anos, foi abordado de maneira brutal pela Rondesp enquanto pilotava sua moto na Rua Nilo Peçanha, na região da Calçada, em Salvador. O jovem foi levado pelo subtenente Claudio Bonfim Borges, e os soldados Jesimiel e Jailson.
Na abordagem, Geovane foi conduzido na viatura 2.2211, junto com sua moto, até a Rua Luiz Maria, próximo ao Atacadão Recôncavo. Ali, foi apresentado a uma mulher que havia relatado ser vítima de roubo. No entanto, ela não reconheceu Geovane como o autor do crime.
Minutos depois, às 17h21, uma segunda viatura, de número 2.2203, chegou ao local com mais policiais, incluindo o sargento Gilson Conceição Santos e os soldados Cláudio José, Fabio Azevedo e Jocenilton Almeida. Ambas as viaturas permaneceram na cena até às 17h25, antes de seguirem para a sede da Rondesp, no bairro do Lobato.
É nesse ponto que o caso se torna ainda mais estarrecedor. Nas dependências da corporação, Geovane foi torturado e executado. Segundo a denúncia apresentada pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MPE), os policiais decapitaram o jovem, mutilaram seu corpo, incluindo a remoção das mãos, genitália e partes das tatuagens, numa tentativa de dificultar sua identificação.
Horas após a execução, às 21h, um grupo de policiais deixou a sede da Rondesp em duas viaturas, 2.2204 e R-10. Entre eles estavam Cláudio Bonfim, Jesimiel, o sargento Daniel e os soldados Roberto, Alan e Alex. O corpo mutilado de Geovane foi transportado até a Travessa São Rafael, na Rua das Casinhas, próximo ao Parque São Bartolomeu. No local, os acusados atearam fogo no cadáver, abandonando-o em uma casa sem moradores.
No dia seguinte, o corpo foi encontrado por moradores da região. A motocicleta e o celular de Geovane também foram subtraídos pelos policiais, conforme a denúncia. A brutalidade do caso chocou a população e levantou questionamentos sobre a conduta da polícia baiana.
Após quase 20 dias procurando Geovane, seu pai descobriu que um corpo decapitado, que tinha sido encontrado no Parque São Bartolomeu, que estava no Instituto Médico Legal pertencia ao seu filho. Para provar que seu filho havia desaparecido após uma abordagem policial, o pai foi até o bairro da Calçada onde encontrou imagens de uma câmera de segurança que mostra seu filho sendo abordado, agredido e levado pelos policiais.
Apesar das tentativas dos acusados de encobrir seus atos, a tecnologia foi decisiva para elucidar os fatos. Durante a abordagem inicial, os policiais desligaram o GPS da viatura 2.2211 e cortaram a fiação da câmera instalada no veículo. Contudo, o sistema de rastreamento continuou emitindo sinais para uma central localizada em outro estado. Além disso, os radiocomunicadores portáteis e fixos das viaturas também registraram as localizações exatas dos veículos.
Essas evidências desmentiram o relatório de serviço elaborado pelos policiais, que alegaram terem realizado rondas em locais totalmente diferentes. As provas tecnológicas, combinadas com depoimentos de testemunhas, apontaram para a responsabilidade dos acusados no sequestro, tortura e assassinato de Geovane.
O Ministério Público destacou a motivação “torpe” do crime, afirmando que os policiais agiram de maneira arbitrária, valendo-se da autoridade conferida pelo Estado para cometerem a execução. Relatos indicam que Jesimiel conhecia Geovane previamente, pois o jovem era primo da esposa de sua ex-companheira. Há indícios de que a antipatia pessoal pode ter influenciado a abordagem inicial e o desfecho trágico.
A execução de Geovane escancara a fragilidade do controle sobre as ações policiais em Salvador. Embora os acusados tenham sido presos temporariamente entre 15 de agosto e 12 de outubro de 2014, o caso lança luz sobre a violência institucional e a necessidade de responsabilização de agentes do Estado.
Para a família de Geovane, o luto é permanente, mas a esperança é de que a justiça seja feita. E para a sociedade, o caso é um lembrete doloroso de que a luta contra os abusos policiais continua longe de terminar.
Quatro anos depois do crime, em 2018, foi decidido que seis dos 11 policiais militares denunciados pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) por suspeita de envolvimento na morte de Geovane Santana Mascarenhas iriam a júri popular. Após idas e vindas, houve a decisão da juíza Gelzi Maria Almeida de Souza, do 1º Juízo da 1ª Vara do Júri, para o veredito popular. A última decisão é de 2023, mas o júri ainda não aconteceu.
Vão a júri Cláudio Bonfim Borges; Jesimiel da Silva Rezende; Daniel Pereira de Sousa Santos; Alan Morais Galiza dos Santos; Alex Santos Caetano; Roberto dos Santos Oliveira.
Os demais policiais foram inocentados pela Justiça por “inexistência de indícios suficientes de autoria”. Os 11 policiais respondem ao processo em liberdade e, conforme a PM, desempenham atualmente funções administrativas. Todos foram denunciados pelos crimes de sequestro, roubo e homicídio qualificado por motivo torpe e sem possibilidade de defesa da vítima. Dos onze, seis policiais ainda foram denunciados por ocultação de cadáver.