Ciganos reféns da marginalidade histórica

Ciganos

CiganosFoto: Felipe Ribeiro/Folha de Pernambuco

Arraigados de folclore, os ciganos estão por aí, em todos os cantos do mundo. Quem os vê sequer desconfia: se procura o estereótipo das roupas coloridas, das felizes comunidades dançantes, vai se deparar com um povo castigado, de existência quase invisível e que carrega tanto uma marginalização histórica quanto o orgulho pulsante de ser quem é. Em Pernambuco são cerca de 20 mil, do Litoral ao Sertão, a maioria da etnia kalé – parte dos quase um milhão que vivem no País desde 1514, quando aportou no Rio de Janeiro o primeiro casal deportado de Portugal.

Aos montes, começaram a chegar dois séculos depois, logo que a Coroa Portuguesa deportou ciganos para as colônias. Para Pernambuco vieram os da etnia kalé, que se espalharam, andando por todo Estado, se misturando aos locais e fundando cidades como Itambé e Petrolina. Inseridos nesse mundo, eles ainda procuram seu espaço. Ciganos estão na lista de povos tradicionais, tais como os quilombolas e os indígenas, de maioria pobre e analfabeta, e são historicamente desassistidos por poderes e políticas públicas. Existe neles o desejo claro pelo respeito e pelo reconhecimento e uma mágoa pelo preconceito que sofrem.

No Brasil, a maioria deles é católica: saídos da Índia, conta a história, os ciganos entraram na Grécia e tiveram contato com o Império Bizantino. Passados os séculos, esse povo viu muitas de suas tradições morrendo, inclusive pelos casamentos com não-ciganos, e delas lamentam principalmente a perda do nomadismo, talvez a maior de suas características. “Um cigano parado não é feliz”, sintetiza bem Abel Alves, hoje pintor de paredes em Itambé, Pernambuco.

Firmar residência não foi fácil, tampouco uma escolha. Os grupos ciganos que andavam por Pernambuco se viram obrigados a se fixar no fim da década de 1970, porque já eram muito difíceis locais para acampar e as caravanas acabavam sempre confundidas com grupos de sem-terra e expulsas. Sedentários, passaram a ter no idioma próprio, o romani, o seu mais forte elemento identitário, juntamente com a música.

Foi por isso que recusaram a proposta do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) para que a língua cigana fosse catalogada e estudada. “Decidimos manter apenas entre nós, por proteção, depois de um acordo feito em um encontro em Souza (PB), em 2015. Mas na Universidade de Manchester (Reino Unido) tem disciplina em romani. Você pode fazer mestrado na língua dos ciganos”, comenta o presidente da Associação de Ciganos de Pernambuco (Acipe), Enildo Soares.

A Constituição Federal Brasileira não faz qualquer menção a essa população. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nunca a incluiu nos censos e as amostras para colher informações são feitas, oficialmente, apenas pela União Romani Internacional e pela Organização das Nações Unidas (ONU). Há também poucos estudos acerca dos ciganos pelas universidades brasileiras; a UFPE, com seis pesquisas, é a que concentra o maior número. Uma delas, em curso, é a do biólogo e mestrando em Biologia Vegetal Ricardo Lobo, que cataloga ervas

usadas por essas populações: não há cultivo, mas coleta das plantas que nascem espontaneamente no meio ambiente e o uso pelo conhecimento passado pelas gerações. A pesquisa de Lobo, inédita no País, ajuda a reconhecer as contribuições ciganas e a perceber que a ciência deles pode se perder com o tempo, na falta de continuidade. “Preciso ir em busca dos mais velhos, já que os mais novos não conhecem essas aplicações”, comenta o pesquisador.
A presença cigana existe desde sempre e as mudanças do trato com eles progridem, embora incipientes. Há seis anos, segundo Enildo Soares, a lei passou a garantir-lhes acesso à saúde e à educação. Há também um Projeto de Lei, do deputado Isaltino Nascimento, que pretende incluir os ciganos como cotistas em concursos públicos do Estado e no vestibular da Universidade de Pernambuco (UPE). Recentemente, a Secretaria Estadual de Saúde iniciou um trabalho inédito para tentar compreender a realidade dos vários grupos ciganos e combater o racismo institucional, que ainda existe, e verificar como funcionam, para eles, os serviços públicos de saúde. “Foi durante o Governo Lula que a Secretaria de Direitos Humanos começou a fazer reuniões com ciganos de vários estados e a criar modelos de estatutos de associações.

Antes disso só existia a União Cigana do Brasil, que fica no Rio de Janeiro. O Governo, até então, conhecia muito pouco sobre ciganos e não tinha nenhuma documentação, nenhum mapeamento”, diz Enildo. A própria criação da Acipe – que já conta com sede, em Olinda, e estatuto interno – reforça o canal de diálogo com o poder público e, assim, permite acesso ao que já deveria ser-lhes um direito.

Pequena

Maria José da Conceição, 102 anos, deve ser a cigana mais velha de Pernambuco, talvez do Brasil. Mora em Altinho, município no Agreste, onde a família se instalou depois que o nomadismo cigano cessou por aqui, no fim de década de 1970. Mora num quartinho minúsculo e quente, anexo à casa de um sobrinho. “Pequena é moça velha, nunca casou”, diz ele. Atravessando a conversa, ela completa, encerrando o assunto: “sou do caritó velho mesmo. Ajeitaram muitos, mas não quis saber de casamento não, que não dá futuro pra ninguém. Vão tudo beber cachaça e meter o pau na gente”.
A voz de Pequena é fraquinha, quase foge, mas ela faz força para dizer o que quer. Cega (devido a um sarampo, segundo os parentes) e quase surda, ela é vaidosíssima, mantendo-se sempre vestida como manda sua tradição, saião e cores. Conta que nasceu em Pombal, Sertão da Paraíba, e sobre esse passado, lembra da vida nômade. “Esse negócio de dormir em cama me deixou doente, colchão velho acaba a pessoa. Eu dormia em um chão forrado e nunca tive uma dor de cabeça! Cama é coisa de defunto”, reclama. É compreensível. Para alguém que viveu pelo mundo, conformar-se apenas à costura e ao rádio é um verdadeiro suplício. Mas Pequena, no alto do seu século de vida, ainda não desistiu de retomar sua natureza cigana. “Tenho fé em Deus que vou ficar boa dos meus olhos e vou embora, andar no meio do mundo. Tenho fé que ainda vou longe.

O que eu mais queria eram meus olhos e meu cabelo de volta, que cortei tudo (eram longos, mas ela cortou, com raiva dessa situação toda). Tenho mais nada na vida… a vida da pessoa é a vista, um cabelo grande, uma roupa bem feita”.


Irmãos ciganos
“Pode-se dizer que nasci no Paulista. É que quando a gente ‘andava’, nascia num canto e era registrado em outro”, conta Eliezer Francisco Dantas, o Antônio Seresteiro e vice-presidente da Acipe. Carrega, com o irmão Salathiel, a música e o circo, duas das grandes tradições dos povos ciganos. À convite da reportagem, violões em punho, derramam um repertório vasto, empolgados. Reencontram-se na música e saem pelas ruas de Itambé até um canavial próximo, vestidos a caráter, como ciganos que são, cantando e tocando alto. Uma cena alentadora de uma cultura que pode ser perdida, se não vivida.

Salathiel Francisco Dantas, cerca de 70 anos, é homem simples, de palavras rústicas e pensamento preciso, que fala pouco e certeiro. Ouviu boa parte da conversa calado, quando o irmão Eliezer – acostumado aos discursos de quem é metido na política -, relatava que não faz muito tempo que os ciganos passaram a ter acesso aos direitos básicos e que é muito injusto que se discrimine um povo que está na raiz de tudo, como o cigano está. “O presidente que criou a capital federal, Juscelino Kubitschek, era cigano. O avó dele foi o primeiro rom a chegar em Minas Gerais”, exemplificava. Salathiel continuava atento.

Ele fora palhaço de circo. Curioso que a cara não negue, mesmo sem maquiagem, e a fala suave ateste. Só a tristeza do semblante parece não condizer com esse passado cênico. Muitas perguntas depois, uma desvenda: o que é mais difícil em ser cigano? A tristeza se acentua, o desabafo vem. “Não dá pra entender porque as pessoas – gente que lê, que estuda, que deveria ter conhecimento – podem ter tanto preconceito”. Qual a maior injustiça que seu povo sofre? “Tudo”, ele responde, sem hesitar. “De qualquer maneira, o nome de cigano é cigano e ele já paga só por isso. Aquela palavra que já vem derrubando tudo, mesmo que você não faça nada”.

Abel
Filho de um egípcio, cigano legítimo, e mãe brasileira, Abel nasceu em Limoeiro e foi nômade até os 18 anos, quando faleceu o pai. “Não sei o que ele veio fazer aqui. Na verdade, ele veio parar aqui, naquele tempo andavam muito”, comenta. Da memória, ele tira os lugares por onde passou e, o melhor deles, Rio Doce, em Olinda. Ele justifica: “foi onde fomos melhor acolhidos”.
É que no tempo em que se andava por aí, parando, no máximo, por dois dias em um local específico, a rejeição era rotina. Abel viveu forte a vida cigana, com os pais e nove irmãos, que saíam em caravanas em lombos de jumentos. “Era Orobó, Bom Jardim, tudo andando de jumento, de burro. Conheci muita coisa, andávamos tanto que só aguentavam os burros, cavalo não dava conta. Você podia sair com o jumento daqui, com um caneco d’água, que ele ia ‘simbora’”, diz. Chegava-se ao destino e antes de desmontar e levantar acampamento, o chefe do grupo ia falar com delegado, pedir permissão para que passassem a noite ali. “Alguns deixavam, gostavam de nós. Outros, não, mandavam desocupar e a gente andava a noite toda, homem, mulher, menino, tudo de jumento”.
Casando-se com não-ciganos, os ciganos foram deixando o nomadismo (outro motivo para o fim desse hábito). Hoje pintor de paredes, Abel mora com a esposa e a filha. A mulher, de 37 anos, é não-cigana, ou brasileira, como ele descreve. “A gente já misturou tudo, mas os antigos não gostavam não”, diz ele. Ela, para viver com um cigano, saiu de casa aos 16 anos sem dar satisfações. “Quando eles souberam, eu já estava voltando, grávida. Meus pais aceitaram, não tinham mais o que fazer, mas o restante da família, não. Estamos nesta casa há 20 anos e, nesse tempo todo, meu avô passava aqui na frente e não vinha aqui. Morreu sem falar comigo”, diz.
Nas andanças, os bebês nasciam ali mesmo, na barraca e, logo, seguiam com o grupo. Das atribulações, ninguém reclamava e quando era permitido o pouso, acampamento posto, as mulheres saíam para ler mãos (tradição que se perdeu entre as ciganas mais jovens) e os homens, trocas (animais por objetos, e vice-versa). Era difícil, raro mesmo, mas chegou a faltar comida e a família se virou apenas com farinha. Sem condições, Abel não frequentou a escola, é analfabeto. Como, se não passavam mais que três dias no mesmo lugar? Da infância, lembra de cochilar no lombo do jumento e ouvir a mãe dizer que se segurasse para não cair. “Ainda bate na minha cabeça de eu andar. Aquela vida de andarilho era boa e era ruim. O mais difícil era chegar nos cantos e o povo chamar a gente de ladrão, criticavam muito a gente. Agora está até melhor, mas ainda existe esse preconceito que eu nem sei de onde vem, porque sempre fomos trabalhadores. Um cigano de verdade não tem coragem de roubar nada. Pode ser preso por homicídio, briga, mas não por roubo. O legítimo cigano, não”.

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