Cinquenta anos depois do Golpe, livros trazem olhar crítico sobre feridas ainda abertas

Período que deixou marcas profundas no País ainda rende reinterpretações

Luiz Zanin Oricchio

Como seria fácil de prever, a efeméride dos 50 anos do Golpe de 1964 constitui ocasião para uma série de lançamentos. Não se pode usar propriamente o termo “comemoração” neste caso, mas datas redondas dão motivo a balanço e reflexão sobre eventos históricos importantes ou traumáticos. 1964 foi as duas coisas.

Alguns dos lançamentos mais significativos são 1964: o Golpe, de Flávio Tavares (L&PM),Ditadura e Democracia no Brasil – 1964: 50 anos Depois, de Daniel Aarão Reis (Zahar) eDitadura à Brasileira: 1964-1985 – a Democracia Golpeada à Esquerda e à Direita, de Marco Antonio Villa (LeYa).

Entre os relançamentos, um destaca-se pela importância: a tetralogia Ditadura (Envergonhada, Escancarada, Derrotada e Encurralada), do jornalista Elio Gaspari. Não se trata de reimpressão. Doze anos após a primeira edição, Gaspari incorporou bibliografia editada no período e documentação não disponível na época. Essa reedição, da Intrínseca (a primeira foi da Cia das Letras) vem também no formato digital. Os e-books têm a vantagem de remeter a vídeos e documentos.

Em sua apresentação ao volume 1 de As Ilusões Armadas – a Ditadura Envergonhada, Gaspari nota que a atualização da obra se fazia necessária por dois motivos: a divulgação das atas de duas reuniões do Conselho de Segurança Nacional, em julho de 1968, e a evidência de que o golpe contra o governo de João Goulart já vinha sendo tramado no gabinete do presidente John Kennedy, desde 1962. Um áudio registrado em 7 de outubro de 1963, portanto 46 dias antes do seu assassinato em Dallas, mostra Kennedy como um “campeão desse projeto”. Ou seja, a derrubada do governo brasileiro.

A participação norte-americana no golpe é um dos destaques do livro de Tavares, o único que se ocupa exclusivamente da deposição de Goulart. Todos os outros – e Gaspari em quatro volumes – avançam pelo período da ditadura em suas diferentes fases e presidentes – Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo. De uma primeira fase, do golpe em 1964 a 1968, quando se decreta o AI-5 e a ditadura se escancara. Das trevas de1968 até 1978, quando os atos institucionais são revogados, vem a Anistia e a transição para a democracia, que para alguns se encerra em 1985, com o primeiro governo civil, e para outros se estende até 1988, com a Assembleia Constituinte.

Por concentrada, a narrativa de Tavares é trepidante. Recria o período tenso vivido pelo País desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, passando pela posse do vice, Goulart, e seu governo atribulado e esgarçado por demandas e pressões à esquerda e à direita.

Tavares, na época, era colunista do jornal Última Hora e privava da intimidade de políticos e gabinetes de Brasília. Foi testemunha dos fatos, o que empresta ao seu relato caráter diferenciado.

Tavares destaca como Washington logo entrou no jogo da deposição de Jango pelo embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, e, mais adiante, com colaboração do seu adido militar, Vernon Walters, que deixou sua missão na Itália para conspirar contra o governo brasileiro. Detecta também a enxurrada de dólares despejada no Brasil após a reunião entre Kennedy e na Casa Branca em 1962. O dinheiro entrava pelo Royal Bank do Canadá e não pelo Bank of America para não despertar suspeitas. De acordo com o autor, mais de 200 candidatos ao Senado, Câmara Federal e Assembleias Estaduais, considerados amigos dos EUA e inimigos dos comunistas, foram beneficiados com verba generosa. Além disso, financiavam-se institutos como o IPÊS e o IBAD, que tinham função de propagar o receio ao “perigo vermelho” e preparar o clima do golpe. O fundamental era disseminar o medo, inclusive pelos filmes alarmistas.

Há um livro fundamental sobre o assunto, de Denise Assis, Propaganda e Cinema a Serviço do Golpe: 1962-1964 (Mauad, 2001).

O fato é que o golpe segue uma dinâmica implacável, quando visto em retrospecto. O comício da Central do Brasil, de 13 de março, no Rio, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em São Paulo, no dia 19, o clima terrível de tensão, com o governo apoiado por sindicatos e organizações populares, hostilizado pela classe média, alguns governadores de Estado, pelos meios de comunicação e por parte da hierarquia militar. A bomba só precisava de um estopim para explodir e ele veio no dia 25, na forma da rebelião dos marinheiros, liderados por José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, que depois se revelou um agente provocador.

Os militares interpretaram a insurreição como insuportável quebra de hierarquia, que serviu de espoleta para o golpe já armado havia muito. Quando o general Olympio Mourão Filho começou a descer com suas tropas de Juiz de Fora para o Rio, Goulart ainda pensou que pudesse segurar-se no cargo. Mas seu dispositivo militar foi caindo peça por peça e, avesso à resistência armada, partiu para o exílio. Na véspera do golpe, Washington havia enviado à costa brasileira uma força-tarefa com a finalidade de apoiar os rebeldes. Chamou-a de Operação Brother Sam. Como não foi necessária, já que o governo se desmanchara como castelo de areia, a força-tarefa deu meia-volta e retornou à base.

Havia outra alternativa? Não se sabe, e a história não trabalha sobre hipóteses. Mas, com tamanho radicalismo, uma polaridade que não comportava meios tons, o clima da Guerra Fria, os caminhos do entendimento pareciam fechados. Como escreve Elio Gaspari, “Tratava-se de buscar tamanha mudança no poder que, em última análise, durante o dia 31 de março tanto o governo (pela esquerda) como os insurretos (pela direita) precisavam atropelar as instituições republicanas”.

Jango ainda tentou um último discurso no Automóvel Clube, alternando radicalismo e conciliação. Era tarde. Precisava escolher um lado e não o fez. Pressionado pelos militares a abandonar a esquerda, negou-se. Alinhar-se radicalmente às forças populares, também lhe era demasiado. “Esse passo, de natureza revolucionária, Jango não deu”, comenta Gaspari. Indeciso e abandonado, caiu.

Essa narrativa é mais ou menos consensual, porque se atém aos fatos, porém as interpretações divergem em pontos específicos e ênfases são colocadas em lugares, pessoas e instituições diversas. Por exemplo, em Ditadura à Brasileira, Villa minimiza a participação norte-americana, ao contrário do que se lê em 1964 – o Golpe, de Flávio Tavares, que também foi correspondente do Estado. Este ainda acrescenta que o Secretário de Estado, Dean Rusk, chegou a mandar ao novo governo brasileiro a conta de US$ 20 milhões pelas despesas com a Operação Brother Sam. O embaixador Lincoln Gordon conseguiu convencer Rusk de que não ficava bem para os EUA cobrar pelo apoio a um golpe de Estado, mesmo que este viesse a pretexto de defender a democracia. No entanto, no último capítulo do seu livro, Villa garante que “a participação dos EUA nos acontecimentos de 1964 é ínfima”. Sua tese é que os radicalismos de direita e de esquerda somaram-se para produzir esse monstrengo histórico e mantê-lo em pé.

Quanto durou o período ditatorial é, também, matéria de debate. A cronologia consagrada vai de 1964 a 1985, 21 anos, ou seja, do golpe até quando toma posse o primeiro presidente civil, José Sarney, substituindo o eleito pelo Colégio Eleitoral, Tancredo Neves, que adoeceu e morreu sem assumir. Mas em seu livro, Daniel Aarão Reis entende que a ditadura brasileira durou 15 anos, de 1964 a 1979, seguindo-se um período de transição até a Constituinte de 1988. Marco Antonio Villa faz um abatimento ainda maior, considerando que o período de 1964-1968 não pode ser considerado ditatorial, mesmo que nele tenha havido uma série de atos institucionais, cassações e limitações à sociedade civil. Ditadura, para ele, só após o AI-5.

A questão da cronologia não é neutra. De acordo com Aarão Reis, considerar ditadura da derrubada do governo Goulart ao momento em que um civil reassume a presidência equivale a limitar tanto o golpe como o regime exclusivamente ao âmbito de responsabilidade militar. Sua tese é de que houve um consórcio entre militares e civis que permitiu a vitória do golpe de Estado e o estabelecimento do regime, no qual os militares ocupavam o topo da pirâmide do poder, mas não eram seus exclusivos beneficiários e mantenedores. Em narrativa crítica e enxuta, Reis toca nesse ponto incômodo, o de que não existem ditaduras sem coniventes e colaboradores, tal como sucedeu na Alemanha nazista, na França ocupada ou no fascismo italiano.

Aconteceu também aqui no Brasil. E se esse período traumático e recente ainda enseja tanta paixão e reinterpretações é porque deixou fundas marcas no Brasil, feridas abertas ainda hoje, com muitos dos seus protagonistas vivos e atuantes. Características de 1964, como a polarização sem trégua e o instinto golpista ainda sobrevivem entre nós, com outras roupas. Sente-se nesses livros, porém, que a pura paixão, ainda que presente em suas páginas, concede espaço à racionalidade, sem a qual não se compreendem os traumas e nem mesmo a ventura de um país.

Como diz Reis no belo enganche final de sua obra, “não há como se libertar da ditadura sem pensar nela… e o pensamento crítico pode constituir a melhor defesa da democracia.” Este poderia ser um ponto de consenso entre autores tão divergentes.

Fonte: Estado de S. Paulo

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