Com número recorde de 16 sinos, Conceição da Praia foi por séculos o ‘alarme da Bahia’

Clarissa Pacheco/Correio da Bahia
Torre principal, a do Santíssimo Sacramento, tem cinco sinos, incluindo o Crux Benedicta, ao fundoTorre principal, a do Santíssimo Sacramento, tem cinco sinos, incluindo o Crux Benedicta, ao fundo (Foto: Nara Gentil/CORREIO)
Ofício dos sineiros praticamente não existe no estado; sistema vai automatizar movimento das cordas e recolocar sinos em movimento

O espaço é estreito, escuro e, entre um bloco e outro, empoeirado. Não fosse um vão circular embaixo dos 123 degraus que levam à torre vizinha à Ladeira da Preguiça, ficaria até difícil imaginar como foi que Conceição, Natividade, Anunciação e Assunção chegaram no topo da Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador, em 1866, pesando algumas toneladas. Estes são os nomes dos quatro grandes sinos de bronze que ocupam a torre esquerda da igreja. No mesmo campanário, há mais cinco, e eles também têm nomes – uma tradição europeia de homenagear e legar para a posteridade: Manoel, Joaquim, José, Santana e Rosa Mística. Na torre ao lado, a do Santíssimo Sacramento, há mais sete sinos, dois com nomes conhecidos: Santíssimo Sacramento e Crux Benedita.

Sim, a Basílica da Conceição da Praia tem 16 sinos em duas torres – o maior número em Salvador – e, nos séculos passados, eles tocavam para anunciar de tudo: as horas, as chegadas de reis, de bispos e nobres, chamar para solenidades, festas, informar obre vida e de morte (veja ao lado). Mas faz muito tempo que não se ouve as badaladas de todos eles de uma só vez. Para isso, seriam necessários, pelo menos, dois sineiros – um ofício tradicional em cidades mineiras, mas já quase inexistente na Bahia.

Carrilhão com cinco sinos na Torre Conceição: foram instalados em 1867 e receberam os nomes de Manoel, Joaquim, José, Santana e Rosa Mística; a mesma torre mais mais quatro: Conceição, Natividade, Assunção e Anunciação
(Foto: Nara Gentil/CORREIO)

O último homem a exercer oficialmente este ofício na Basílica morreu há 40 anos. Hoje, quando os sinos da Conceição tocam, só se ouve o som de uma torre, o que vai mudar a partir do final de janeiro.

Um sistema eletrônico será instalado no local para automatizar o movimento das cordas que fazem com que os imensos sinos de bronze toquem. O sistema não vai substituir os sinos, mas possibilitar que os badalos sejam acionados sem esforço, tocando as notas de cada um. As badaladas da Ave Maria e de outras músicas sacras poderão ser ouvidas duas vezes ao dia – às 12h e às 18h – ou quando a igreja quiser. É a primeira vez que isso vai acontecer no Brasil.

O sistema que alcança as notas musicais de cada sino foi desenvolvido na Itália a pedido de uma igreja russa. Agora vem para a Bahia. O projeto é da Secretaria de Turismo da Bahia (Setur), coordenado pelo historiador Rafael Dantas.

“Aqui em Salvador temos muito mais sinos e a tradição era muito mais forte. Mas, por algum motivo, os sineiros foram rareando. Isso também está atrelado à deterioração das igrejas, torres e sinos com o passar dos anos”, afirma Rafael. É ele quem explica como funciona o mecanismo de cordas e pedais que, ainda hoje, permite que uma só pessoa acione os nove sinos de uma das torres da Conceição da Praia de uma só vez.

“O sineiro usa os pedais para tocar os quatro sinos maiores e, puxando as outras cordas com as mãos, dá as notas para cada um dos outros cinco sinos do carrilhão”, afirma.

O problema é que, hoje, a igreja não tem um sineiro oficial, mas dois funcionários antigos que acabaram aprendendo algumas notas ‘de ouvido’.

Pedais e sistema de cordas permite que uma única pessoa toque, ao mesmo tempo, os nove sinos da Torre Conceição; cada sino tem uma nota musical
(Foto: Nara Gentil/CORREIO)

O secretário de Turismo da Bahia, Fausto Franco, teve a ideia de reativar os sinos durante uma viagem ao exterior, quando percebeu que, em outros lugares, a tradição permanecia. “Eu marquei uma audiência com o arcebispo, ainda era Dom Murilo Krieger, e ele adorou a ideia, mas disse que era difícil, porque a maioria das igrejas têm as cúpulas, onde ficam os sinos, deterioradas, e a profissão do sineiro na Bahia praticamente não existe”, explica o secretário.

Ele descobriu uma empresa sediada no Rio de Janeiro, certificada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que oferecia o serviço. Sete igrejas na Bahia – seis em Salvador e um em Trancoso – já têm o sistema, mas eles não tocam músicas sacras. Também será a primeira vez que 16 sinos serão reativados de uma vez – as outras igrejas tinham, no máximo, quatro.

“A Conceição da Praia é a única igreja de Salvador com 16 sinos. Com o sistema, nós vamos poder tocar diferentes músicas sacras com sinos de tamanhos e pesos diferentes, o que também é inédito”, explica.

As seis de Salvador são a do Rosário dos Pretos, Graça, Santo Antônio da Barra, Ajuda, São Domingos Gusmão e Santíssimo Sacramento do Passo. Foram escolhidas, primeiro, por estar no Centro Histórico. O segundo critério foi a afinidade com os benfeitores – empresas patrocinam a instalação do sistema. O próximo a ser reativado é o da Câmara Municipal, ainda sem data.

Tempo
Lá fora, o movimento de carros e pedestres é intenso. Mas, escadarias acima até chegar aos dois campanários das torres diagonais da Conceição da Praia, a sensação é de ter parado no tempo. Os sinos lá de cima atravessaram séculos: foram feitos no XVIII, XIX e XX, alguns para substituir outros ainda mais antigos.

As imensas peças fundidas em bronze, uma delas com 1,2 metro de diâmetro, carregam os nomes das pessoas que as ofertaram, do responsável por fundi-las e da cidade onde foram feitas. Os quatro sinos maiores da Torre da Conceição, por exemplo, foram ofertados pelo juiz e negociante português Manoel de Carvalho Oliveira e têm seu nome gravado lá. Foi ele quem os mandou batizar com os nomes de Conceição, Natividade, Anunciação e Assunção, em homenagem aos importantes acontecimentos de Maria.

Os outros cinco sinos, chamados de Manoel, Joaquim, José, Santana e Rosa Mística, têm o mesmo monograma e foram feitos por um fundidor português, trazido à Bahia para ensinar o ofício na cidade. Os sinos da Torre do Santíssimo Sacramento foram feitos por um baiano, um dos maiores mestres fundidores da Bahia: Manoel de Vargas Leal.

Sinos feitos nos séculos XVIII, XIX e XX estão até hoje na Conceição da Praia: eles têm monograma, nome do ofertamente, do fundidor e da cidade onde foram feitos
(Foto: Nara Gentil/CORREIO)

Em 2009, um deles, pesando 3,5 toneladas, despencou, mas foi reparado na Base Naval de Aratu e retornou ao local. De tão grande, o sino não coube no campanário da torre e a pedra precisou ser degastada para que a peça passasse, aponta Rafael Dantas. As marcas do tempo sinalizam que as peças atravessaram séculos, e tiveram um papel importante na vida da cidade.

“Ao longo de mais de dois séculos, os sinos da Conceição foram o ‘alarme da Bahia’, sinalizando a chegada de visitantes ilustres, mortes, pandemias, incêndios e solenidade. Além de toda a relevância nas atividades litúrgicas, o toque dos sinos são elementos chave no processo de sociabilidade na Cidade do Salvador”, explica Rafael.

Quando os sinos dobram
Em plena atividade, os sinos da Conceição da Praia eram considerados os melhores da Bahia no início do século XX. A avaliação foi do historiador Silva Campos, conhecido como o historiador dos sinos da Bahia. E não só pelo conjunto, mas pela qualidade e perícia dos sineiros. Na época, chegou a dizer: “Dá para ouvi-los no silêncio da noite, em véspera de festa, bem como na frescura solaçosa das manhãs de domingo, ou dia santificado”.

Em dias festivos, eram necessários cinco homens para tocar os sinos da igreja. É o que também consta no livro ‘Um acervo Raro: Inventário da Biblioteca Monsenhor Manoel de Aquino Barbosa’, organizado por Vanilda Salignac Mazzoni, Alícia Duhá Lose e Jorge Augusto Alves da Silva, em referência a outra anotação de Silva Campos.

“O ‘dono da casa’ prepara umas garrafas de jenipapo, e lá vae badalo com entusiasmo, no decorrer do concerto”, diz um trecho do livro.

Até Jorge Amado escreveu sobre os sinos da Conceição da Praia, em ‘Capitães da Areia’: “Os sinos da igreja da Conceição da Praia chamam as mulheres de véu que passam apressadas”. Hoje, os sinos da Basílica tocam em algumas datas específicas. “Na Festa da Conceição, dia 8 de dezembro, na Elevação do Santíssimo, na Lavagem do Bonfim, na entrada dos noivos”, explica a juíza da Irmandade da Conceição da Praia, Marília Gabriela Dias. Por ano, são realizados entre 15 e 20 casamentos na Basílica, mas já há 45 agendados para 2021.

Os 16 sinos da Conceição da Praia já foram considerados os melhores da Bahia
(Foto: Nara Gentil/CORREIO)

Ela também aguarda ansiosa pelo toque simultâneo dos 16 sinos. “Quando acontecer, vamos comemorar com missa!”, brinca. De fato, o repique dos sinos feito hoje é diferente do som que sineiros antigos produziam. Como a igreja não tem mais um sineiro de ofício, quem acaba subindo nos pedais e puxando as cordas em ocasiões especiais são dois funcionários antigos da Basílica, os irmãos José e Roque Gonçalves. A juíza da Irmandade afirma que os dois são conhecidos como os baluartes da Conceição da Praia.

Seu Roque conta que estudou por lá e desde criança anda pela igreja. Como fucionário, lá se vão 40 anos. De lá para cá, aprendeu com o antigo sineiro a tocar as cordas e viu duas visitas do papa João Paulo II em Salvador – em 1980 e em 1991. Na última, em outubro de 1991, quando o Papa João Paulo II fez uma visita apostólica a Salvador e rezou o Angelus na Basílica, seu Roque estava lá. Ele conta que tocou a Ave Maria nos sinos. Em seguida, o papa aplaudiu e abençoou a igreja.

O irmão, Seu José, também assume a função em ocasiões especiais. Mas, quando perguntado se atua como sineiro, nega. “O último sineiro de verdade que teve aqui foi Pedro Silva Carvalho, até novembro de 1980, quando ele morreu”, conta o senhor, que está há 40 anos na igreja e é hoje o coordenador de manutenção.

Para Rafael Dantas, o ‘sumiço’ dos sineiros em Salvador tem a ver com o crescimento da cidade. Segundo ele, os sinos das igrejas começaram a competir com outros barulhos urbanos e com outros marcadores de tempo, inclusive os relógios, como o de São Pedro, já que uma de suas funcionalidades era, justamente, marcas as horas. “Sem a necessidade do toque do sino, o sineiro perde sua relevância e acaba rareando”, afirma.

Marcação da vida
Marcar as horas não é a única funcionalidade dos sinos. “Na verdade, os sinos não são só marcadores de horas, são marcadores de vida. Por exemplo, durante grandes epidemias na história, os sinos marcavam os falecimentos e aterrorizavam as pessoas da cidade, porque durante as pandemias os sinos não paravam de tocar”, explica a historiadora Luciana Onety, coordenadora do curso de História da Unijorge.

Ela lembra que, durante uma grande epidemia de febre amarela em Salvador, houve um pedido para que os sinos parassem de tocar.

“Quando a gente teve a epidemia da bicha, a febre amarela, morriam dezenas de pessoas diariamente. A população pediu para pararem de tocar os sinos porque as pessoas ficaram aterrorizadas”, afirma.

Segundo Rafael, os sinos tocaram em outras epidemias ao longos dos século XIX e XX, de cólera de peste: “Era uma forma de anunciar a tragédia. Tinham dias que os sinos tocavam sem parar”. Este ano, em São João del-Rei, Minas Gerais, foi feito o toque de penitência – no sino do meio -, o mesmo usado na Quaresma, para que as pessoas ficassem em casa por conta da pandemia do coronavírus.

Relógio da Conceição da Praia já não tem os ponteiros; ele fica ao lado da Torre Conceição, do lado esquerdo
(Foto: Nara Gentil/CORREIO)

Em Ouro Preto e outras cidades mineiras, os sinos ainda marcam vida e morte. Os moradores mais antigos até reconhecem que algo de diferente aconteceu a depender do toque dos sinos. “Aqui em Ouro Preto, a hora do Angelus é 12h, 15h e 18h, é o horário que os sinos tocam todos os dias. Quando toca de repente, o pessoal já sabe que alguém das irmandades morreu. Para cada situação tem um toque e os mais velhos têm um ouvido impressionante. Sabem se a pessoa que morreu é homem, mulher, criança, padre, bispo”, afirma o sineiro Arthur Carneiro, 24 anos – 12 anos de ofício.

Enquanto, em Salvador, faltam sineiros, em cidades históricas de Minas Gerais, quase sobram. O ofício é reconhecido como patrimônio pelo Iphan. São João del-Rei, por exemplo, é conhecida como a cidade dos sinos. E Ouro Preto, mesmo tendo reduzido a quantidade quase à metade na última década, ainda tem mais sineiros do que igrejas. São 30, para 21 igrejas e capelas. Há 12 anos, eram 60 sineiros.

“É uma tradição passada de pai para filho. Tem uns sineiros mais novos que devem ter começado há um ano, um ano e meio, e devem ter no máximo 10 anos de idade. E tem os veteranos”, conta Arthur, que é filho e sobrinho de sineiros.

“Os sinos daqui também são dos séculos XVIII e XIX, então a gente tem a honra de escutar o sino que foi escutado por Aleijadinho, por Tiradentes. Figuras importantes daqui ouviram o mesmo sino que a gente ouve hoje”, conta.

Em Ouro Preto, os sineiros não recebem salários, apenas uma gratificação simbólica, em algumas ocasiões, paga pelas irmandades – chega, no máximo, a R$ 100. Em São João del-Rei, os sineiros recebem salário e um adicional de insalubridade, pela exposição constante aos mais de 50 decibéis.

São João del-Rei, em Minas Gerais, é conhecida como a cidade onde os sinos falam
(Foto: Lucas Silveira/Diocese de São João del-Rei)

O toque dos sinos

O ofício do sineiro é reconhecido como patrimônio pelo Iphan desde 2009, quando foi inscrito no Livro de Registro de Saberes. Os sineiros antigos ensinam o trabalho aos mais novos e avisam: sino é música, é ritmo. Conheça a diferença entre os toques:

Missas: Pancadas seguidas no sino pequeno. Uma pausa seguida de quatro toques indiicam que ocelebrante é local

Festas santas: Repique (só o badalo bate, com o sino parado), às 20h da véspera

Natal: Dobres às 22h, 23h e 23h do dia 24 de dezembro. Ao final da missa, repique de sinos.

Mortes e enterros: As chamadas para os enterros de membros de irmandades têm 18 pancadas no sino grande. Nos enterros, são três dobres (quando o sino cai para o lado do badalo) para homens, dois para mulheres e repiques festivos para crianças. Para Papa, Bispo e Vigário são feitos dobres nos sinos grande, médio e pequeno, nesta ordem

Calamidades: Pancadas descompassadas no sino grande e depois no médio. Serve para avisar de algo anormal, como incêndios

Partos: Nove toques no sino médio, até o nascimento

Fonte: Joyce Kimarce e documentário Entoados

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