Como cientista brasileiro revelou ‘verdadeiro rosto’ de Santo Antônio
Edison Veiga
Considerado o santo católico mais popular do Brasil, Santo Antônio de Pádua acaba de ganhar uma representação, feita a partir de métodos científicos, que seria o mais fidedigno retrato dele em vida.
A imagem, publicada nesta semana na revista acadêmica Digital Applications in Archaeology and Cultural Heritage, do grupo Elsevier, foi desenvolvida pelo designer brasileiro Cicero Moraes, um pesquisador independente com vasta experiência em reconstituições faciais de personalidades históricas, em parceria com o arqueólogo italiano Luca Bezzi, do grupo de estudos arqueológicos Arc-Team, e o antropólogo italiano Nicola Carrara, responsável pelo Museu de Antropologia da Universidade de Pádua.
Todo o conteúdo foi revisado pelo padre Luciano Bertazzo, do Centro de Estudos Antonianos de Pádua.
Criada em modelagem tridimensional, a imagem do santo representa como deveriam estar suas feições em seu último ano de vida, ou seja, a de um homem branco europeu na faixa dos 40 anos com um quadro de obesidade provavelmente decorrente de hidropisia, um acúmulo anormal de fluidos nas cavidades naturais do corpo.
Diversas documentações antigas atestam que Antônio sofreu com esse quadro de saúde no fim de sua vida, como este repórter relatou no livro Santo Antônio: A história do intelectual português que se chamava Fernando, quase morreu na África, pregou por toda a Itália, ganhou fama de casamenteiro e se tornou o santo mais querido do Brasil, lançado pela Editora Planeta em 2021.
Na verdade, hidropisia era como, em tempos de medicina precária, eram descritas uma série de patologias que causam edemas generalizados.
É citada nominalmente na Bíblia, no Evangelho de Lucas, e também na obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321). Provavelmente, o religioso tinha insuficiência cardíaca congestiva, que acarreta um sério problema circulatório.
A representação de Antônio também procurou enfatizar um certo aspecto envelhecido, decorrente de sua vida de mortificações de caráter religioso, os intensos jejuns a que ele se submetia e sua alimentação pobre em ferro.
Características físicas do santo
Além de diversas fontes bibliográficas, o designer teve acesso ainda a laudos médicos obtidos a partir de uma exumação científica realizada, a mando do Vaticano, em 1981 dos restos mortais de Antônio, sepultado na basílica erguida em sua honra em Pádua, no norte da Itália.
No artigo publicado nesta semana, ele cita alguns dados curiosos desses laudos, por exemplo o fato de que “o santo tinha um volume cerebral bem acima da média atual” e também de que “sua altura girava em torno de 1,70m”.
“Nenhum sinal visível de cárie foi encontrado nos dentes, que estavam em boas condições, contendo apenas uma periodontite nos incisivos”, diz o texto.
“A análise das coroas dentárias e atrofias das bordas alveolares indicaram uma idade de 35 a 40 anos, com idade à morte medida em 40 anos e dois meses”, prossegue o artigo.
A exumação realizada 40 anos atrás também revelou “a presença de criba orbitalia”, uma lesão óssea que “poderia indicar deficiência de ferro na dieta”.
“O santo também tinha um quadro de osteoartrite no quadril, mas não evoluiu a ponto de lhe causar grandes problemas”, aponta ainda o documento recém-publicado.
Duas reconstituições faciais do mesmo personagem
Esta é a segunda vez que Cicero Moraes faz um trabalho de reconstituição facial de Santo Antônio.
E o resultado, acreditam os envolvidos, é o mais realista já feito acerca do santo. Isto porque o designer teve acesso a mais elementos históricos, laudos médicos da exumação anterior e uma tecnologia mais atual nas modelagens.
Em conversa com a reportagem da BBC News Brasil, Moraes conta que sua ligação com a temática antoniana começou em 2013, quando ele foi contatado pelo arqueólogo Bezzi e pelo antropólogo Carrara.
“[A missão era] para modelar 25 aproximações faciais para uma mostra em Pádua, 20 relacionadas à evolução humana e cinco relacionadas a figuras históricas”, recorda ele.
“Dentre as figuras históricas estava Santo Antônio. Aí surgiu minha história com ele.”
“Inicialmente, eu não sabia que se tratava de tal figura religiosa. Só fui informado depois que aproximei a face básica. Ou seja, tudo foi feito às cegas”, conta Moraes.
Este desconhecimento do objeto era importante para que ele não fosse influenciado pelo imaginário pré-existente acerca do santo.
“Depois que fiquei sabendo, descobri uma série de relações do santo com a minha história de vida. O nome do meu avô, Antônio Pagliari, foi uma homenagem ao santo”, diz Moraes, que é ateu.
“O nome do hospital onde nasci, era Santo Antônio, que também o padroeiro de minha cidade natal, Chapecó, em Santa Catarina. E Santo Antônio também é o padroeiro da cidade onde eu vivo hoje, Sinop, no Mato Grosso.”
Autor de 93 trabalhos de reconstituição facial, sendo 22 de figuras religiosas e 71 de outras figuras históricas, Moraes dedicou-se a essa atualização da face de Santo Antônio nos últimos meses com uma abordagem muito mais completa.
“Em 2014, utilizei abordagens apenas de terceiros, basicamente técnicas desenvolvidas entre 1920 e 1980. Já na aproximação atual, eu utilizei muitas abordagens desenvolvidas por mim em parceria com outros acadêmicos”, explica.
“Tais técnicas utilizam dados estatísticos extraídos de tomografias de pessoas vivas e dados estruturais dessas tomografias, como a deformação e adaptação anatômica”, exemplifica ele, que recorreu a um banco com centenas de tomografias.
“Isso resulta em faces anatomicamente muito mais compatíveis e coerentes com a realidade.”
“Em linhas gerais, o rosto atual parece muito mais humano do que o anterior. Aos poucos, a técnica vai melhorando. Sem deixar de lado os conhecimentos adquiridos no séculos passado, mas pavimentando umas boa estrada para o melhoramento futuro da mesma”, analisa o designer.
Tecnicamente, segundo ele, “a versão de 2014” apresentava “mais dados na linha de perfil, mas não na distribuição geral da face”.
“A técnica atual contempla boas referências no rosto todo e referências fundamentadas por estruturas anatômicas reais, advindas de tomografias computadorizadas”, diz.
O texto científico afirma que “para comparar as aproximações feitas em 2014 e 2022, as duas malhas 3D foram sobrepostas de forma a ocupar o mesmo espaço e permitir a visualização do corte dos dois perfis”.
“Ao analisar os perfis sobrepostos das duas estruturas, fica evidente a compatibilidade das aproximações, uma vez que ambas geraram uma face com características semelhantes”, acrescenta.
“Porém, ao observar as malhas externamente, é possível atestar que a aproximação de 2022 possui uma estrutura mais compatível com a anatomia real de uma face, pois seguiu os parâmetros de uma face real.”
A idade da morte
Conforme enfatiza o artigo recém-publicado, a partir dos laudos produzidos pela equipe médica que realizou a exumação em 1981, tudo indica que Santo Antônio morreu aos 40 anos. Esta informação é muito importante quando se pretende traçar, com correção, uma biografia precisa acerca da figura religiosa.
Isto porque, oficialmente, o santo — cujo nome de batismo era Fernando, tendo assumido a identidade de Antônio apenas depois de abraçar a vida religiosa — nasceu em Lisboa em agosto de 1195.
Contudo, em um tempo de parcos registros, não há documento conhecido que ateste sua data de nascimento. Foi uma informação que chegou até os dias atuais por tradição religiosa, e não por lastro documental.
Entretanto, como alguns estudiosos da vida antoniana já apontavam, considerar seu nascimento em 1195 causa algumas estranhezas em datas, estas sim documentadas, de sua vida adulta.
“O homem sepultado ali em Pádua tinha pelo menos 40 anos quando partiu desta vida”, escrevi, no livro Santo Antônio.
“Como a data da morte é extensamente registrada e comprovada [13 de junho de 1231], a hipótese mais aceita é de que ele tenha nascido alguns anos antes, muito provavelmente no fim dos anos 1180.”
“Esse retrocesso cronológico torna muito mais verossímeis as outras passagens consideradas corretas de sua biografia — como sua idade quando havia ingressado na vida religiosa, quando tentou pregar no Marrocos, quando chegou à Itália e quando viveu na França”, conclui o trecho do livro.