Como o debate sobre reparações pela escravidão voltou a ganhar força nos EUA
Desde que em 1865, ao fim da Guerra Civil americana, um general da União prometeu “40 acres e uma mula” às famílias negras que haviam sido escravizadas nos Estados Unidos, a questão de reparações financeiras pela escravidão é debatida no país.
A ordem emitida pelo general William Sherman em janeiro daquele ano previa que 400 mil acres de terras confiscadas dos confederados fossem redistribuídos entre os ex-escravos, recém libertos, em lotes de 40 acres por família. Eles também teriam direito a uma mula.
A promessa nunca foi cumprida, e o breve período da Reconstrução, em que houve iniciativas para garantir direitos iguais à população negra, fracassou e foi seguido por décadas de segregação e terror racial, que agravaram ainda mais a desigualdade econômica entre americanos negros e brancos.
Nesses mais de 150 anos desde a promessa dos “40 acres e uma mula”, a ideia de que o governo deveria pagar compensação financeira pelos dois séculos e meio de escravidão e pelas décadas de discriminação racial que se seguiram sempre esteve presente nos Estados Unidos, em alguns períodos com maior ênfase do que em outros.
Mas, recentemente, há um novo interesse nesse debate, em um momento em que as disparidades raciais no país ficaram ainda mais claras em meio à pandemia de covid-19 (a doença causada pelo coronavírus) e a crise econômica, que afetam desproporcionalmente a população negra.
Desde o final de maio, protestos contra o racismo e a brutalidade policial contra a população negra – desencadeados depois que George Floyd, um homem negro, foi morto sob custódia de um policial branco – levaram centenas de milhares de pessoas às ruas em todo o país e se espalharam pelo mundo.
Nesse contexto, o tema das reparações tem aparecido nas plataformas de vários candidatos, tanto negros quanto brancos, que disputam vagas no Senado, na Câmara e outros cargos públicos nas eleições deste ano. Até mesmo Joe Biden, que deve ser o candidato democrata à Presidência, disse neste mês que apoia a realização de estudos sobre o assunto.
“É o maior nível de debate nacional sobre reparações que já vi na minha vida. E talvez desde a Era da Reconstrução. Dos últimos 150 anos”, diz à BBC News Brasil o economista William Darity, professor da Duke University, na Carolina do Norte, e coautor do livro “From Here to Equality: Reparations for Black Americans in the Twenty-First Century” (“Daqui à Igualdade: Reparações para Americanos Negros no Século 21”, em tradução livre).
Mudança
Darity ressalta que a “mudança de clima” em torno do debate sobre reparações começou já no ano passado, quando o tema foi citado por vários dos pré-candidatos que buscavam a indicação do Partido Democrata para concorrer à Presidência – entre eles Julián Castro, Beto O’Rourke e as senadoras Kamala Harris e Elizabeth Warren.
“O fato de que havia candidatos presidenciais mencionando o termo ‘reparações’ era surpreendente”, afirma o economista.
Segundo Darity, até então essa discussão costumava ficar, na maior parte, restrita à comunidade negra. “O que é diferente agora é que se tornou um debate que foi aberto ao grande público”, observa.
O congressista democrata John Conyers, morto em 2019, foi o político negro que serviu durante mais tempo no Congresso americano. De 1989 a 2017 (quando renunciou), ele apresentou todos os anos um projeto de lei que previa um estudo sobre o legado da escravidão e propostas de reparação. Mas a possibilidade de uma lei do tipo ser aprovada sempre foi considerada remota.
Recentemente, porém, iniciativas semelhantes vêm sendo adotadas por outros políticos. No ano passado, a congressista Sheila Jackson Lee reapresentou o projeto de Conyers, com o apoio da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi. Uma subcomissão da Casa realizou audiência histórica para discutir a proposta. O senador Cory Booker apresentou projeto semelhante no Senado.
A questão também vem sendo debatida por vários governos municipais e estaduais e por instituições privadas – algumas das quais estão estabelecendo fundos de reparação para compensar descendentes dos escravizados.
A historiadora Ana Lúcia Araujo, professora da Howard University, em Washington, e autora do livro “Reparations for Slavery and the Slave Trade: A Transnational and Comparative History” (ainda sem tradução no Brasil), que trata da história dos pedidos de reparações financeiras e materiais, observa que esses pedidos nos Estados Unidos são muito antigos e vêm desde o século 18.
“De tempos em tempos essa questão volta à tona”, diz Araujo à BBC News Brasil.
Ela lembra que houve um movimento muito grande de libertos que, no final do século 19, pediram pensões ao governo como forma de reparação. Uma nova onda de discussões sobre o tema ocorreu nos anos 1960.
“Nos períodos em que a questão dos direitos civis começa a declinar, os pedidos de reparação financeira têm tendência a reaparecer”, afirma a historiadora.
Tema polêmico
Pesquisas de opinião indicam que há um aumento recente no apoio da população ao movimento Black Lives Matter (‘Vidas Negras Importam’) e que 76% dos americanos consideram discriminação racial um “grande problema” no país.
Mas o tema das reparações financeiras pela escravidão ainda é polêmico. Segundo pesquisa Gallup do ano passado, 67% dos americanos são contra a ideia de que o governo deveria fazer pagamentos em dinheiro a americanos negros descendentes de escravos. Em 2002, essa taxa era de 81%. Mesmo entre a população negra, 25% são contra.
Entre os argumentos dos que se opõem às reparações estão os de que serviriam para dividir os americanos e de que a escravidão está em um passado remoto. Segundo Darity, na própria comunidade negra há quem considere que o recebimento de compensação resultaria em um tipo de “vitimização psicológica”, colocando-os na posição de vítimas.
O economista também observa que ainda há nos Estados Unidos a crença de que as desigualdades enfrentadas pela população negra são consequência “de seu próprio comportamento disfuncional” e não de questões estruturais.
“Um dos primeiros passos no processo de consolidar apoio para reparações é estabelecer claramente que o motivo pelo qual americanos negros estão em uma posição marginalizada não é seu comportamento, e sim uma história de injustiça racial que se mantém até o momento atual”, ressalta.
Impactos
Segundo defensores das reparações financeiras, os impactos da escravidão e, posteriormente, de quase um século de leis de segregação racial, ainda são sentidos e estão visíveis nas históricas desigualdades de renda e de riqueza entre os americanos negros e brancos.
Ao contrário da população branca, os escravos não podiam ser proprietários de terras (e, assim, deixar essa herança aos descendentes). Após a abolição, as leis de segregação racial impediram ou dificultaram que americanos negros votassem, estudassem, tivessem acesso a bons empregos, a financiamento ou adquirissem propriedade, entre outros obstáculos que os colocavam em desvantagem em relação à população branca.
Em diversas cidades, leis proibiam famílias negras de comprar casas em determinados bairros, fazendo com que tivessem de optar por áreas e propriedades menos valorizadas. Pesquisadores ressaltam que, quando americanos negros conseguiam adquirir algum tipo de propriedade, não era incomum que fosse roubada ou destruída. Sem proteção da lei, não tinham a quem recorrer.
“Durante e depois da Reconstrução, frequentemente, quando descendentes negros dos escravizados conseguiam conquistar algum grau de prosperidade, suas comunidades eram destruídas por massacres (perpetrados por) brancos”, observa Darity.
Pesquisadores destacam o efeito cumulativo dessas desigualdades ao longo de gerações. Darity ressalta que, segundo os dados mais recentes do governo, de 2016, apesar de os americanos negros representarem 13% da população, eles detêm apenas 2,6% da riqueza no país.
O patrimônio líquido das famílias negras nos Estados Unidos representa menos de 15% do patrimônio líquido das famílias brancas. Enquanto 73% das famílias brancas têm casa própria, essa taxa é de apenas 43% entre as famílias negras.
Propostas
Não há consenso sobre qual seria a melhor forma de levar adiante as reparações ou sobre como determinar quem teria direito, quanto e de que forma pagar.
Alguns apontam como exemplo as reparações pagas pela Alemanha às vítimas do Holocausto e pelos Estados Unidos aos nipo-americanos enviados ilegalmente a campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.
Certas propostas envolvem pagamentos diretos aos beneficiados, enquanto outras priorizam investimentos em programas que reduzam as disparidades em áreas como saúde, educação, emprego e habitação.
Há os que propõem cumprir a promessa dos “40 acres e uma mula” feita em 1865, o que, segundo alguns cálculos, custaria hoje em torno de US$ 160 bilhões (cerca de R$ 856 bilhões). Outros calculam o valor do trabalho feito pelos escravizados, sem remuneração, em comparação ao que empregados assalariados recebiam, o que somaria trilhões de dólares em valores atuais.
Para Darity, o objetivo das reparações deve ser o de acabar com a desigualdade de riqueza entre a população negra e branca. Ele calcula que seriam necessários no mínimo US$ 10 trilhões (cerca de R$ 53 trilhões), distribuídos pelo governo federal em forma de pagamentos diretos de US$ 250 mil (cerca de R$ 1,3 milhão) a cada americano negro que seja descendente de pessoas escravizadas nos Estados Unidos.
Brasil
A historiadora Ana Lúcia Araujo observa que, no Brasil, apesar de a questão das reparações financeiras ter sido mencionada já no século 19 por abolicionistas como Luiz Gama, os debates sobre o tema ganharam força mais tarde do que nos Estados Unidos, principalmente a partir dos anos 1990.
Desde então, foram adotadas medidas como as cotas em universidades ou a demarcação de territórios quilombolas. Mas, entre as iniciativas pedindo compensação financeira a descendentes de escravos no Brasil, nenhuma avançou.
Em 2014, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) anunciou a criação da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, com o objetivo de fazer uma investigação sobre o período da escravidão e discutir formas de reparação.
Seu presidente, o advogado Humberto Adami, diz à BBC News Brasil que a comissão vem avançando no trabalho de levantar pistas e provas sobre a escravidão, mas reconhece as dificuldades de debater reparações financeiras pela escravidão no Brasil e de ter uma proposta do tipo aprovada no Congresso.
“Toda vez que se começou a falar em dinheiro, os exemplos anteriores é que a conversa acabava”, afirma.