Como prostitutas foram confinadas à força no bairro do Bom Retiro em São Paulo
Eram duas ruas estreitas, que corriam paralelas, cheias de homens.
Das portas e janelas das casas geminadas, através de venezianas, mulheres vestidas com quimonos coloridos esboçavam acenos e gestos lascivos aos passantes.
“Os seus estranhos movimentos faziam-nos rir. De vez em quando deixavam entrever um pedaço de seio nu: ‘Vem cá, benzinho, vem cá!”, conta o escritor Eliezer Levin na obra Bom Retiro.
Policiais, médicos, ambulantes, mascates, funcionários públicos, comerciantes do bairro, trabalhadores da indústria de confecções e de pequenas oficinas, além de “desocupados, bandidos e muitos ébrios” buscavam prazer e diversão nas ruas Itaboca e Aimorés.
Foi ali, entre 1940 e 1953, que funcionou a zona de meretrício do Bom Retiro – a única instalada por decreto do Governo de São Paulo e que lá ficou por 13 anos.
“Essa medida trará inúmeros benefícios: não só para facilitar o policiamento, como também, por oferecer um interessante campo para estudos sociais, defendendo, ao mesmo tempo, a ordem e a moralidade públicas”, argumentava à época Ademar de Barros, interventor do Estado de São Paulo, nomeado pelo então presidente Getulio Vargas.
Com a prostituição confinada nas duas ruas, em uma tentativa de livrar as demais regiões do Centro de São Paulo da prática, a zona cresceu sem controle.
Um levantamento de 1948, parte de estudo sobre o problema da sífilis na capital paulista, apontou que havia ali cerca de 150 casas de meretrício e mais de 1 mil prostitutas.
“A maioria delas era de mulheres empobrecidas e migrantes brasileiras”, relata o historiador Enio Rechtman, autor da tese de mestrado Itaboca, rua de triste memória: imigrantes judeus no bairro do Bom Retiro e o confinamento da zona de meretrício (1940 a 1953).
“O centro da cidade na época era frequentado pela elite paulistana que não queria conviver com esses ‘tipos perigosos'”, completa o pesquisador, que ministra em agosto o curso “Bom Retiro 1938 – 1953: Meretrício confinado no bairro e imigrantes à procura de um lugar seguro”, na Unibes Cultural.
A zona do meretrício do Bom Retiro funcionou a poucas quadras de onde, oito décadas depois, o atual governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), cogitou realocar a Cracolândia – área que reúne centenas de consumidores de crack no Centro da capital paulista e se tornou uma crise complexa, que abarca da saúde e situação social dos dependentes, a questões de segurança e impacto para o mercado imobiliário.
Sob uma enxurrada de críticas e até protesto no bairro, o governo estadual voltou atrás na proposta, informando que “novas possibilidades para solucionar o problema da Cracolândia estão sendo estudadas e serão divulgadas em breve”.
Conheça a história da zona do meretrício “oficial” do Bom Retiro e de como sua memória foi apagada deliberadamente pelo poder público paulistano.
Brasil e São Paulo no fim dos anos 1930
Naquele final de década de 1930, o Brasil vivia sob o Estado Novo, fase ditatorial da Era Vargas, que durou de 1937 a 1945.
À época, Vargas ainda flertava com o fascismo – o Brasil só romperia com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) em 1942 – e nomeou Ademar de Barros como interventor para o Estado de São Paulo.
“Getúlio Vargas e Ademar de Barros nutriam ideais eugenistas [teoria baseada na genética de que seria possível criar uma ‘raça humana superior’] e higienistas”, diz Rechtman, lembrando que este período foi marcado por reformas urbanas nos centros de várias capitais brasileiras.
“Acontece que, após 1937, apesar do golpe do Estado Novo e instauração da ditadura getulista que impôs repressão e controle severo sobre costumes, a prostituição alastrava-se pelo centro da cidade [de São Paulo]”, observa Edison Loureiro no artigo O passado triste do Bom Retiro.
Na capital, a prostituição, que no início do século 20 se concentrava nas ruas Líbero Badaró e São João, no Centro da cidade, espalhou-se com o alargamento dessas vias e, em 1930, tomava a Rua Amador Bueno (atual Rua do Boticário), Ipiranga (ainda não alargada) e Timbiras, lembra o pesquisador.
Urbanização e a prostituição como ameaça
Como interventor em São Paulo, Ademar de Barros inaugurou a estação de trem atualmente chamada de Estação Júlio Prestes.
“Ele queria fazer bonito naquela região, mas, no entorno dali, havia muita atividade de prostituição”, lembra Rechtman.
As “pensões alegres” ou “casas de diversões noturnas” também incomodavam na região da Rua dos Timbiras, em um momento em que, na Avenida São João, começava a se formar a Cinelândia Paulista, local de lazer familiar, com cinemas, cafés, confeitarias e salões de dança.
“Quando São Paulo começa a se urbanizar, é o momento em que a preocupação com a prostituição cresce”, observa Margareth Rago, autora de Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930.
“A prostituição existia em outras épocas, mas não era um problema. Vira um problema para as elites quando se entende que ela seria uma má influência para as mulheres ricas e castas. E isso passa para a classe trabalhadora – também os operários vão olhar para suas esposas e dizer que ‘mulher que é mulher é rainha do lar’, vendo a prostituição como uma ameaça.”
Ademar de Barros, que era médico de formação e chegou a estudar na Alemanha e na França nos anos 1920, se inspirou então no chamado regulamentarismo francês para propor o confinamento da zona do meretrício em uma região específica da cidade.
O regulamentarismo foi criado na França no início do século 19, explica Rago.
“A ideia era que o Estado tinha que interferir no espaço urbano para definir onde deveriam ficar os marginais, os loucos, as prostitutas e as ‘pessoas normais’. Então há uma questão de poder, de interferir no território”, observa a historiadora.
“Em relação à prostituição, os regulamentaristas defendem que o Estado deve dizer onde os bordéis devem ser construídos, que tamanho eles devem ter, quantas pessoas podem estar lá. Então o Estado deveria ter um controle absoluto das ‘casas de tolerância’.”
Rago vê pontos de contato entre a iniciativa de Ademar de Barros e a ideia, já abandonada, de levar a Cracolândia para o Bom Retiro.
“Em ambos os episódios parece haver um objetivo de se agradar certos setores da sociedade, higienizando uma região e jogando um problema para outra mais afastada”, diz a historiadora.
Procurado, o Governo de São Paulo afirma que “ampliou as ações de assistência e saúde aos dependentes químicos, além de ter intensificado as atividades de policiamento no centro da capital.
Em relação ao Complexo Prates, local no Bom Retiro cogitado para a realocação da Cracolândia, o governo afirma que “a proposta está sendo revista após novas avaliações”.
Por que o Bom Retiro
No final de 1939, Ademar de Barros também escolheu o Bom Retiro para levar adiante seu plano de confinar as prostitutas em uma zona restrita – mais especificamente, as ruas Aimorés e Itaboca.
Rechtman explica a motivação geográfica para a escolha de Ademar.
“Havia o muro da estação de trem, que separava o Bom Retiro dos Campos Elíseos, um bairro de classe média alta no período, onde ficava o palácio do governo”, diz o pesquisador.
Ele lembra que, à época, o Bom Retiro era uma espécie de “periferia do Centro”, em um momento em que São Paulo ainda era uma cidade pequena.
“Aquela região era perfeita para fazer um confinamento, porque, fechando duas ruas, era possível fechar um quarteirão inteiro e controlar o fluxo de entrada e saída de pessoas.”
E assim foi feito, com a instalação de cancelas com guardas nos acessos às ruas, diz Rechtman.
“Controlava-se o movimento através da delegacia de costumes, que mantinha acompanhamento médico e fazia a profilaxia dos frequentadores através de delegacia, posto médico e farmácias locais”, conta o pesquisador.
Alguns historiadores destacam, porém, uma fala atribuída a Ademar de Barros para justificar a escolha do local: “É produto vosso, fica para vocês”, teria dito o interventor.
É que o Bom Retiro, tradicional bairro de imigração judaica, tinha fama por abrigar uma onda tardia de imigração de “polacas”, como ficaram conhecidas as mulheres judias traficadas do leste europeu para serem exploradas sexualmente nas Américas, explica Rechtman.
Desde o final do século 19, as polacas saíram da Europa e chegaram em cidades como Nova York, Buenos Aires e Rio de Janeiro.
Segundo o pesquisador, no final da década de 1920, houve um movimento de expulsão de cafetões de Buenos Aires, o que acabou levando algumas dessas mulheres a vir para São Paulo. Mais velhas e agora sozinhas, algumas acabaram se tornando elas mesmas cafetinas e donas de pensões no bairro.
“Esse é um passado que nenhuma comunidade quer lembrar”, diz Rechtman, que é ele mesmo de família judaica, nascido e criado no Bom Retiro.
Ele observa, porém, que não se deve confundir a prostituição das polacas do final do século 19 e início do século 20, com a da zona de baixo meretrício do Bom Retiro nos anos 1940.
Não só são momentos históricos distintos, como demografias diferentes – uma de mulheres europeias emigradas, outra em sua maioria de brasileiras de baixa renda, destaca o pesquisador.
A vida na zona de meretrício do Bom Retiro
“Se a expansão da prostituição para os lados da Rua dos Timbiras foi lenta, a ocupação das duas ruas do Bom Retiro foi de supetão, forçada e violenta”, relata o pesquisador Edison Loureiro.
Ele resgata um episódio que revela a transferência forçada de mulheres ao local.
“O Anhanguera Futebol Clube, um time de várzea, resolveu uma noite comemorar a vitória do campeonato na Rua Itaboca e conta seu memorialista da surpresa que [todos] tiveram quando, no meio da farra e fogos de artifício, já madrugada, chegaram os camburões com mulheres e as despejaram pelas ruas. Talvez mais de cinquenta.”
Segundo o pesquisador, os camburões da polícia simplesmente invadiam as pensões declaradas “irregulares” e, sem aviso prévio, embarcavam todos para a zona confinada.
Uma vez transferidas ao novo local, as prostitutas não ficavam presas ali, mas muitas moravam nas pensões onde trabalhavam.
“A Itaboca era para os menos favorecidos e a Aimorés, para os remediados”, relata Rechtman.
Durante o dia, a região tinha o movimento de ruas comuns, onde circulavam “leiteiros, padeiros, verdureiros, catadores de papel e vendedores dos mais variados”, segundo depoimento de Nuno Santana, colhido pelo pesquisador Guido Fonseca, autor de História da prostituição em São Paulo.
“Ao entardecer, no entanto, as mulheres iam [se] postando junto às portas e janelas como em mostruários, à espera do desfile de homens que aumentava com a chegada da noite.”
O fim do confinamento
O que o interventor de São Paulo planejou como uma solução para o problema da prostituição nas ruas da cidade só mudou o problema de lugar.
Com o passar dos anos e aumento da concentração de bares, bordéis e profissionais do sexo, também cresceu o descontentamento local com a zona de meretrício.
No seu mestrado, Rechtman recupera uma carta de leitor publicada em 8 de março de 1946 no jornal O Estado de S. Paulo. Exaltado, o senhor Valdomiro Borges Couto, autor da carta, citava diversas escolas próximas à zona, ao argumentar em favor da repressão ao local.
“Imagine Senhor Redator, que os alunos dessas escolas transitam diariamente por esta Zona, viajando de bonde ou ônibus em promiscuidade com homens e mulheres da pior espécie”, bradou o leitor.
“Par disso inúmeros ‘bars’ se abriram como satélites do ‘bas fond’ e as orgias e as brigas se sucedem diuturnamente, com assassinatos, roubos, ferimentos, etc. Não se compreende como a Polícia não tome medidas drásticas (…)”.
Respondendo ao clamor popular, em junho de 1953, o então prefeito Jânio Quadros suspendeu todos os alvarás dos bares nas ruas Itaboca, Ribeiro de Lima, José Paulino e Aimorés.
A desocupação final veio em 30 de dezembro, quando o então governador Lucas Nogueira Garcez anunciou uma ordem para extinção da zona de meretrício, às vésperas do Quarto Centenário de São Paulo, que seria comemorado em 1954 com grande pompa e circunstância.
A revolta das meretrizes
A desocupação, no entanto, não foi pacífica. No dia seguinte à ordem do governador, a polícia cercou o local, onde ainda trabalhavam pouco mais de 600 mulheres.
“Logo as mulheres começam a sair à rua e protestar, algumas gritando e rasgando as roupas. Outras atiram móveis e utensílios pelas janelas”, relata Loureiro.
“Na confusão generalizada uma prostituta chamada Antônia, moradora da Rua Aimorés, tem um colapso e morre no local. A notícia se espalha causando mais revolta.”
Furando o cerco policial, um grupo de prostitutas invadiu o comércio da Rua José Paulino e três delas foram gravemente feridas por um comerciante armado com uma barra de ferro.
A confusão só acabou com a chegada do Batalhão de Choque e dos Bombeiros, que atacou a multidão com jatos d’água e cassetetes.
Com o fim da zona no Bom Retiro, a prostituição migrou para o bairro dos Campos Elíseos, em pensões nas Alamedas Cleveland, Glete e Nothman, dando início ao período da chamada “boca do lixo” como principal centro de baixo meretrício da cidade de São Paulo.
Apagamento da memória
Para além de acabar fisicamente com a zona de meretrício do Bom Retiro, o poder público paulistano se esforçou em apagar também a memória do local.
Em 1957, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou um projeto de lei mudando o nome da Rua Itaboca para Rua Professor Cesare Lombroso.
Ao propor a mudança, o vereador autor do projeto argumentava que a Rua Itaboca era um local de “triste memória”.
A historiadora Margareth Rago observa a ironia na escolha do novo nome.
Cesare Lombroso (1835-1909), um médico e criminologista italiano, acreditava haver características físicas específicas que tornavam determinadas pessoas propensas à criminalidade.
Ele foi autor de livros como O homem criminoso (1871) e A Mulher Delinquente: A Prostituta e a Mulher Normal (1893, em coautoria com Guglielmo Ferrero).
“Para Lombroso e Ferrero, a prostituição não seria resultado de condição social, mas de distúrbios biológicos que poderiam ser identificados por traços como tamanho do queixo, posição dos olhos, construção das orelhas. A prostituta, mais do que o homem criminoso, era, nesta visão, uma degenerada”, resume a sinopse brasileira da obra de Lombroso e Ferrero.
Ao relacionar criminalidade e características físicas, a obra de Lombroso é muito criticada por ter dado um verniz científico a preconceitos, estereótipos e discriminação contra minorias.
No entanto, observa Rago, a escolha do nome é tratada com tanta naturalidade, que existe hoje, onde um dia foi a antiga Rua Itaboca, um shopping center chamado Lombroso Fashion Mall.