Como um povoado na Suíça criou sua própria língua
As margens do rio Sarine fazem divisa com a Basse-Ville (cidade baixa), dividindo o cantão e a cidade de Friburgo em dois: os que falam alemão ou francês. A cidade de cerca de 40 mil pessoas é claramente de dualidades: as placas de rua são todas em dois idiomas; os residentes podem escolher se seus filhos usarão o francês ou alemão na educação básica; e a universidade oferece até um currículo bilíngue.
No entanto, seguindo para a Basse-Ville medieval, localizada entre as divisões de línguas alemã e francesa de Friburgo, você se encontrará em uma terra de ninguém, onde as duas línguas se tornam uma só: o bolze.
Converse com qualquer cidadão suíço e você vai encontrá-lo fascinado com o tema da comunicação, provavelmente porque os idiomas são tão incrivelmente diversos nesse pequeno país. A nação é geograficamente dividida em três grandes grupos linguísticos: o sul, que compartilha os famosos lagos suíços-italianos, fala italiano; o oeste, perto de Genebra, o francês; e partes centrais e orientais do país, como Zurique e St. Moritz, têm o alemão (já o cantão do sudeste de Graubünden inclui até mesmo falantes de romanche).
Fica ainda mais confuso quando são acrescentados os vários dialetos. O franc comtois, por exemplo, é um dialeto francês falado nos cantões suíços de Jura e Berna; e o alemão-suíço é aprendido em casa e apenas usado na conversação (em oposição ao alemão oficial, que é tanto escrito quanto falado e ensinado na escola).
Entre toda essa complexidade linguística, a cidade de Friburgo (Freiburg em alemão) ainda tem o desafio de estar nas fronteiras linguísticas dos cantões de língua francesa e alemã – Vaud e Berna. Talvez por isso seja o lar de um povo que decidiu desenvolver sua própria língua.
Enquanto eu caminhava pela rua principal de Friburgo, o primeiro sinal de que me aproximava de Basse-Ville aparecia. Da parte alta da cidade, com vista para o Sarine, um funicular liga o centro da cidade a Basse-Ville, na margem do rio. Inaugurado em 1899, o “Funi” verde pastel, alimentado por 3 mil litros d’água, é o único funicular na Europa que funciona com águas residuais. A viagem de dois minutos, que ocorre ainda hoje, é tanto um símbolo da Friburgo industrial quanto uma porta de entrada para a história da cidade baixa, onde o bolze foi criado.
Embora as origens exatas da língua sejam desconhecidas, muitos acreditam que o bolze foi criado durante a Revolução Industrial no século 19, quando as pessoas começaram a migrar do campo para as cidades à medida que novos empregos surgiam no boom industrial. Como uma cidade na fronteira com vilarejos de língua francesa e suíça-alemã, Friburgo cresceu e se expandiu em um centro bilíngue, cultural e industrial para os pobres que procuravam trabalho.
“Muitos agricultores de Sense, a região próxima a Friburgo, vieram procurar emprego e encontraram condições de vida baratas no bairro de Basse-Ville. Eles achavam que a vida seria mais fácil na cidade”, explicou o guia turístico de Friburgo e especialista em bolze, Michel Sulger.
Esses trabalhadores precisavam de uma maneira de entender uns aos outros e trabalhar juntos. Então eles fundiram suas línguas maternas para criar uma nova linguagem.
Bolze é uma mistura de conversação de suíço-alemão e francês, usando os dois idiomas para criar uma versão completamente nova de idioma. Passados de geração em geração por via oral, e encontrados apenas na Basse-Ville de Friburgo, os poucos falantes de bolze só conversam entre si para continuar sua herança cultural na margem do rio e entre as paredes de pedra da vizinhança.
Difícil de acompanhar
O que é especialmente interessante sobre o idioma, no entanto, é que você deve ter comando total do francês e do suíço-alemão antes de começar a combiná-los no bolze. E mesmo aqueles que falam ambas as línguas não poderiam acompanhar uma conversa em bolze, a menos que realmente aprendessem a terceira língua, que tem seu próprio equilíbrio e ritmo linguístico, como se precariamente andasse numa corda bamba entre o francês e o suíço-alemão.
“Isso faz parte da história de Friburgo”, explicou Sulger. “A cultura bolze é feita de pessoas fluentemente bilíngues. Isso é realmente raro em Friburgo, porque geralmente falamos uma ou outra língua melhor. Aqueles que falam bolze podem realmente falar ambas e podem fazer essa mistura.”
“Isso torna os falantes de bolze especiais porque ela é falada apenas por poucas pessoas”, acrescentou.
Embora o bolze seja um mistério para as pessoas de fora – e agora é falado apenas por poucos moradores -, ele continua a ter significado para os cidadãos de Basse-Ville. Para eles, é mais que um idioma; é uma fusão de linguagem, política e cultura que surgiu através de uma história singular da Revolução Industrial. De arte e eventos organizados por Hubert Audriaz (um artista conhecido como um símbolo tanto de Basse-Ville quanto bolze) a um giro bolze no Carnaval (celebração que termina na terça-feira gorda), a cultura bolze ainda é evidente.
Hoje, devido ao fluxo de imigrantes, pelo menos 160 nacionalidades vivem no cantão de Friburgo, e mais pessoas falam o servo-croata, o albanês e o português que o bolze na Suíça. Embora idosos ainda falem bolze em suas casas e entre eles nas ruas, os mais jovens só podem aprendê-lo em casa – assim como o suíço-alemão é aprendido na família – ou ouvindo daqueles que são fluentes. Não é ensinado nas escolas, nem há aulas oficiais do idioma.
No entanto, o bolze se mantém como um sinal de ingenuidade nascido por necessidade durante a Revolução Industrial, e continua a existir como uma história viva de seu povo. As pessoas e culturas que compõem Friburgo podem ter mudado desde o século 19, mas a camaradagem intercultural que construiu a cidade está presente até hoje.
Quando desci pelo “Funi” até o Basse-Ville, os habitantes locais passavam tempo andando entre as muralhas e torres de pedra medievais que estão de frente para campos de flores silvestres e mosteiros do outro lado do rio Sarine. Ouvi atentamente o bolze. Embora seja difícil para um ouvido estrangeiro rastrear os sons dessa língua única, saber que uma história de culturas e línguas se fundiram para formar algo novo dá um ar intrigante a esta parte da cidade.
O bolze é um exemplo do que pode ser realizado quando os cidadãos de Friburgo, que se encaixam como peças de um comovente quebra-cabeça, trabalham juntos para criar sua própria contribuição para a história de sua cidade.