Corrente do Golfo pode estar perto do colapso: entenda as consequências
Um estudo publicado nas últimas semanas gerou repercussão global ao estimar que o colapso da Corrente do Golfo pode estar mais próximo do que se pensava.
Esse fluxo de águas marítimas quentes e frias pelo Oceano Atlântico (entenda os detalhes a seguir) é fundamental para a manutenção do clima no planeta — e o eventual colapso desse sistema teria consequências graves e imprevisíveis, como ondas de calor ou frio e alterações nos regimes de chuva.
Mas é preciso ponderar desde já que a pesquisa mais recente sobre o tema está longe de representar um consenso e foi recebida com ceticismo pelos especialistas.
Outras projeções apontam que a interrupção do fluxo de águas pela Corrente do Golfo não aconteceria neste século.
Mas, afinal, o que é essa corrente marítima? E por que os cientistas se preocupam tanto com o fim dela?
Um cinturão do tamanho do oceano
A Corrente do Golfo é um ramo de um complexo sistema conhecido como Circulação Meridional de Capotamento do Atlântico — ou Amoc, na sigla em inglês.
Em resumo, esse fluxo massivo de águas oceânicas é dividido em duas etapas principais (veja os detalhes no infográfico a seguir).
A primeira delas acontece no Atlântico Sul, entre América do Sul e África. Nessa área mais próxima da Linha do Equador, a maior incidência de raios solares esquenta a coluna superficial do mar.
Graças a um regime de ventos típico da região, essas águas mais quentes são transportadas para o Atlântico Norte, até chegar ali perto da Groenlândia e do Ártico.
Nesse contexto, a Corrente do Golfo passa próximo da costa Leste da América do Norte, a partir do Golfo do México e distribui calor para esses locais.
“Precisamos lembrar que 70% da superfície de nosso planeta é composto de água, que tem uma alta capacidade de reter calor”, explica a oceanógrafa física Olga T. Sato, professora associada do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP).
Ou seja: esse calor gerado na região equatorial é literalmente transportado para as porções frias do globo, ao norte. E isso é fundamental para que essa região tenha temperaturas mais amenas e sejam habitáveis por seres humanos e outras espécies.
Uma segunda etapa da Amoc acontece nas cercanias da Groenlândia. Lá, a temperatura fria e seca resfria a água e “expulsa” o sal da parte do líquido que acaba congelada.
Com isso, as águas restantes ali ganham uma característica diferente: elas ficam mais geladas e cheias de sal.
“E isso é importante, pois a temperatura e a salinidade controlam a densidade no oceano”, complementa Sato.
Ou seja, a porção de água que fica mais fria e “salgada” tende a submergir e preencher o fundo do mar.
Aos poucos — e ao longo de milhares de anos — essa coluna marítima profunda segue em direção ao Atlântico Sul e até vai para outros oceanos.
Com isso — por um lado, a água superficial e quente do sul é empurrada para o norte pelos ventos; por outro, a água fria e salgada do norte afunda e segue para o sul — forma-se uma verdadeira correia que garante parte do equilíbrio climático do planeta.
Mas e se esse sistema entrar em colapso?
Sinal vermelho
É consenso entre especialistas da área que as mudanças climáticas observadas nos últimos anos e projetadas para o futuro são causadas pela ação humana — em especial, por causa da emissão de CO2 (dióxido de carbono), fruto da queima de combustíveis fósseis.
Quando o assunto é a Amoc, o aquecimento do planeta também traz consequências diretas.
O processo que acontece na Groenlândia de resfriamento das águas oceânicas tende a se esvair conforme o clima esquenta.
O derretimento do gelo nessa região — outra consequência do aumento das temperaturas — também deixa a água com menos sal.
E isso tudo pode afetar aquele processo de densidade, que permite essa água gelada e salgada afundar e ir em direção ao sul.
A interrupção desse processo pode representar um colapso da Amoc — afinal, falamos aqui de um cinturão, em que o fluxo das águas depende justamente dessa sequência intrincada de acontecimentos.
“E diversas medições realizadas desde 2004 nos mostram que a Amoc está enfraquecendo”, alerta a geógrafa Karina Lima, doutoranda e pesquisadora de clima na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Nas últimas duas décadas, cientistas detectaram alterações da temperatura média na Groenlândia e no Ártico, por exemplo.
Outros grupos acompanham de perto a velocidade de fluxo das águas, ou em que profundidade oceânica ocorre essa “troca de sinal” entre águas quentes em direção ao norte e águas frias ao sul.
“Mas, é claro, esses monitoramentos observam apenas um período de tempo muito curto e seria necessário ter registros mais duradouros para poder entender o comportamento de longo prazo da Amoc”, pondera Lima.
A pesquisadora lembra que os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) não projetavam que o colapso da Amoc pudesse acontecer ainda no século 21.
Mas o assunto voltou à tona com a publicação de um artigo da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, no periódico Nature Communications.
Por meio de uma série de cálculos estatísticos, os autores estimam que o colapso da Amoc poderia ocorrer ainda neste século, se as emissões de CO2 continuarem no ritmo atual.
Segundo eles, a paralisação dessa corrente oceânica ocorreria entre 2025 e 2095.
É preciso dizer que o novo estudo foi recebido com reservas pela comunidade acadêmica. Numa reportagem da BBC News, a professora Penny Holiday, do Centro Nacional de Oceanografia, do Reino Unido, disse que não há evidências sólidas de que a Amoc tenha desacelerado.
Segundo ela, sabe-se que existe uma possibilidade de a Amoc deixar de funcionar como conhecemos hoje, mas é muito difícil ter qualquer certeza sobre isso ainda.
O meteorologista Jon Robson, da Universidade de Reading, também no Reino Unido, concorda. Segundo ele, as projeções de quando o colapso da Amoc pode ocorrer ainda são muito incertas, e determinar uma janela de tempo tão próxima quanto 2025 deve ser encarado com ceticismo.
Mas e se a Amoc deixar de funcionar? O que aconteceria com o clima?
Desequilíbrio planetário
O filme pós-apocalíptico O Dia Depois de Amanhã, de 2004, se passa num mundo que sofre as consequências do aquecimento e do posterior resfriamento global.
E toda a premissa da história se baseia justamente num eventual colapso da Corrente do Golfo e, num cenário mais amplo, da Amoc.
Na trama, Nova York é devastada subitamente por tsunamis e ondas intensas de frio.
Na vida real, porém, as coisas não aconteceriam com tanta velocidade assim.
“Posso dizer que o cenário não será igual ao que acontece em O Dia Depois de Amanhã, com eventos catastróficos tão rápidos”, diz Sato.
“O oceano demora para responder às mudanças, que serão sentidas devagar e aos poucos”, complementa a pesquisadora.
Ou seja, não é que um eventual colapso da Amoc vai ocorrer de um dia para o outro, o que resultaria numa série de cataclismas inesperados — como tsunamis, furacões, ondas de calor e frio — num curto espaço de tempo.
Mas algumas das possíveis consequências de longo prazo dos distúrbios nas correntes marítimas atlânticas são relativamente fáceis de presumir (confira um resumo no infográfico abaixo).
A principal delas é o resfriamento de partes da Europa e da América do Norte — afinal, as águas quentes sopradas do Atlântico sul deixariam de chegar até lá.
“As projeções também apontam para mudanças nos regimes de chuvas, com secas em algumas áreas e inundações em outras”, acrescenta Lima.
Segundo a pesquisadora do clima, isso poderia afetar até o nosso país, especialmente a região Nordeste.
Falando em Brasil, alguns trabalhos apontam que essa alteração nas chuvas relacionada ao colapso da Amoc também chegaria à Amazônia — e aceleraria o processo de transformação de áreas dessa floresta tropical em savana.
A região equatorial do planeta também poderia sofrer com mais calor e com um aumento dos níveis dos oceanos — o que representaria mais um alerta para as ilhas e as regiões costeiras e litorâneas.
“Ondas de calor no oceano podem ter consequências muito importantes para a economia como, por exemplo, afetar a produção de pescados”, diz Sato.
As alterações nos regimes das chuvas também podem representar uma grande dor de cabeça na agricultura.
Vale lembrar que todas essas possíveis consequências do colapso da Amoc carregam um alto grau de incerteza e são objeto de intenso debate entre especialistas da área.
E, claro, as grandes correntes marítimas tendem a se reorganizar de alguma outra maneira — o problema é que não se sabe quais seriam as consequências práticas dessas mudanças nos fluxos de águas quentes e frias ao redor do mundo.
A professora da USP lembra que muitas dessas transformações no meio ambiente e no clima já são observadas hoje na prática e estão relacionadas a diversos processos influenciados pelas mudanças climáticas.
“Precisamos levar em conta que esses sistemas são muito complexos, e podem produzir diferentes impactos na sociedade e na economia”, lembra ela.
“Isso não é algo que só vai acontecer no futuro. Já podemos observar alguns efeitos hoje em dia, e isso só tende a piorar pelos próximos 10 ou 20 anos”, acrescenta a oceanógrafa física.
Lima lembra que a única maneira de mitigar esses riscos é reduzir a emissão de CO2 ao cortar o uso de combustíveis fósseis, entre uma série de outras medidas urgentes.
“E isso exige uma mudança estrutural da sociedade. Não é simples e rápido migrar toda a matriz energética do mundo para diminuir de fato as emissões”, avalia ela.
“Mas esse é o único caminho para frear o aquecimento global e minimizar as consequências disso para o planeta”, conclui.