Coronavírus: como pacientes 'resistentes' podem ajudar na busca por tratamento para covid-19
David Cox – BBC Future

Coronavírus: como pacientes ‘resistentes’ podem ajudar na busca por tratamento para covid-19

Quando era jovem, Stephen Crohn viu seus amigos morrerem, um após o outro e sem que ele pudesse fazer nada, de um mal que não tinha nome.

Quando seu companheiro, um ginasta chamado Jerry Green, adoeceu gravemente em 1978 com uma doença que hoje conhecemos como Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids), Crohn simplesmente concluiu que ele seria o próximo.

Mas, enquanto seu parceiro ia ficando cego e fraco, Crohn permanecia saudável. Ao longo da década seguinte, dezenas de amigos e inclusive outros parceiros teriam um destino semelhante.

Em 1996, o imunologista Bill Paxton, que trabalhava no Aaron Diamond Aids Research Center, em Nova York, estava à procura de homens homossexuais resistentes à infecção, com a intenção de descobrir os motivos por trás dessa resistência.

Quando Paxton tentou infectar os glóbulos brancos de Crohn com HIV, o vírus causador da Aids, em um tubo de ensaio, isso se revelou impossível. A explicação é que Crohn tinha uma mutação genética — que ocorre em apenas 1% da população — que impede o vírus de se prender à superfície dos glóbulos brancos.

Nos dez anos seguintes, os cientistas conseguiram desenvolver um medicamento retroviral, que imita os efeitos dessa mutação no organismo e que transformou os tratamentos da Aids. A droga também se mostrou crucial para ajudar a controlar o vírus em pessoas infectadas.

Crohn morreu em 2013, aos 66 anos, mas sua história deixou um legado que vai muito além do HIV.

Resistência à covid-19

Homem olhando exame

Getty Images
O estudo de pessoas que apresentam níveis incomuns de resistência ou suscetibilidade à covid-19 pode levar a novos tratamentos

Nas últimas duas décadas, inspirou todo um campo da Medicina, em que os cientistas buscam identificar esses chamados “casos isolados” que, como o de Crohn, são excepcionalmente resistentes ou pouco suscetíveis a uma doença e servem de base para estudos de novos tratamentos.

Como geneticista na Escola de Medicina Icahn, em Nova York, Jason Bobe passou os últimos anos estudando pessoas com traços de resistência incomum a doenças, de problemas cardíacos à doença de Lyme. Assim, quando a primeira onda de covid-19 atingiu o país, seu primeiro instinto foi procurar pessoas resistentes à nova infecção por coronavírus.

“Pensei em Stephen Crohn. Alguém precisava começar a procurar esses casos isolados de (resistência à) covid-19”, diz ele.

A ideia de Bobe era tentar encontrar famílias inteiras, nas quais várias gerações haviam sofrido casos graves de covid-19, mas entre as quais havia pelo menos um indivíduo assintomático. “Ter uma família inteira junta torna muito mais fácil entender os fatores genéticos em jogo, e o que está por trás dessa resistência”, explica.

No passado, a identificação de grupos familiares que atendessem a essas características levaria anos, mas o mundo digital oferece várias maneiras de chegar a essas pessoas. Desde junho de 2020, Bobe tem trabalhado com administradores de grupos de pacientes com covid-19 e familiares no Facebook, como o Survivor Corp, para tentar identificar candidatos.

Também criou uma plataforma na internet em que qualquer paciente com covid-19 assintomático pode preencher um questionário para participar de um estudo de resistência ao vírus, se atender aos requisitos.

Nos próximos meses, Bobe espera replicar a sequência de genomas de pacientes com sinais de resistência à covid-19, para ver se compartilham de alguma mutação que os estaria ajudando a escapar do vírus. Se tiver sucesso, suas descobertas podem servir de base para a criação de medicamentos antivirais capazes de nos proteger da covid-19 e também de futuras epidemias de coronavírus.

E já existem algumas pistas. Os pesquisadores identificaram uma associação entre os grupos sanguíneos do tipo O e Rh negativo a um menor risco de doenças graves. Mas, enquanto os cientistas levantam a hipótese de que certos tipos de sangue podem naturalmente ter anticorpos capazes de reconhecer alguns aspectos do vírus, a natureza precisa dessa relação permanece obscura.

Cientista brasileira investiga a questão

Mas Bobe não é o único cientista tentando descobrir o que torna esses casos isolados de resistência à covid-19 únicos. Mayana Zatz, diretora do Centro de Pesquisas do Genoma Humano da Universidade de São Paulo, identificou cem casais em que uma pessoa foi infectada com covid-19, mas seu parceiro, não.

Sua equipe está agora estudando esses indivíduos na tentativa de identificar os marcadores genéticos dessa resistência. “A ideia é tentar descobrir por que algumas pessoas altamente expostas ao vírus não desenvolvem a covid-19 e também não apresentam anticorpos. Descobrimos que, ao que parece, isso é relativamente comum. Recebemos cerca de 1 mil emails de pessoas dizendo que estavam nessa situação”, explica.

A cientista também analisou o genoma de 12 pessoas com mais de 100 anos que foram apenas levemente afetadas pelo coronavírus, incluindo uma mulher de 114 anos na cidade de Recife, que segundo os registros de Zatz, é a pessoa mais velha a sobreviver à covid-19.

Embora a doença tenha se mostrado especialmente mortal entre os adultos mais velhos, aqueles que conseguiram resistir à infecção e têm mais de 70 anos podem oferecer pistas de novas maneiras de proteger os mais vulneráveis ​​em futuras pandemias.

Embora os casos de resistência excepcional ao vírus tenham chamado a atenção de alguns geneticistas, outros estão mais interessados nos casos atípicos no outro extremo do espectro: aqueles que foram mais afetados do que a média.

Nos últimos meses, estudos com esses pacientes esclareceram por que o Sars-CoV-2, o vírus que causa a covid-19, pode ser tão mortal.

Pessoas olhando para o tubo de ensaio
Muitas das condições inexplicáveis ​​associadas à covid-19 podem estar relacionadas a mutações genéticas

Interrupção do sistema de alarme do corpo

Em meados do ano passado, Qian Zhang chegou para uma consulta odontológica. No meio da revisão, o dentista que a atendia perguntou: “Como é possível que eu tenha ido parar na UTI por causa da covid-19, enquanto minha irmã foi infectada, mas nem notou que estava infectada?”.

Como geneticista que trabalha na Universidade Rockefeller, em Nova York, essa era uma pergunta que Zhang deveria ser capaz de responder com facilidade.

Nos últimos anos, vários cientistas de sua universidade se especializaram em estudar o genoma humano em busca de pistas que respondam por que há pessoas que ficam gravemente doentes com vírus comuns, como da herpes ou da gripe.

“Em todas as doenças infecciosas que analisamos, sempre é possível encontrar casos isolados de pessoas que adoecem gravemente porque apresentam mutações genéticas que as tornam suscetíveis”, diz Zhang.

Quando a pandemia de covid-19 começou, ficou logo claro que os adultos mais velhos, sobretudo aqueles com problemas de saúde subjacentes, eram desproporcionalmente mais afetados, em comparação com a média.

Mas os cientistas da Universidade Rockefeller estavam mais interessados ​​nos casos atípicos de pessoas aparentemente saudáveis ​​na casa dos 30 anos que acabaram na UTI.

Em abril, eles lançaram um projeto de colaboração internacional chamado Covid Human Genetic Effort em parceria com outras universidades e centros médicos na Bélgica, Taiwan e outros países, com a ideia de estudar a genética desses casos. Assim que o projeto começou, Zhang já tinha um suspeito em vista.

Na década de 1960, os cientistas descobriram que nossas células têm um sistema de alarme interno que alerta o resto do corpo quando ele está sendo atacado por um novo vírus. “Quando um vírus entra na célula, a célula infectada produz proteínas chamadas interferons tipo um, que são liberadas para fora da célula”, explica Zhang.

“Todas as células ao redor recebem esse sinal e se dedicam a se preparar para combater aquele vírus. Se a infecção for grave, as células vão produzir interferon suficiente para que chegue à corrente sanguínea e assim todo o corpo saiba que ele está sendo atacado.” Mas, às vezes, há falhas genéticas que fazem com que esse sistema não funcione.