Criminalizar a liberdade

Por Marcelo Tognozzi*

Escrevo este artigo em 3 de maio, data da liberdade de imprensa, cada vez mais rara no mundo todo, seja pela autocensura, militância, parcialidade ou pela mordaça imposta aos que se dedicam a revelar aquelas verdades inconvenientes produzidas pelo jornalismo investigativo.

Há 4 décadas, quando comecei na reportagem, havia uma quase paranoia por checar a informação. Não bastava você trazer um off, tinha que detalhar aquele off a ponto de não restar dúvida de que a informação era verdadeira. Essa vulgarização do off, a contaminar as redações nesses tempos de polarização e militância despudorada, virou epidemia a corroer reputações e credibilidades. Um veneno.

A polarização política aguda iniciada há uma década tem efeitos perversos e esse é um fenômeno mundial. Semana passada, me espantei quando o primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez divulgou uma carta pedindo 5 dias para decidir se seguiria ou não à frente do governo. Aquele sujeito elegante, bonitão e hábil estava ali na TV de asa quebrada.

O incômodo de D. Pedro teria sido provocado pela decisão de um juiz de 1ª instância de investigar sua mulher, doña Begoña, por tráfico de influência e corrupção. Ele pensou, pensou e decidiu ficar no governo. Se isso foi pior ou melhor para ele, só o tempo dirá. Mas nunca é demais lembrar que, neste século 21, as coisas acontecem numa velocidade de fibra óptica.

Sánchez escreveu uma carta acusando a oposição de fomentar uma fábrica de lodo (fábrica de fango), com o qual deseja afundar o governo e o Psoe. Nas eleições de 2023, os socialistas tiveram menos votos que a centro-direita, mas o primeiro-ministro conseguiu se manter no poder negociando apoio com partidos menores de esquerda e independentistas como os da Catalunha e do País Basco, que deram a ele 7 cadeiras a mais que a da coalisão de direita.

A partir de então, o Psoe tenta sobreviver num ambiente hostil, frente a uma oposição eficiente e barulhenta, como foi a da esquerda há mais de 20 anos.

Sánchez, no papel de vítima do ódio e da intolerância da oposição, escala uma narrativa muito parecida com aquela que vigora aqui no Brasil. E, tanto lá como cá, não há nada que remeta a oposição ao fascismo tipo cão chupando manga de Hitler, Mussolini ou mesmo Idi Amin Dada. Como acontece no Brasil, ele também deseja controlar redes sociais e liberdade de expressão.

O Psoe organizou manifestações em frente à sua sede, na Calle Ferraz, mas o tiro saiu pela culatra. As manifestações juntaram os mesmos militantes profissionais de sempre, zero povo, mostrando aos espanhóis a dura realidade: os socialistas perderam as ruas. Já não são capazes de emocionar o eleitorado e provocar o impulso de luta por uma causa.

E a causa de Sánchez, me explica o dono de um bar enquanto me serve um rioja, é defender sua mulher e impedir um juiz de usar da sua independência funcional aceitando denúncia grave contra ela.

O juiz Juan Carlos Peinado está sendo pressionado e perseguido por ter cumprido seu papel. Até ameaças de morte rolaram, numa clara tentativa de cercear a autonomia do Judiciário. Se nada houver, o processo será arquivado. Do contrário, isso pode significar a queda do governo com voto de censura no Parlamento, como ocorreu em 2018 com Mariano Rajoy do PP, de centro-direita. Daí, o pânico em conter o juiz.

Não foi só as ruas, os socialistas também perderam a guerra da comunicação nas redes sociais. A oposição tem encontrado caminhos mais eficientes para lidar com o eleitor, seja usando as redes sociais ou partindo para o humor. E isso virou um problemão.

Um opositor montou uma loja bem-humorada na calle de Goya 56, uma das principais de Madri, vendendo de vinhos com rótulos críticos ao governo Sánchez até bugigangas e camisetas, tudo com muito humor. Acusam o dono da loja de fazer apologia ao fascismo e ao ditador Francisco Franco, que governou a Espanha de 1936 a 1975. E querem fechá-la, passando recibo do incômodo.

Tanto na Europa quanto por aqui é igual a discussão sobre a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, o que pode ou não ser dito, escrito ou mesmo insinuado. Quando um lado começa a sucumbir diante dos ataques do adversário, se apressa em tentar calá-lo. Amordaçar é mais simples e prático.

Sánchez reclama do barulho digital dos seus adversários usando a mesma narrativa com que a esquerda brasileira tenta neutralizar o bolsonarismo. Vamos aos Estados Unidos e a história se repete. O problema do mundo bipolar é a guerra. Fria ou quente, ela acaba sendo inevitável.

O próprio presidente Emmanuel Macron reconheceu nesta semana que talvez seja inevitável para a França enviar tropas para o front da Ucrânia, numa reedição moderna e nuclear da guerra da Crimeia (1853-1856), quando os franceses e ingleses lideraram uma coalizão contra o Império Russo, derrotado e humilhado, até que Vladimir Putin retomou a Crimeia em 2014.

O que é lícito ou não ser dito? Até que ponto o livre pensar deixa de ser apenas o pensar para se tornar um crime? A liberdade de opinião e de pensamento está sendo ameaçada pela polarização, na qual não basta calar os adversários, mas é preciso transformá-los em criminosos e metê-los na cadeia. Os discursos de ódio emanam de ambos os lados e não há mocinhos nem inocentes nesta história.

A reportagem ou o artigo de hoje serão o crime de amanhã. Independentemente de quem esteja no poder. É essa a herança que deixaremos para as gerações futuras? Que toda e qualquer crítica ou oposição é veneno?

Tanto aqui quanto na Europa, a defesa da democracia virou um discurso de conveniência. No Brasil, não podemos esquecer nunca, especialmente quando falamos de liberdade de imprensa, que o TSE chegou ao ponto de atropelar a Constituição e permitir a censura a um documentário produzido sobre a facada no presidente Bolsonaro feito pelo Brasil Paralelo durante a campanha eleitoral de 2022. E o fez em nome da democracia, o que é, no mínimo, um escárnio.

Afinal, censura não é nada mais do que criminalizar a liberdade.

*Jornalista

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