De herege a ícone contemporâneo: há 100 anos, a Igreja canonizava Joana d’Arc
Foram necessários 489 anos. Em 16 de maio de 1920, quase cinco séculos após ser queimada viva pela Inquisição, a guerreira francesa Joana d’Arc (1412-1431) teve seu nome inscrito no ‘Martirológio Romano’, o catálogo dos santos reconhecidos pela Igreja Católica.
No documento que oficializou a canonização, o então papa Bento 15 (1854-1922) lembrou que a guerreira “despertou a admiração de todos” no momento de sua execução, “a ponto de até seus inimigos ficarem muito assustados e o próprio carrasco ter declarado que Joana havia sido condenada à morte de forma iníqua, e que ele temia muito por si mesmo pois havia queimado uma mulher santa”.
“E imediatamente os prodígios ocorreram. De fato, muitos dos presentes viram o nome de Jesus escrito dentro da chama do fogo na qual ela foi queimada”, escreveu o pontífice, relatando ainda que uma pomba teria sido vista “voando nas chamas” e o coração da executada “permaneceu ileso e cheio de sangue, o que o próprio carrasco confirmou”.
A bula papal prossegue atestando que “Deus, vingador da inocência e da justiça”, impôs punições “aos ímpios”: os britânicos acabaram “expulsos da cidade de Paris, depois da Normandia, Aquitânia e de toda a França”, “todos os responsáveis pelo martírio de Joana morreram de uma morte muito ruim”.
Filha de camponeses, Joana d’Arc lutou para salvar a França da invasão inglesa no episódio conhecido como Guerra dos 100 Anos — disputa que durou de 1337 a 1453. Ela dizia ser guiada por vozes de mensageiros de Deus.
A batalha entre França e Inglaterra ocorreu em seguida à morte do rei Carlos IV (1294-1328) — que não deixou herdeiro. Pelo parentesco, a monarquia inglesa passou a reivindicar o trono francês. Foi declarada a guerra.
Das batalhas à Inquisição
Nascida no vilarejo de Domrémy, Joana, muito religiosa, começou a ouvir vozes por volta dos 13 anos de idade. Ela acreditava ser interlocutora de São Miguel Arcanjo, Santa Catarina de Alexandria e Santa Margarida de Antioquia.
Essas vozes lhe conferiram algumas missões, entre as quais expulsar os invasores ingleses de Paris e libertar os franceses do cerco imposto em Orleans. O monarca Carlos VII (1403-1461) ainda não havia sido coroado rei quando a recebeu, em Chinon.
Ali, ele deu a ela uma espada, um estandarte e o aval de que a jovem se juntasse aos soldados franceses — embora não nomeada oficialmente cavaleira. Joana vestiu-se como um guerreiro homem e foi a campo de batalha, lutando contra ingleses em vários pontos da França. Sua fama começou a se espalhar. Em 1429 ela esteve em Reims, acompanhando a coroação de Carlos VII.
Mas a fama trouxe também os inimigos. Joana passou a ser vista como uma aberração: uma mulher guerreira, que dizia ouvir vozes divinas. E se vestia como homem.
Naquele tempo, o Tribunal do Santo Ofício da Igreja Católica, conhecido como Santa Inquisição, atuava com firmeza, sempre seguindo o propósito de combater aquilo que era considerado heresia. Joana foi enquadrada, acusada de feitiçaria.
“O papel histórico dela foi estar em um lugar onde as mulheres não costumam estar. Isto é um fato, independentemente do feminismo”, avalia à BBC News Brasil a historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP).
“A figura de Joana mostra uma relação da Igreja Católica com as pessoas consideradas hereges. Assim, ela marca um ponto da história — quando pessoas eram queimadas na fogueira. Isso é muito significativo. Mas o papel importante dela é isso: uma presença em um lugar inusitado.”
Cerca de cem acusadores participaram de seu julgamento e os interrogatórios duraram quatro semanas. Acabou condenada por duas razões: para o júri, usar roupas masculinas era inadmissível para uma mulher e, bem, as tais vozes não seriam coisa de Deus, mas sim do próprio demônio.
Foi um processo cheio de polêmicas. “Joana era uma camponesa pouco letrada e não deixou escritos a não ser algumas poucas cartas. No entanto, seu processo tinha várias páginas escritas que continham querelas políticas carregadas de dubiedades”, comenta à BBC News Brasil a teóloga Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e pesquisadora visitante na Universidade Notre Dame, nos Estados Unidos.
“Joana d’Arc lutou para salvar a França da dominação inglesa, mas não era nada claro que não tivesse havido também uma implicação de autoridades civis e religiosas francesas em seu processo e condenação à morte.”
“O julgamento que a levou à fogueira é repleto de iniquidades e mentiras”, afirma à BBC News Brasil o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, chefe do departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
“O processo buscava destruir a reputação de Joana para invalidar a posse de Carlos VII como rei da França. Afinal, se uma bruxa o fez rei, ele não pode ser reconhecido como rei — eis a tese inglesa que usou Joana como pretexto ideológico. Não foi um processo legítimo e com garantias legais. Já havia a sentença de morte antes das oitivas.”
Em 30 de maio de 1431, Joana se confessou, recebeu a eucaristia e, vestida de branco, foi conduzida até a Praça do Velho Mercado de Rouen, na região da Normandia. Aos 19 anos, ela foi queimada viva.
Para que não acabassem atraindo veneração, suas cinzas foram lançadas no Rio Sena. “Não havia interesse em destacar a figura de Joana, pois ressaltar a dos soberanos que governaram após a vitória que a ela se deve. Esses soberanos realizaram uma obra unificadora que culminou na construção de um Estado sólido, potente, no qual reconhecemos a França de hoje”, completa Bingemer.
“Além disso, me parece que houve igualmente uma ocultação da biografia bastante extraordinária da jovem pelo fato puro e simples de ela ser mulher. Era muito difícil que, em uma cultura patriarcal como era a ocidental se reconhecesse a parte devida em uma vitória militar a uma representante do sexo feminino”, prossegue a teóloga.
“A figura de Joana, certamente enriquecida pelo imaginário que em torna a ela se formou, ia na contramão ao estereótipo feminino vigente no Ocidente. Sua invisibilização acompanha de certa maneira a invisibilização que a mulher sofre de maneira geral em meio à cultura e à sociedade ocidental.”
“No firmamento da história Joana d’Arc foi uma estrela massiva. Sua luz brilha mais do que qualquer outra figura de seu tempo e espaço. Sua história é singular e, ao mesmo tempo, universal em seu alcance”, aponta a historiadora britânica Helen Castor no livro “Joan of Arc: A History”.
Reabilitação católica
Conforme lembra a historiadora Rosin, a Igreja tradicionalmente recuperou vários personagens outrora renegados. Joana d’Arc integra essa lista.
“Ela lutou por Deus, era uma mulher extremamente católica. Lutou por Deus e pela França, então tem muito disso, de se tornar um ícone histórico”, comenta. “E o fato de ela ser santa trouxe mais referências para ela do que teria se isso não tivesse acontecido. As pessoas adoram ícones, amam ídolos.”
O rumo da Guerra dos Cem Anos virou quatro anos após a morte de Joana d’Arc. Em 1953, veio a vitória francesa. O rei Carlos VII quis a revisão do caso da jovem guerreira queimada viva — no fundo, não queria estar historicamente ligado a alguém condenada por heresia. Coube ao papa Calisto III (1378-1458) a anulação póstuma da condenação de Joana d’Arc.
Essa reviravolta no cerne do Vaticano contribuiu para aumentar sua fama. A canonização veio apenas no século 20. Bento 15, o papa que reconheceu sua santidade, foi um pontífice de poucos santos: apenas três — a guerreira, um frade e uma freira, em seus sete anos à frente da Igreja.
“Mas foi um papa muito europeu, muito voltado para a unidade da Europa. Assim, pode ter havido interesse em canonizá-la, já que era uma imagem, um ícone, um símbolo, de um país que desde a Revolução Francesa [em 1789] estava muito secularizado”, contextualiza à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Depois de se tornar santa, há 100 anos, Joana acabou sendo declarada uma das padroeiras da França. “Antes da Revolução Francesa, a França era ultra-católica. Portanto, ter um ícone nacional como santa passou a ser questão de interesse [por parte da Igreja]”, diz Domingues.
“A canonização esteve envolta nas considerações pontifícias de recuperar sua influência na França”, concorda Altemeyer. “O papa que a canoniza diz claramente no documento que a França de novo se tornou ‘a filha mais velha da Igreja’.”
Sua importância foi apropriada também pelos nacionalistas, que viam em sua biografia uma luta pela integridade do país. Não demorou para que, em meados do século 20, Joana d’Arc se tornasse idolatrada pela direita francesa.
Em 2017, o político francês Jean Marie Le Pen, ex-presidente do partido nacionalista mais à direita no espectro político de lá, comparou a filha, a também política Marine Le Pen — sua sucessora no partido —, a Joana d’Arc.
“Sua personalidade, história e morte serviram a distintos interesses políticos em seu tempo e continuam a servir nos séculos seguintes”, pontua Altemeyer. “Sua figura se transformou em uma legenda mítica fortemente usada pela direita francesa para fortalecer o nacionalismo. Ainda hoje é usada, descaradamente, pela ultradireita francesa, em gestos e ações teatrais de Marine Le Pen.”
A teóloga Bingemer problematiza a canonização de Joana justamente no fato de ela ter sido uma guerreira. “[Sob a perspectiva contemporânea,] o problema que me aparece difícil em seu processo de santidade é o uso da violência. Joana pegou em armas, lutou com armas, sempre invocando o nome de Jesus Cristo, que pregou um evangelho de absoluta não violência”, pontua. “Isso é uma incongruência. E, por isso, ela pode ser cooptada pela extrema-direita, que não tem o menor pudor de aproximar fé cristã e uso da violência, desde que seja para legitimar suas pautas, bem entendido.”
“Temos de fazer uma análise não anacrônica dessas coisas. Mas, realmente, uma santa que pegou em armas e as usou, mesmo em prol de uma causa legítima, não admira que apresente alguma dubiedade a um olhar mais avançado e progressista cristão hoje. E até mesmo não cristão”, complementa. “Bata um olhar ético que veja o bem da humanidade e do mundo na isenção da violência. Por isso é uma santa polêmica.”
Ícone
Em “Joan of Arc: A History”, Castor apresenta a francesa como um “ícone caleidoscópico”, considerando que ela se tornou “heroína para nacionalistas, monarquistas, liberais, socialistas, a direita, a esquerda, católicos, protestantes, tradicionalistas, feministas”. E sua vida, “assunto recorrente”, em “pintura, literatura, música e cinema”.
“O processo de recontar sua história e transformá-la em mito começou a partir do momento em que ela apareceu ao público”, pontua a historiadora.
Apenas em Paris há 12 monumentos públicos em sua homenagem, de esculturas em praças a estátuas sacras, como a que adorna a fachada da catedral de Sacré-Cœur, em Montmartre. “Se do século 16 ao 19 sua figura esteve no anonimato social e eclesial, nos últimos 100 anos as artes e o cinema forjaram muitas Joanas distantes da única e verdadeira morta em Rouen”, comenta Altemeyer. “Cada escritor criou sua Joana.”
E as obras realmente abundam. De “A Vida de Joana d’Arc”, do brasileiro Érico Veríssimo (1905-1975), a “Joana d’Arc”, de Mark Twain (1835-1910), passando pela peça teatral “Santa Joana”, de Bernard Shaw (1856-1950), há centenas de livros retratando a jovem guerreira francesa. No cinema, também são inúmeras as obras. Entre as mais conhecidas estão as clássicas “Jeanne d’Arc”, de 1899, feita por Georges Méliès (1861-1938), “Joana d’Arc” dirigido por Victor Fleming (1889-1949) em 1948 e a relativamente recente “Joana d’Arc” dirigida por Luc Besson, em 1999.
Fundadora do projeto Plano de Menina, que trabalha o empoderamento de adolescentes em periferias de grandes cidades brasileiras, a jornalista Viviane Duarte reconhece o forte simbolismo de Joana d’Arc.
“Ela foi canonizada como santa, mas eu a vejo como guerreira: foi uma mulher que rompeu padrões e não teve medo de ser quem ela acreditava ser”, diz Duarte, à BBC News Brasil. “Ela sempre se colocava à frente. Nos dias de hoje, pensando na mulher brasileira, é uma grande inspiração a história de Joana d’Arc. É preciso olhar para as mulheres da história, nossas ancestrais, para a força delas mesmo em um tempo em que as mulheres eram invisibilizadas.”
A historiadora Rosin tem outra opinião. “Não acho que ela seja um ícone do feminismo. Na verdade, ela nunca foi uma feminista, já que sua luta não foi pelas mulheres”, afirma. “Mas é claro que foi uma figura interessante.”
Altemeyer acredita que ainda seja necessário reabilitar por completo a “figura controversa de Joana d’Arc”, considerando “seu contexto vital e seu papel rebelde diante da própria Igreja”. “Se ouvirmos as acusações feitas contra ela pelo bispo e suas respostas, o paradoxo diante do poder clerical permanece”, comenta. “Ela permanece incomodando.”