De inimigo da classe trabalhadora a conselheiro de Lula, o negócio de Delfim Netto era o poder
Assinou o AI-5 e a Constituição de 88. Neste artigo, Joaquim de Carvalho revela as contradições e os bastidores da trajetória do ex-ministro da Fazenda
Delfim Netto foi um economista influente desde a ditadura até os dois primeiros mandatos de Lula. Foi ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, período em que o PIB cresceu muito acima da média mundial e que ficou conhecido como milagre econômico. Em favor da verdade histórica, porém, é preciso registrar que esse milagre teve como base um brutal arrocho dos salários, em consequência da manipulação dos índices de inflação.
Na mesma época, a renda no País ficou mais concentrada. Delfim Netto estava no centro das decisões econômicas, e seu modelo, sintetizado numa célebre frase de sua autoria (“é preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”), foi duramente criticado por duas lideranças da sociedade civil, que mais tarde governariam o País: Fernando Henrique Cardoso e Lula. Com Delfim, o bolo havia crescido, mas a maioria dos brasileiros ficou fora da festa.
Fundado em 1969 por Fernando Henrique Cardoso e outros intelectuais para abrigar professores e pesquisadores perseguidos pela ditadura, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) denunciou, em estudos alentados, o aumento da desigualdade social e econômica do País na década de 70.
Em 1973, um centro de pesquisas ligada aos sindicatos dos trabalhadores, o Dieese, apurou que, sob Delfim Netto, os índices de inflação tinham sido manipulados. O estudo do Dieese foi confirmado por outras instituições e serviu de base para que, a partir de 1975, um jovem sindicalista iniciasse uma campanha nacional pela recuperação dos salários. Era Lula, que tinha acabado de assumir pela primeira vez a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista.
Delfim Netto, que havia deixado o Ministério da Fazenda um ano antes e tinha sido nomeado embaixador do Brasil na França, era apresentado como o grande algoz da classe trabalhadora. Lula, no entanto, nunca deixou de dialogar com ele.
Na época em que se discutia a abertura política, em 1978, fez parte de um seleto grupo criado pelo então ministro da Justiça, Petrônio Portella, juntamente com Cláudio Lembo e o presidente da Fiesp. Uma notinha em jornal deu conta de que Lula teve uma reunião na casa de Delfim Netto em São Paulo, com esse grupo.
A nota, vazada por fontes ligadas à ditadura, tinha o objetivo de queimar o líder metalúrgico, que ameaçou abandonar as discussões. Alguns meses depois, mesmo sob ameaça, Lula comandaria a maior greve dos metalúrgicos no Brasil. Acabaria preso e, sob holofotes da mídia mundial, fundaria o Partido dos Trabalhadores, um marco na história do Brasil.
Delfim Netto, portanto, como antípoda da classe trabalhadora, foi fundamental para a ascensão de Lula e Fernando Henrique Cardoso, indiscutivelmente duas lideranças de um país que se redemocratizava.
Delfim era tão identificado com o regime militar que, em 1969, ao assinar o Ato Institucional número 5, que, entre outras aberrações, suspendeu as garantias do habeas corpus, declarou ao ditador Costa e Silva, em sessão gravada:
“Eu estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no Conselho. E, se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente.”
Delfim Netto voltaria ao centro da política econômica nos últimos seis anos da ditadura, primeiramente como ministro da Agricultura e, depois, do Planejamento. E, desta vez, promoveu um arrocho assumido dos salários, ao estabelecer que o reajuste anual dos vencimentos dos trabalhadores seria de 90% da inflação.
Esse arrocho entrou em vigor por meio de um decreto-lei, excrescência da ditadura. Em 1979, Delfim Netto também promoveu uma maxidesvalorização da moeda da época. Do dia para a noite, o cruzeiro passou a valer 30% menos em relação ao dólar. Muita gente perdeu dinheiro, mas outros ganharam.
Em 1991, quando cobria economia para o jornal O Globo em São Paulo, fiz reportagem sobre os restaurantes e bares de São Paulo onde executivos se encontravam para discutir negócios. Um desses estabelecimentos era o Piano Bar, onde mulher desacompanhada não entrava.
Delfim frequentava o estabelecimento, e ouvi do gerente que um garçom havia melhorado de vida com uma dica do então ministro. Segundo esse relato, Delfim perguntou ao funcionário: “Você tem poupança ou outro tipo de economia?” O garçom respondeu que sim. “Então, venda tudo e compre dólar”. O garçom fez isso, ganhou muito dinheiro, e deixou o Piano Bar.
Procurado na época, Delfim não confirmou a história – até porque era crime. Mas os colegas desse garçom garantiram que houve o fato, e muitos diziam até sentir uma ponta de inveja.
Com as voltas que o mundo dá, o ex-ministro, que colecionava as charges negativas que os jornais publicaram, inclusive uma como sapo predador de insetos, em 1986 se elegeu deputado constituinte, com o slogan “Delfim Netto, eu era feliz e não sabia”. Em seu escritório, algumas dessas charges foram emolduradas.
Uma das charges, de 1980, mostrava Delfim como um moleque fazendo rolar a moeda de 1 cruzeiro morro abaixo. “Lá vai o Brasil descendo a ladeira”, escreveu Ziraldo, autor da charge. Outra charge apresentava Delfim como marca de fermento: “Rende mais se você comer sozinho”.
Em 1988, vinte anos depois de aprovar o AI-5, ele assinou a Carta Magna considerada a mais democrática da história do Brasil.
Com essas mesmas voltas que o mundo dá, tornou-se conselheiro de Lula durante seus dois primeiros mandatos como presidente e, em 2022, uma casa que foi de sua propriedade, no bairro do Pacaembu, em São Paulo, foi alugada para sede de seu comitê eleitoral.
Delfim Netto foi herói ou vilão? Depende do ponto de vista.
Com certeza, Delfim Netto, que, mesmo tendo subido na escala social, cortava o cabelo numa barbearia modesta da rua Machado de Assis, no bairro da Aclimação, em São Paulo, onde morou quando criança, foi uma personalidade marcante de sua geração. Pode-se gostar ou não dele, rejeitar ou aprovar sua trajetória, mas ninguém há de negar que, na ditadura ou na democracia, ele escreveu algumas páginas da história.