“Debater apenas a legalização da maconha só trará mais conforto à classe média”

Para historiador e coordenador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, debate sobre a descriminalização das drogas precisa passar por uma reparação histórica

O historiador Dudu Ribeiro.
O historiador Dudu Ribeiro. DIVULGAÇÃO

Com três votos a favor da descriminalização, o Supremo Tribunal Federal poderia avançar na próxima semana na discussão sobre a descriminalização do uso e porte de drogas, não fosse a decisão do presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, de adiar o julgamento iniciado em 2015 e agendado desde o final do ano passado para dia 5 de junho.O argumento foi que a pauta do STF estava congestionada e não haveria tempo para fazer o julgamento. Não foi marcada uma nova data para a retomada do tema, que é um dos focos das forças políticas conservadoras do país —o Senado recentemente endureceu a política sobre drogas no Brasil com a aprovação da chamada “Rouanet das Clínicas”.

Para Dudu Ribeiro, entretanto, caso consiga retomar a pauta, o STF estará, provavelmente, longe de dar um passo suficiente. Para o historiador e coordenador da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, a depender do caminho que escolher, a Corte poderá, inclusive, até mesmo soar elitista. Isso porque, embora o ministro Gilmar Mendes tenha votado pela descriminalização de todas as drogas, a maconha é o objeto da ação. E para Ribeiro, se o debate ficar somente no âmbito da legalização da cannabis e não avançar sobre todas as políticas que envolvem a guerra às drogas, causará pouco ou nenhum efeito direto sobre a maior parte da população. Especialmente a população negra, a mais condenada pelo encarceramento em massa.

Ele defende que o discurso sobre a legalização das drogas venha acompanhado por um conjunto de reparações e reconhecimentos por parte do Estado, e que esse é um projeto de gerações. Leia os principais trechos da entrevista.

Pergunta. Se o Supremo decidisse na próxima semana pela descriminalização da maconha, o que mudaria, na prática, a partir do dia seguinte?

Resposta. Um ponto importante que poderia ser impulsionado com esse julgamento é a ampliação do debate na sociedade brasileira. Mas do ponto de vista da aplicação da legislação de drogas, que é desproporcional em relação à população negra sobre a branca, no dia seguinte ao julgamento, se for um dia representativo de mudança no STF, não muda absolutamente nada.

P. Por quê?

R. Porque não é esse dispositivo que está criminalizando as pessoas negras. Na verdade, é um conjunto de dispositivos criminalizatórios, não são apenas das pessoas, mas dos seus territórios, das suas culturas e das suas histórias de vida. Não é à toa, por exemplo, que um dos primeiros mecanismos de criminalização das substâncias psicoativas é também a criminalização dos saberes populares médicos. E das de pessoas vinculadas a religiões de matriz africana, que tinham outras práticas de medicina. Ou seja, é um conjunto de dispositivos que não correspondem unicamente ao objetivo declarado de proteção da saúde pública no caso das drogas. Na verdade, isso tudo é funcional para a manutenção dos privilégios e da hierarquia sociorracial no Brasil e a superação desses mecanismos não vai se dar pela descriminalização do uso de drogas. Vai se dar por um processo de reconhecimento do Estado brasileiro de sua culpabilidade na guerra às drogas, a reparação dos danos provocados pela guerra às drogas, porque não é possível pensar na mudança necessária da política de drogas sem pensar nos efeitos anteriores à mudança. Então é fundamental estabelecer medidas reparatórios e é preciso obviamente estabelecer medidas que mudem a forma de atuação, tanto das forças de segurança, quanto do Judiciário brasileiro.

P. Mas essas medidas poderiam vir de qual maneira? Do Congresso?

R. Não precisa e nem pode vir apenas do Congresso neste momento, mas deve ser estabelecida enquanto um campo possível de desenvolvimento, não apenas para a população negra. A guerra às drogas afeta desproporcionalmente a população negra, mas o modelo de violência afeta toda a sociedade. Não é possível superar esse modelo de violência se a gente não conseguir superar os mecanismos que são pautados na criminalização de territórios, de sujeitos anterior ao crime. Aliás, isso é uma medida fundamental que a guerra às drogas faz: criminalizar a pessoa antes da autoria do fato. Nós temos uma sociedade punitivista, violenta, que espera vingança promovida pelo sistema penal, então é uma mudança que vem daí também. A partir daí conseguimos pautar as instituições e aí sim fazer mudanças, debatendo a partir de medidas legislativas e fazer mudanças do ponto de vista do Judiciário. Não é um projeto de lei, é um projeto de gerações.

“A guerra às drogas afeta desproporcionalmente a população negra, mas o modelo de violência afeta toda a sociedade”

P. Esse passo que o Supremo pode vir a dar representa alguma coisa nessa mudança?

R. Esse passo talvez seja uma semente importante para a ampliação do debate não punitivista sobre as drogas. E isso abre janelas importantes para a gente conseguir fazer outro conjunto de debates, porque a partir do momento em que a Suprema Corte consegue pensar de forma não criminalizadora a relação com as substâncias, a gente pode abrir janelas com a sociedade e com os legisladores para ampliar o debate. Mas o efeito prático e imediato dessa mudança na vida das favelas, das pessoas negras e inclusive em comunidades rurais que também são afetadas pela violência da guerra às drogas, é zero.

P. Discutir somente a descriminalização da maconha é fazer um debate elitista?

R. Quando a maconha passou a ser ilegal, isso já dava uma pista de quem se buscava criminalizar. Como eu falei, as primeiras formulações no início do século 20 foram para criminalizar a maconha para se ter condições de criminalizar a população negra. No entanto, não há nenhuma comprovação, na verdade a maioria dos estudos científicos mostra que não há uma disparidade muito grande do uso das substâncias entre negros e brancos. Não é que os negros usam mais e os brancos menos ou vice-versa. Na verdade, a proporção de uso é muito parecida. A questão é que debater apenas a legalização da maconha não resolve o problema da sociedade brasileira. Talvez consiga dar mais conforto à classe média e alta no seu próprio uso da maconha, mas essas camadas da sociedade também já são as menos afetadas pela guerra às drogas. A regulamentação da maconha pode abrir outras janelas, podemos ampliar o debate não criminalizador para o uso terapêutico, podemos demonstrar para a sociedade em vida real que a regulamentação não aumenta o consumo, porque a maioria dos países que descriminalizaram demonstram isso. Então é isso, abrir portas e janelas, porque o nível de profundidade que a guerra às drogas afeta a vida da população é tão profundo que a gente não vai reverter esse quadro em uma geração.

P. E nem se limitando a discutir uma única droga?

R. Exatamente. Porque a criminalização não é da substância. Uma vez, escrevi um texto falando que não importa se dendê ou maconha, não importa se explosivo ou Pinho Sol, afinal de contas Rafael Braga foi criminalizado não porque estava com explosivo, mas porque estava com detergente. A criminalização antecede a relação da pessoa com a substância. E o conjunto de violações nas suas gerações é tão profundo, que as medidas de legalização precisam pensar que são de longo prazo e necessariamente precisam ser reparatórias.

“Debater apenas a legalização da maconha não resolve o problema da sociedade brasileira. Talvez consiga dar mais conforto à classe média e alta no seu próprio uso da maconha. Mas essas camadas da sociedade também já são as menos afetadas pela guerra às drogas”

P. O que seriam, na prática, essas ações reparatórias? Por onde elas poderiam começar?

R. A descriminalização pode impulsionar um salto no entendimento jurídico da questão no Brasil, mas o papel mais importante desse processo é abrir portas para ampliar o debate sobre os efeitos nefastos da guerra às drogas contra o povo brasileiro nos seus diversos aspectos. Exigir políticas reparatórias como a parte central desse processo de mudanças é primeiro reconhecer que não há condições de potencializar essas mudanças se a gente não compreender os agentes perpetradores da violência, e o Estado como parte fundamental desse processo por ter feito a opção política pela guerra no caso da política de drogas.

As ações reparatórias podem e devem instituir comissões da verdade da guerras às drogas para atribuir responsabilidades, fazer com que o Estado reconheça a sua parte no processo e possa assumir mecanismos que evitem a repetição daquelas formas de violência e que possa prestar de forma real auxílio, atenção e reparação às pessoas que já foram afetadas por esse processo de guerra que no Brasil passa da casa dos milhões. A questão das omissões é fundamental, a reparação material das vítimas, o apoio psicológico, a soltura imediata de pessoas injustamente acusadas e condenadas ou muitas delas nem condenadas e que estão cumprindo pena. Esses são elementos prioritários pra gente começar a fazer grandes mudanças. E conseguir imprimir essas mudanças na postura dos mecanismos da segurança pública que devem deixar de operar na lógica da guerra e passar a agir de fato como instrumento protetor e protetivo das comunidades, inclusive fazendo com que isso também contribua para um ambiente mais saudável também para os trabalhadores e trabalhadoras da segurança pública.

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