‘Deus x Oxalá’ e tom de protesto: como foi a audiência pública sobre a polêmica de Claudia Leitte

Audiência ocorreu nesta segunda-feira (27) e reuniu representantes da sociedade civil no Ministério Público da Bahia

Por: Larissa Almeida

Audiência pública sobre polêmica de Claudia Leitte com música Caranguejo Crédito: Paula Fróes/CORREIO

Uma audiência pública organizada pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) reuniu, nesta segunda-feira (27), instituições da sociedade civil, especialistas em cultura e direitos humanos, além do público em geral, para discutir sobre proteção às religiões de matrizes africanas. O ato foi convocado após a polêmica envolvendo a cantora Claudia Leitte, que fez uma mudança na letra da música ‘Caranguejo’ e trocou Iemanjá por Yeshua. A alteração ofendeu integrantes das religiões afro-brasileiras e foi alvo do tom de protesto nos discursos apresentado pelos oradores.

A abertura da audiência ficou a cargo de Samuel Vida, coordenador do Programa Direito e Relações Raciais da Universidade Federal da Bahia (Ufba), que iniciou a discussão destacando a importância de desassociar o racismo de pessoas más ou como uma prática resultante de uma condição patológica. “O racismo não é isso. É um fenômeno muito mais complexo que precisa ser levado a sério”, disse.

“É um fenômeno que se expressa em âmbitos difusos, transversais, generalizados em todas as dimensões das relações sociais. […] Que chega a se inscrever no âmbito do espaço microssocial mais importante, que é a família. O fenômeno se desdobra, portanto, em todo o tecido social, atinge as instituições, organiza e preside o funcionamento das instituições estatais”, completou.

Samuel Vida Crédito: Paula Fróes/CORREIO

Samuel Vida pontuou que a polêmica envolvendo a cantora não se trata de um episódio isolado, mas também não é um problema que mereça ‘reprimenda particular’. Deu ênfase ainda ao objetivo da audiência.

“Se trata de uma oportunidade de avançar na compreensão da profundidade do racismo e da necessidade de respostas que sejam estruturadas numa outra chave, que sejam pensadas como deslocamentos capazes de produzir novos modos civilizatórios para o país, novas matrizes para as relações sociais, novos processos de interação em um ambiente que sempre foi, é e será marcado pela diversidade: a sociedade”, frisou o especialista.

Entre os representantes de instituições inscritos para discursar no púlpito, o líder quilombola Jurandir Pacífico – também conhecido como Binho do Quilombo –, filho de Mãe Bernadete Pacífico, assassinada brutalmente em agosto de 2023, foi o primeiro a citar diretamente a polêmica envolvendo Claudia Leitte. Ele chegou a trocar nome de Deus pelo de Oxalá em uma música gospel para efeito de comparação.

Jurandir Pacífico, também conhecido como Binho do Quilombo Crédito: Paula Fróes/CORREIO

“Se eu chegar na igreja com a seguinte música: ‘Toda a terra celebra a Ti, no cântico de júbilo, posto é o Deus criador’ e mudar ‘Toda a terra celebra a Ti, no cântico de júbilo, Oxalá, o criador’, o pastor vai gostar? Se ponha no lugar do irmão. É um mandamento bíblico: ‘amai o próximo’. Por que não respeita o próximo? Respeite o povo de santo e o de axé”, pediu Jurandir.

A ialorixá Jaciara Ribeiro, que é ativista cultural e militante da luta contra a intolerância religiosa no Brasil, disse que o movimento por conta da troca da letra da música não é pessoal ou isolado. Ela é uma das autoras da denúncia e disse que viu na troca um ato de perpetuação da violência. “Trocar uma palavra que representa um orixá é falar do que acontece nas nossas comunidades com os ladrões de terreiro e apagamento de memória”, declarou.

“Isso deixa nosso povo doente, porque o racismo e a intolerância religiosa matam. Digo isso não só por viver a experiência da morte de Mãe Gilda, mas porque conheço terreiros que perdem a autoestima. Eu conheço crianças que não conseguem mais ir para a escola e levar como lanche a comida do terreiro, porque se a professora é evangélica, ela quer satanizar até o alimento. […] Eu tenho certeza de que Iemanjá não está satisfeita”, concluiu.

Jaciara Ribeiro Crédito: Paula Fróes/CORREIO

Denise da Silva, representante do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), lembrou que o apagamento do nome de orixás tem sincronismo histórico com o processo de apagamento da memória de negros africanos que, em diáspora, foram proibidos de serem chamados por nomes que remetessem ao continente de origem e de professar a fé que acreditavam.

“Existe uma história das nações africanas antes de elas serem invadidas e degradadas pelo imperialismo, pela colonização e escravização dos povos, e essa história a gente não conhece. Faz parte dessa memória o nome, […] que é aquilo que nos identifica e, relacionado com a religião de matriz africana, os nomes são as línguas dos cânticos cantados, são os nomes dos orixás. Isso deve ser preservado”, enfatizou Denise.

Advogada sai em defesa da cantora

A advogada Alzemeri Martins, que integra o Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), pediu ao público presente na audiência que visse Claudia Leitte como alguém que tem a própria fé. “A religião de Claudia Leitte tem preceitos. Isso faz parte da crença dela. Os preceitos da religião dizem que ela só tem um Deus, que ela não pode amar outro Deus ou ter outro Deus”, ressaltou.

“Por causa disso, ela não tem como cantar outros deuses. […] Além disso, considerem que é uma ação civil. Não estamos falando que é uma música milenar, que pode ser protegida como patrimônio, estamos falando de uma questão de autoria. O que eu quero pedir aos senhores, por favor, é que deixem ela cantar ao Deus dela”, apelou.

Alzemeri Martins saiu em defesa de Claudia Leitte Crédito: Paula Fróes/CORREIO

O pedido da advogada causou alvoroço no auditório do Ministério Público. Um burburinho generalizado tomou conta do espaço e lideranças de religiões afro-brasileiras não esconderam a insatisfação. Foi possível ouvir, de longe, uma mãe de santo reclamar “Eu vivi para ouvir uma coisa dessa”. Por sua vez, o advogado Hédio Silva Jr., que representa o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro), sugeriu que a cantora migrasse para o gênero gospel. Antes de dar seguimento à audiência, a maioria das pessoas se levantou para cantar uma música em homenagem a Iemanjá.

Padre e pastor ficam do lado do povo de santo

O padre Lázaro Muniz, coordenador da Comissão Arquidiocesana de Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso (Caedi), compareceu à audiência pública e chamou atenção para a necessidade de defesa da pluralidade religiosa. “A proteção e a honra de cada segmento religioso, em especial nesta audiência que trata das religiões de matrizes africanas, precisam ser de fato valorizadas, respeitadas e cuidadas. Não podemos sair por aí vilipendiando as religiões ou trocando, tirando ou negando aquilo que é conteúdo do processo religioso do outro”, falou.

Já o pastor Bruno Almeida, que é reverendo do Conselho Ecumênico Baiano de Igrejas Cristãs (CEBIC), traçou o panorama do racismo religioso ao longo da história, que foi usado para legitimar a escravização de pessoas. Essa época, contudo, não tem mais vez, conforme pregou.

“Não há espaços para atos de violência. Legitimar o discurso de uma canção que tem a letra trocada é um absurdo. Ao trocar essa letra, você está legitimando um discurso racista, que é contra a tradição do povo, e isso não condiz com o verdadeiro Evangelho do Cristo. Isso é um contra-testemunho do Evangelho do Senhor Jesus. Logo, enquanto cristãos e cristãs, precisamos denunciar isso”, finalizou.

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