‘Devolve nosso ouro’: a discussão histórica por trás do meme usado por brasileiros contra Portugal
Vitor Tavares
A provocação está por todo lado nas redes sociais: basta os brasileiros cruzarem com portugueses para surgir a frase.
“Devolve nosso ouro” — ou suas variações, como “esconde o ouro”, “ladrões de ouro”, “cadê nosso ouro?”.
Mas, afinal, o que aconteceu com o metal precioso retirado do Brasil durante a colonização portuguesa?
Mesmo antes do início do chamado “Ciclo do Ouro”, no início do século 18, registros históricos apontam que já existia exploração do produto no Brasil, ainda que de forma incipiente. Há relatos sobre a região de Paranaguá, no Paraná, pelo menos algumas décadas antes, e ainda de exploração em jazidas em São Paulo desde o século 16.
Mas foi mesmo com as descobertas na região de Minas Gerais, no fim do século 17, e o aviso aos portugueses que o ouro passou a ser o principal produto extraído do Brasil, tomando o lugar da cana-de-açúcar, que vivia grande declínio diante da concorrência caribenha.
O número da quantidade total retirada da terra brasileira durante o “ciclo de ouro” não é exato: alguns registros importantes se perderam (como durante o incêndio na Alfândega de Lisboa em 1764) e muitos mineiros e comerciantes contrabandeavam o produto dentro e fora do território, fugindo da tributação (e do registro) do quinto, o imposto real que cobrava 20% da produção de ouro.
Dito isso, a estimativa do historiador Virgílio Noya Pinto, autor do livro O Ouro Brasileiro e Comércio Anglo-Português, é a mais amplamente utilizada por historiadores. Ele estima que a produção brasileira durante o século 18 foi de 876.629 quilos. Outra estimativa referenciada, mais antiga, do geólogo Pandiá Calógeras, inclui a Bahia nos cálculos e chega a 948.105 quilos.
“A gente nunca vai saber esse volume contrabandeado. Tenta-se estimar, principalmente com registros da chegada à Europa, e a gente consegue ter uma ideia”, explica o historiador Leonardo Marques, professor de América colonial na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Para efeito de comparação, dados da World Gold Council (conselho mundial do ouro) e da Metals Focus mostram que o Brasil produziu em 2019 cerca de 106 mil quilos de ouro. Vale salientar, porém, que durante o século 18 as técnicas eram bastante rudimentares.
Números à parte, fato é que a grande maioria desse ouro foi parar em solo europeu — destino esse refletido no meme usado nas redes sociais atualmente. Mas faz sentido falar hoje de desvantagem do Brasil e benefício para Portugal, já que naquela época faziam parte de um mesmo Império?
Para Marques, apesar de haver um anacronismo na brincadeira — ou seja, quando tentamos usar conceitos e ideias atuais para tentar analisar uma época completamente diferente —, ela levanta discussão importante sobre a herança colonial.
“Naquele momento, não havia uma separação entre Brasil e Portugal. Mas os efeitos humanos e ambientais da história da mineração são sentidos aqui até hoje, e não lá na Europa. Tudo aquilo que mudou o Brasil tem uma implicação de longuíssima duração”, diz.
Fome de ouro portuguesa
A exploração do ouro no Brasil surgiu num momento em que Portugal, a Europa e o mundo passavam por uma crise econômica.
Parte dela é explicada por uma escassez de metais preciosos no mercado, após a euforia com as descobertas das minas de prata pelos colonizadores na América espanhola. Essa prata, que começava a se esgotar, era usada para trocas comerciais entre europeus e regiões asiáticas, como a China, e também para fabricar moedas.
Para complicar a situação de Portugal especificamente, a União Ibérica (a unificação das coroas espanhola e portuguesa) havia acabado em 1640, os holandeses tomaram inúmeros entrepostos portugueses na Ásia e a produção açucareira no Caribe, em especial em Barbados, ascendia.
“Passa a existir um estímulo da coroa para essa busca aqui, o que vai transformando o interior da América portuguesa. Há indícios de que alguns os colonos já usufruíam desse ouro antes, mas só no finalzinho do século 17 que isso explode e se torna público”, contextualiza o historiador Leonardo Marques, que desenvolve pesquisas sobre o comércio de ouro nesse período.
Registro do Bureau of Mines (Departamento de Minas) dos EUA mostra que, no século 18, a produção de ouro das Américas chega a responder por 85% da produção mundial. No século 17, esse número era de 66%, e, no século 16, apenas 39%.
“Esse salto todo é Minas Gerais. É algo monumental, inédito na história. De longe, o Brasil se tornou o principal distribuidor de ouro no mundo”, destaca Marques.
Para onde foi?
Só uma pequena parte do ouro cobrado pela coroa através do quinto (o imposto de 20% sobre a produção) ficava no Brasil, para pagamento de salários e construções, segundo registro de Noya Pinto.
“Tem o clássico ouro usado nas igrejas de Minas, mas também tem ouro circulando em pó para trocas, compra e venda dentro do espaço colonial”, explica Leonardo Marques, que ressalta ainda o enriquecimento de comerciantes em cidades próximas às minas, que vendiam produtos aos trabalhadores. É difícil saber a quantidade de ouro não tributado que ficou por aqui.
Em Portugal, algumas obras imponentes foram financiadas especificamente com a arrecadação do quinto. A mais emblemática delas é o suntuoso Palácio Nacional de Mafra, na região de Lisboa, como registrou o geógrafo alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege, que veio ao Brasil fazer pesquisas a pedido da coroa portuguesa e escreveu o diário Pluto Brasiliensis.
No livro O Ouro Brasileiro e Comércio Anglo-Português, o registro é de que “mais de quatro quintos da produção aurífera fluiu para a Europa, exclusivamente através da corrente do comércio, lícito ou ilícito”.
Noya Pinto tenta fazer um resumo do caminho que grande parte do ouro percorria: os mineiros, cada vez mais numerosos, precisavam consumir (roupas, comida…). Eles pagavam com ouro os produtos vendidos por comerciantes das cidades. Já esses comerciantes também pagavam com ouro para adquirir produtos de Lisboa. E, esses últimos, por sua vez, pagavam com ouro pelos produtos manufaturados vindos de outras partes da Europa, principalmente de Londres.
Ou seja, grande parte do ouro do Brasil ia, no fim, para Inglaterra, que se preparava para uma transformação econômica que viria a se concretizar com a Revolução Industrial.
Por que foi parar na Grã-Bretanha?
Isso acontecia porque, desde o início do século 18, a Grã-Bretanha firmou acordos comerciais vantajosos com Portugal, como o famoso Tratado de Methuen, de 1703, também chamado de tratado de Panos (vendidos pela moderna indústria têxtil inglesa) e Vinhos (produto português).
As trocas econômicas entre os países eram desiguais, levando um fluxo enorme de ouro brasileiro à Inglaterra. Isso quer dizer que, enquanto Portugal tinha a moeda, os ingleses tinham os produtos para vender.
“O ouro do Brasil está cobrindo a dívida externa, digamos assim, de Portugal, principalmente na relação com a Grã Bretanha”, diz Leonardo Marques.
Em Plutos Brasiliensis, Eschwege relata: “Portugal, que pouco cuidava da indústria, porque podia comprar os artigos manufaturados mais barato no estrangeiro do que em seu próprio território, cedeu seu ouro tão abundante em troca de mercadorias de luxo, continuamente substituídas por outras novas.”
Entre 1735-39, por exemplo, 8.000 kg de ouro foram necessários para os portugueses pagarem a diferença entre a importação e a exportação com os ingleses. “Podemos admitir que os ingleses absorviam quase 60%, somente com o comércio lícito”, descreve Noya Pinto.
“A Grã-Bretanha está no coração de uma transformação financeira radical no mundo. Por isso há uma demanda muito grande não só pela moeda em si, que vai circular e lubrificar economias, mas também como um estoque monetário para os bancos que estão surgindo, que vai dar segurança à economia. Todo o sistema de crédito britânico está ancorado nisso. E o motor é a mineração no Brasil”, explica Marques.
Apesar de todo esse fluxo de dinheiro a Portugal, e depois à Inglaterra, vale destacar que alguns pesquisadores portugueses atribuem à abundância do ouro uma “maldição” que impediu o processo de industrialização e modernização da economia portuguesa na época.
Algo previsto já no século 18, quando o diplomata português D. Luís da Cunha chegou a escrever: “sempre estaremos dependentes de Inglaterra, que tem Portugal pela melhor das suas colônias, pois lhe dá o ouro e os diamantes, que lhe não produz”.
Leonardo Marques, da UFF, pesquisa também outro destino desse ouro: a África.
Para suprir a demanda de um Brasil cada vez mais populoso e produtor do minério, Portugal precisava comprar mais escravos. Marques estimou que cerca de 47.000 quilos de ouro podem ter sido exportados para a África Ocidental na primeira metade do século 18.
Segundo a pesquisa, “o metal dourado dava acesso aos escravos mais procurados e em intervalos de tempo relativamente curtos”. Parte permanecia na própria África, onde contribuiu para a expansão do reino de Daomé (atual Benim). Mas a maior parte dele foi, novamente, para o noroeste da Europa, por meio de comerciantes britânicos e holandeses.
O que mudou no Brasil?
O intenso e imenso ciclo do ouro modificou por completo a paisagem econômica e social da América portuguesa.
A economia da colônia, que era essencialmente litorânea, concentrada em torno de cidades como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, passa a entrar para o interior. Isso também vai definir um novo polo econômico mais no centro-sul, onde está até hoje, e as fronteiras que permitem o Brasil ser do tamanho que é.
“Alguns historiadores falam de espaço econômico do ouro, porque ele cria um conjunto de demandas que vai dinamizar a economia de forma completamente inédita, da pecuária à produção de alimentos”, explica Marques.
Para suprir essa nova demanda, o Brasil também vive uma explosão no número do tráfico negreiro. O banco de dados Slave Voyages mostra que no século 18 há um salto gigantesco no número de escravizados que chegam ao Brasil: de 910 mil no século 17, para 2,2 milhões no século 18 – no século 19, ainda mais africanos chegam (2,3 milhões), apesar da interrupção do tráfico na década de 1850.
“Muitos deles estão indo para atividades relacionadas ao ouro. Essa é a parte trágica da história”.
Também há uma migração massiva portuguesa no século 18. Eschwege registrou que a facilidade com que muitos enriqueceram em pouco tempo no Brasil incitou a imigração de milhares de pessoas ativas em Portugal, que abandonaram suas propriedades na metrópole.
Diante de tantas mudanças sociais e econômicas, Marques destaca que muitos dos problemas que vemos no Brasil são resultado de uma lógica de exploração que se perpetua até hoje.
“Você forma uma sociedade escravista, uma das maiores, profundamente hierarquizada, você tem efeitos ambientais, devastação da mata atlântica, transformação da paisagem. Tudo isso está com a gente no Brasil até hoje”, diz.
E, para ele, o meme coloca luz numa discussão que deve ser maior do que apenas “devolve nosso ouro”.
“Não é só o fato que ‘Portugal tirou vantagem’, mas o desenvolvimento de Londres como centro financeiro mundial, do capitalismo, está ligado também a essa sociedade formada no Brasil”, reflete Marques.
“Os problemas são nossos, claro, temos nossas elites, nossos problemas, reproduzimos isso. Mas nunca estivemos isolados. Nem lá atrás nem agora. Mesmo as nossas decisões internas no Brasil respondem a processos globais”.