Negro forte e destemido, a voz do morro e da cultura popular, no Brasil quem não samba tem que aplaudir. Desde que o samba é samba, é assim. Símbolo de resistência e da musicalidade do povo, o ritmo brasileiro é celebrado neste dia 2 de dezembro, Dia Nacional do Samba.
Mas o que é o samba, afinal? A pergunta já inspirou canções de bambas consagrados, foi motivo de muita poesia e batucada. É um dom, é canção, foi duramente perseguido e, de conquistas em conquistas, atravessou todo o universo. O samba é muita coisa, mas é, em essência, político. Não é mera constatação, pois quem afirma entende do assunto.
Para marcar o Dia Nacional do Samba, o Brasil de Fato conversou com Teresa Cristina, Moacyr Luz e outros sambistas sobre o samba nunca ter se separado das lutas por direitos e da vida da classe trabalhadora no Brasil.
“Vai falar pro Zé Keti, à Dona Ivone Lara, à Leci Brandão, vai dizer pra Beth Carvalho que samba e política não se misturam. Isso é uma bobagem tremenda. Muita gente morreu, muita gente foi prejudicada, por expressar o seu sentimento, por expressar a sua indignação”, opina Teresa Cristina.
A cantora e compositora carioca cita o exemplo da insubmissão de bambas do passado à ditadura militar e evoca Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola que, em 1969, apresentaram o enredo Heróis da Liberdade para o desfile da Império Serrano, em pleno AI-5.
“Foi um gesto muito corajoso. A ditadura sempre foi covarde, tinha medo de poesia, da melodia. Só com esse exemplo, que é um exemplo grave, a gente pode ver o quanto a contestação incomoda. Se você tirar a política do samba ele não se sustenta sozinho”, aponta.
Passava noite e vinha dia
O sangue do negro corria Dia a diaDe lamento em lamento
De agonia em agonia Ele pedia o fim da tirania(Heróis da Liberdade – 1969)
O lado político do samba é exaltado também por Álvaro dos Santos Carneiro, o Nego Álvaro. Com o disco “Bons Ventos”, o cantor, compositor e percussionista brasileiro foi indicado para a categoria Melhor Álbum de Samba ou Pagode no Grammy Latino de 2022, ao lado de Martinho da Vila, Ludmilla e Péricles.
“Se a gente foi perseguido há um tempo atrás por ter nascido dentro de um terreiro de candomblé, que é o samba no Rio de Janeiro, as festas da Tia Ciata, então a pessoa que canta samba entende que você está resistindo e lutando, dando voz para aquilo que o povo passou lá atrás. Era proibido tocar e andar com o instrumento”, argumenta o sambista, fazendo referência à chamada “lei da vadiagem”, que foi utilizada para perseguir negros e sambistas durante o século passado.
“Como não é político? Um ato político é principalmente nascer preto no Brasil e sambista. No seu peito já está escrito que você tem uma cara e lado”, completa.
Samba do Trabalhador
O papo sobre samba e política foi a tom da visita especial do Brasil de Fato ao Samba do Trabalhador, roda de samba criada por Moacyr Luz em 2005 e realizada sempre às tardes de segunda-feira no Clube Renascença, no bairro de Andaraí, no Rio de Janeiro (RJ).
A roda reúne amantes do gênero e figuras ilustres para reafirmar que o “samba é a voz do povo“. O Renascença também é um local simbólico, o primeiro clube social negro do Rio, reconhecido por promover a resistência e a cultura negra na capital carioca desde a sua inauguração, em 17 de fevereiro de 1951.
Samba, negro forte destemido
foi duramente perseguido
nas esquinas nos botequins,
nos terreiros
(Agoniza mas não morre – 1978)
O cavaquinista e compositor Gabriel Cavalcante participou da criação do Samba do Trabalhador, lá em 2005, e é enfático ao afirmar que o samba sempre foi um lugar de democracia, de amor, de alento e de esperança.
“O samba é um movimento que nasceu daqueles que nunca tiveram voz para se manifestar e encontraram um meio de ser alguém na sociedade. Então, eu falo com muita tranquilidade que não há uma vez na minha vida em que eu não esteja nessa cadeira aqui e que eu não pense no que os meus antepassados sofreram para que pudesse estar aqui na boa, cantando meu samba, com paz e tranquilidade”, opina.
“A pessoa que se sente, que se sentiu reprimida durante esses últimos seis anos sempre encontrou no samba um lugar onde ela pudesse se manifestar, um lugar onde ela pudesse ser livre. Então eu acho que o samba nunca é só o cavaquinho afinado, o tantan, o pandeiro, o surdo, e tocando em harmonia, né? O samba é muito além disso”, completa.
O início e o reduto da resistência
No Samba do Trabalhador, as apresentações são semanais, sempre às segundas-feiras. Moacyr Luz lembra do princípio, e o que motivou a criação da roda que passou de 50 pessoas no primeiro encontro até em média 2 mil pessoas nos dias atuais.
A ideia no início era um encontro não para o público em geral, mas para reunir os amigos sambistas, que se ocupavam durante o fim de semana rodando os palcos Brasil afora.
“Quando chegava na segunda-feira todo mundo já havia festejado e só a gente trabalhando”, relembra.
Na época, Moa já frequentava o Renascença, onde gostava de se aventurar na preparação de receitas. “Essa coisa de comida com samba, com música, sempre foi uma coisa que me despertou interesse”, conta.
“Me lembro do Wilson das Neves – ‘oh, sorte’ – Falando comigo, Moa. ‘Como é que eu vou cantar se não tem microfone?’. Você não quer alugar um aparelho, né’. E assim foi”, relembra o sambista.
Com o tempo, a roda se expande e surge o grupo Moacyr Luz e o Samba do Trabalhador, que em 2020 lançou seu quinto disco.
“Ser sambista é ver
com os olhos do coração,
ser sambista é crer
que existe uma solução,
é a certeza de ter escolhido o que convém
é se engrandecer
e sem menosprezar ninguém.“
(Arlindo Cruz e Sombrinha, 1984)
“A gente é uma família, é uma comunhão mesmo, é uma festa. Se o samba não conseguir fazer isso com o país da forma que tá, virar em forma de amor, porque o samba é amor puro, é purinho, purinho. Então, se o samba não conseguir unir o país, sei lá, a gente tá realmente perdido”, conta Nego Álvaro ao Brasil de Fato.
Já Gabriel Cavalcante faz um retrospecto dos 17 anos do Samba do Trabalhador e os acontecimentos políticos que permearam a caminhada da roda.
“No dia 18 de abril de 2016, um dia depois daquela loucura que aconteceu orquestrada por Eduardo Cunha, a gente estava aqui resistindo. Em abril de 2018, quando o Lula foi preso, a gente estava lá em cima do palco defendendo o que a gente acredita. Também em 2018, nas eleições, a gente estava aqui botando a cara mesmo com aquele avanço colossal de uma extrema-direita que não está preparada para conviver em sociedade. Em 2022, a gente estava desde o início. São 17 anos fazendo um movimento de resistência”, conta
“Eu devo tanto ao samba”
O Brasil de Fato também perguntou a essa gente bamba o que o samba representa em sua vida. Também pediu uma indicação, um samba dedicado ao Brasil, considerando o momento político vivido pelo país. As repostas estão logo abaixo, e a playlist com as músicas indicadas, junto de outras citadas direta ou indiretamente nesta reportagem, está ao final desta reportagem.
“O samba ele envolve tanta coisa, eu devo tanto ao samba, mas tanto, tanto. Tanto que eu tenho que fazer muita coisa ainda pra agradecer, muita música. É a roupa que você veste, é a roupa de samba. A comida que você come, é a comida do samba. O teu vocabulário, vira vocabulário do samba”, conta Moa.
Natural do Rio de Janeiro, Moa tem mais de 100 músicas gravadas por diferentes intérpretes da MPB, como Maria Bethânia, Nana Caymmi, Beth Carvalho, Leny Andrade, Gilberto Gil e Leila Pinheiro. O samba entrou na sua vida com Saudades da Guanabara, uma ilustre parceria entre ele, o amigo Aldir Blanc, e Paulo César Pinheiro.
“Eu quando faço um samba-enredo para uma escola, por exemplo, como o pra Mangueira, que eu fiz esse ano, eu vejo que a humildade das pessoas, a simplicidade das pessoas, tem a ver com o samba. E a riqueza também. Eu sou alguma coisa hoje na vida graças ao samba, as pessoas que me cercam, que gostam de mim, foi o samba que me deu essa porta”, completa.
O samba é meu dom
Aprendi bater samba
ao compasso do meu coração
O samba é meu dom – 1996
Já Nego Álvaro, que começou a cantar e tocar instrumentos com 15 anos, considera o samba muito mais que um ritmo na sua vida.
“O samba é muito mais do que o meu sustento, o samba me ensinou a me comportar como ser humano, eu vejo o samba de verdade assim como uma entidade e que deve-se muito respeito e muita reverência”, destaca.
Teresa Cristina destaca os laços revolucionários do gênero. E garante: “quem não é contestador do que não está certo, não pode ser sambista”.
“O samba ele ensina como você viver melhor, ele ensina como você tratar as pessoas, ele ensina como você deve se portar diante dos absurdos que são impostos para a gente. E que bom que a gente tem o samba, que a gente tem esse lugar de contestação, esse lugar revolucionário, altamente revolucionário”, finaliza Teresa.