Dimas, o ‘bom ladrão’ que virou o primeiro santo do cristianismo

A fuga para o Egito, em pintura de Fra Angelico, século 15
A fuga para o Egito, em pintura de Fra Angelico, século 15

Por: Edison Veiga

Nominalmente, ele não é citado em nenhum dos quatro evangelhos canônicos — Mateus, Marcos, Lucas e João, os que constam da Bíblia.

Mas na passagem que descreve a morte de Jesus, os quatro evangelistas mencionam que, naquele dia, três pessoas foram crucificadas lado a lado.

João é o mais lacônico sobre isso. Ao nominar o local da execução, o lugar chamado Gólgota, ele afirma que “foi lá que eles o crucificaram juntamente com dois outros, um de cada lado e Jesus no meio”. E nada é dito sobre os outros dois.

Mateus e Marcos são praticamente idênticos nessa passagem. Afirmam que Jesus foi crucificado com “dois bandidos, um à direita, outro à esquerda”.

Em ambos, o trecho prossegue citando que o povo e as autoridades passaram a insultar Jesus. E termina ressaltando que “até os bandidos crucificados com ele o injuriavam da mesma forma”.

O evangelho de Lucas é o que traz a descrição mais curiosa sobre a interação que Jesus teria tido com os outros dois condenados.

Após enfatizar que o protagonista da história havia sido crucificado no centro, entre “dois malfeitores”, o evangelista também cita as zombarias da população e até de soldados.

Mas prossegue a narração incluindo os outros dois crucificados.

“Um dos malfeitores crucificados o insultava: ‘Não és tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós também!’ Mas o outro o repreendeu, dizendo: ‘Tu nem sequer tens o temor de Deus, tu que sofres a mesma pena! Para nós, é justo: nós recebemos o que os nossos atos mereceram; mas ele não fez nada de mal'”, diz o trecho.

“E dizia: ‘Jesus, lembra-te de mim quando vieres como rei’. Jesus lhe respondeu: ‘Em verdade eu te digo, hoje estarás comigo no paraíso'”, complementa a passagem do evangelho de João.

Para a tradição cristã, este criminoso acabou sendo classificado como “o bom ladrão”.

E tanto a tradição como pesquisas em alguns evangelhos apócrifos chegaram ao nome de Dimas como sendo a identidade deste cidadão.

O Martirológio Romano, o catálogo dos santos considerados oficiais pelo Vaticano, registra-o como o “santo ladrão, chamado Dimas, segundo a tradição”. E o define como aquele “que na cruz professou a fé em Cristo e mereceu ouvir dele estas palavras: ‘Hoje estarás comigo no paraíso'”.

Canonizado pelo próprio Jesus

“A tradição o faz padroeiro dos prisioneiros, condenados e ladrões arrependidos”, conta à BBC News Brasil o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará.

Para religiosos e estudiosos de hagiologias, ele foi o primeiro santo da história.

“É interessante comparar um processo de canonização com a sagração de São Dimas”, comenta o pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.

“Porque ele foi declarado santo pelo próprio Cristo, foi Cristo quem o canonizou. Seguindo essa linha eclesiológica, embora não tenha sido uma canonização nos moldes convencionais, sua sagração seria de causar inveja a qualquer santo, a qualquer cristão”, acrescenta ele.

“Mesmo sendo a inveja um sentimento não aceitável para um cristão, estou falando só de brincadeira. Mas ser declarado pelo próprio Jesus é uma coisa única. E São Dimas recebeu isso.”

Lira concorda que “a pessoa representada no nome de Dimas” deve ser considerada o primeiro santo da história.

“É o bom ladrão. Uma das testemunhas do sacrifício maior de Jesus, a crucificação”, diz.

“Ele pediu a Jesus que se lembrasse dele quando estivesse no paraíso e Jesus confirmou que ainda naquele dia ele estaria ‘comigo no paraíso’. Podemos dizer que o próprio Cristo o canonizou, o elegeu, levando-o consigo ao seu reino.”

Saber quem de fato foi Dimas e se ele existiu mesmo envolve cruzar informações de duas fontes: de um lado, os textos apócrifos que falam um pouco sobre ele — considerando, é claro, que neles é difícil saber onde acabam os fatos e começam os mitos; de outro, o que se sabe sobre a prática da crucificação na Roma antiga.

Nos apócrifos

“Os evangelhos canônicos não registram seu nome. Somente a tradição e os apócrifos e, a partir dos apócrifos tem muitas histórias sobre ele, mas carecem de comprovação”, ressalva Lira.

“Ele não foi discípulo nem apóstolo de Jesus, contudo, na hora áurea em que Jesus disse ‘tudo está consumado’, ele estava ali bem próximo e, ao contrário do outro crucificado que pedia a Jesus para livrar-lhe da morte, ele pediu a salvação, diríamos, a melhor parte, no que foi atendido pelo próprio Deus filho, de imediato.”

Considerando os quatro evangelhos canônicos, é curioso o fato de que a menção aos dois ladrões não é equivalente.

“Em Marcos e em Mateus, dois criminosos foram crucificados com Jesus e ambos o ultrajaram e o insultaram. Diferentemente daquilo narrado em Lucas, em que um deles [o que seria Dimas] o defendeu”, compara Maerki.

“Já João fala sobre duas pessoas que foram crucificadas com Jesus, mas não faz qualquer menção aos insultos.”

O mais antigo registro de que se tem conhecimento do nome do bom ladrão remonta ao século IV. Está no Evangelho de Nicodemos. Ali são apresentados Dimas e também o mau ladrão, Gestas.

“Na verdade, nesse texto ele é chamado de Disma”, atenta Maerki, ressaltando que outras tradições cristãs conferem a ele outros nomes, como Demas, para os coptas, e Rakh, para os ortodoxos russos.

Nesse evangelho, há inclusive menções aos crimes cometidos por ele.

“Diz-se que ele era originário da Galileia e que lá era dono de uma pousada”, complementa o pesquisador.

“Ele atacava os ricos, mas se preocupava com os pobres, favorecia os pobres, seria uma espécie de Robin Hood cristão.”

“No chamado Evangelho Árabe da Infância de Jesus ele é Tito e o outro ladrão, Dímaco”, conta Maerki, citando o texto apócrifo do século 6.

Neste documento, aliás, está a mais curiosa narrativa incluindo os dois companheiros de execução de Jesus.

“Ele [o evangelho] diz que Tito e Dímaco, juntamente a outros ladrões do seu bando, teriam tentado roubar Maria e José [os pais de Jesus], durante a fuga para o Egito [episódio ocorrido logo após que Jesus nasceu, segundo o evangelho de Mateus], mas Tito impediu que isso acontecesse, o que configuraria um prenúncio de que ele era um homem que se tornaria santo”, conta o pesquisador.

Segundo a narrativa, o então bebê Jesus teria visto os bandidos e profetizado que, 30 anos mais tarde, os três morreriam juntos, condenados à execução na cruz.

Maerki enfatiza que, conforme esse texto, Jesus teria dito que Tito o “precederia no paraíso”.

“Isso é muito interessante”, comenta ele.

Crucificação

É preciso lembrar, contudo, que a crucificação de Jesus, seja ao lado de outros dois considerados criminosos, seja em outra configuração, não foi uma exceção. Era o modus operandi condenatório da Roma antiga.

“Crucificar alguém era uma decisão do Estado”, frisa à BBC News Brasil o historiador André Leonardo Chevitarese, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de, entre outros livros, Jesus de Nazaré: o que a história tem a dizer sobre ele.

Este ponto é importante porque, segundo o pesquisador, promove uma leitura que aceita a ideia de que Jesus tenha sido executado na companhia de outros dois.

“A prática das crucificações culminou com a execução de 6 mil escravos ao longo da Via Ápia. A média de crucificações na guerra judaico-romana era de 500 pessoas por dia. Então, a ideia de três indivíduos crucificados simultaneamente não é estranha, fazia parte da rotina”, pondera.

O pesquisador diz que, partindo dos relatos tanto dos evangelhos canônicos quanto dos apócrifos, é possível entender que aqueles três condenados, inclusive Jesus, eram na verdade “bons ladrões”.

“Todos foram crucificados sob o argumento de que eram ‘bandidos sociais’, ou seja, ao estilo de Lampião e de tantos outros.”

Para Chevitarese, se há um problema histórico na menção aos outros dois condenados, isto não reside no fato de haver ou não crucificações coletivas.

Mas sim no ponto de que a menção ao número de três condenados só aparece em narrativas da segunda metade do século I, ou seja, muito após a morte de Jesus.

“Paulo [cujas cartas são os textos mais antigos, cronologicamente, do Novo Testamento], que escreveu nos anos 50 [do primeiro século], não faz menção a dois outros indivíduos crucificados com Jesus. Ele apenas diz que Jesus havia sido crucificado”, salienta o historiador.

Jesus crucificado entre os ladrões, em pintura de Veronese, século 16
Jesus crucificado entre os ladrões, em pintura de Veronese, século 16. Tradicionalmente, o bom ladrão é o que está à direita de Jesus

Um trio na cruz

“Não estou dizendo que historicamente aquele fato se deu ou não, mas estou dizendo que historicamente o Estado romano podia, sim, crucificar, um indivíduo, três indivíduos, cinco ou dez ou 6 mil”, comenta.

Mas quando o olhar se detém minuciosamente nos textos sagrados há discrepâncias e incongruências que botam em xeque a própria existência de São Dimas. “É quando [a autoridade] Pilatos argumenta que faz parte da tradição romana libertar um prisioneiro durante o dia de festa, à época de festa”, atenta Chevitarese, ressaltando que tal “costume” não encontra endosso em outros documentos antigos.

Na sequência dessa narrativa, são apresentados à multidão Jesus e outro condenado, Barrabás, para que o escrutínio popular escolhesse qual dos dois deveria ser executado e qual ganharia a absolvição. “Este é ponto de partida”, diz Chevitarese.

“Atente para o fato de que só dois foram chamados para essa escolha, os outros dois [supostamente mortos ao lado de Jesus] não foram chamados. Há, portanto, uma incongruência.”

A figura de Barrabás, o bandido libertado depois da a popular, é ainda mais difícil de ser confirmada.

“Nunca encontramos qualquer vestígio ou indício de que era da tradição romana libertar um prisioneiro em época de festa, em qualquer província romana”, salienta.

“Se existiam quatro prisioneiros, Jesus, Barrabás, Dimas e o outro bandido social, por que eles todos não foram perfilados um ao lado do outro, de modo que o povo pudesse escolher?”, questiona o pesquisador.

“Talvez porque nunca tenha existido de fato essa cena. Um crucificado indo parar diante de alguém como Pilatos, uma autoridade como Pilatos perdendo tempo com esses caras… Isso é pura ficção.”

Para Chevitarese, essa passagem “não tem nada de história”, mas sim é “um discurso antissemita, o momento em que se constrói a narrativa de que de um lado está Jesus, de outro Barrabás, o povo judaico”. “Nessa passagem está a ideia de que os judeus mataram o próprio Deus. E daí para a frente é só ladeira abaixo”, argumenta.

Considerando tudo isso, o historiador explica que, no âmbito das narrativas neotestamentárias, “quando ocorre de se deparar com um personagem cuja menção não traz sua história pregressa, tampouco sua história após do fato que justifica sua inserção no texto, a probabilidade de ele ser um personagem meramente literário é gigantesca”.

“Dimas é exatamente isso. Seu nome já é tradição pura. Essa figura, a ideia do bom e do mau ladrão, é literatura, não tem fundo histórico, não tem nada. A ideia é mostrar que até o último segundo Deus tem o poder de salvar o pecador”, contextualiza Chevitarese.

A crucificação, em pintura de Hans Von Tübingen, século 15
A crucificação, em pintura de Hans Von Tübingen, século 15

Última conversa

Tudo isso precisa ser levado em conta. Mas considerando que os crucificados sofriam dor e humilhação descomunais, faz sentido imaginar que Jesus tenha conseguido interagir minimamente com dois colegas?

“Eles [os crucificados] estavam cheios de dores, cãibras, sensações horrorosas, dificuldades de respiração, enfrentando a voracidade de aves de rapina. Era um tortura absolutamente violenta, os caras estavam quebrados”, diz o historiador.

Mas, neste caso, há um certo lastro histórico para tal comportamento. Chevitarese lembra dos relatos do historiador Flávio Josefo (37-100). Há uma passagem em que, quando Josefo andava por uma área em que havia um enorme grupo de crucificados, acabou intercedendo para que três de seu amigos fossem libertados. Corria o ano de 69. As autoridades atenderam ao seu pedido.

“Então, por mais macabra que possa ter sido essa conversa, houve uma conversa entre Josefo e seus amigos que estavam sofrendo sob a cruz”, afirma o historiador.

Chevitarese também lembra que esse tipo de comportamento poderia ser observado “ao menos no início das torturas”, quando os condenados estariam “lastimando ali suas horas finais de vida”. “E isso não seria de todo estranho, de todo absurdo”, concorda

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