Dirceu diz que palestinos têm ‘direito sagrado’ de se levantar em armas contra Israel e critica Brasil na Venezuela

 

O ex-ministro José Dirceu (PT) recebeu a coluna na semana passada para uma entrevista em que falou sobre a divisão da direita brasileira e afirmou que Jair Bolsonaro (PL) é um “bobo da corte” perto de Pablo Marçal (PRTB).

Pregou a renovação do PT e disse que a esquerda “passa ridículo” ao recuar de suas teses por medo de ataques da direita.

Nesta segunda parte da conversa, ele explanou também seus pontos de vista sobre a política externa brasileira, e criticou especialmente a conduta do governo brasileiro ao questionar as eleições na Venezuela de Nicolás Maduro.

“Amanhã o Donald Trump ganha [as eleições para presidente dos EUA], e não reconhece a vitória do Lula em 2026. Nós vamos aceitar?”, questiona.

Dirceu afirmou, por outro lado, que Lula está “corretíssimo” ao dizer que Israel promove genocídio em Gaza e que as críticas ao país não podem ser confundidas com antissemitismo, que, segundo ele, “nunca existiu” no Brasil.

O BRASIL E A CRISE NA VENEZUELA

O Lula sempre vendeu a ideia de que o Brasil é uma potência habilitada a atuar em nível mundial. Mas mesmo na América Latina, e especialmente na Venezuela, o que o Lula fala atualmente, e nada, parecem ser a mesma coisa. O Nicolás Maduro está dando, vamos dizer assim, uma banana para ele. O Brasil tem mesmo esse poder de interferir?

O Brasil é uma potência, queira ou não queira. Somos a metade do PIB, da população e do território da América Latina.

Não há hoje a mesma unidade política de quando havia um alinhamento progressista entre vários governos da América do Sul. Mas temos a questão energética, da Amazônia, do narcotráfico, do crime internacional organizado e das nossas riquezas, que todo mundo está cobiçando para as novas tecnologias. Temos esses interesses comuns e investimentos recíprocos, com chilenos, argentinos, peruanos.

Precisamos fazer uma política pragmática.

O senhor está desviando um pouco o foco. E quanto à Venezuela?

Não, eu não estou desviando.

Eu temo que a gente saia das quatro linhas da Constituição. Ela diz que devemos preservar a autodeterminação dos países, a não-intervenção em seus assuntos internos e a solução pacífica dos problemas.

Nossa posição tem que ser a mesma do México. Nós não podemos interferir nas questões internas da Venezuela.

Temos que preservar [a tradição diplomática]. E evitar a diplomacia informal, de WhatsApp, de entrevistas coletivas.

Tudo bem que todo mundo usa [esses instrumentos]. Mas, se tudo é feito publicamente, a situação fica irreversível.

Se nós queremos ajudar a Venezuela, precisamos ter uma diplomacia por canais oficiais, com a presença de interlocutores do presidente Lula no país e de interlocutores do presidente Maduro no Brasil. E, a partir daí, buscarmos consensos progressivos.

O próprio presidente derrotado [Edmundo González], que diz que ganhou [as eleições presidenciais venezuelanas contra Maduro], chegou na Espanha [onde buscou asilo] e pregou o diálogo, com a libertação dos presos políticos.

O nosso objetivo tem que ser a solução pacífica do problema, para que não haja uma guerra civil. E, para isso, precisamos ter acesso às duas partes.

Ou seja, na sua opinião o governo brasileiro não deveria fazer os questionamentos que está fazendo em relação à Venezuela?

Precisamos saber o nosso tamanho e qual é o nosso papel na América Latina.

Nós vamos dizer agora se um país é ou não democrático? Está errado. Para isso existem organismos e tribunais internacionais.

Senão, como vai ser? Amanhã o Donald Trump ganha [as eleições para presidente dos EUA] e não reconhece a vitória do Lula em 2026. Nós vamos aceitar?

Vamos tomar posição no que está acontecendo na Colômbia? Vamos protestar contra a reforma do Judiciário no México, como os americanos estão fazendo? Vamos dizer que é uma ditadura?

Vamos romper relações diplomáticas com outros países?

Mas o que, na prática, o senhor acha que o governo brasileiro deveria fazer?

O primeiro elemento para conduzir a nossa política externa tem que ser os interesses nacionais. E nós temos grandes interesses na Venezuela.

Nós éramos os maiores prestadores de serviço na Venezuela. Todas as grandes obras no país eram de empresas brasileiras. Nossa fronteira era viva. A Venezuela se alimentou através de Roraima, dezenas e dezenas de caminhões [com alimentos brasileiros] passavam por ela.

A Venezuela tem 328 bilhões de barris de petróleo. E é por causa disso que todo esse problema está acontecendo.

Os americanos agem pragmaticamente, de acordo com seus interesses. Os EUA fizeram acordos com o Maduro sem se importar com o que estava acontecendo na Venezuela, porque eles precisam do petróleo da Venezuela.

Mas os EUA falam mal da Venezuela o tempo inteiro e, inclusive, reconheceram o opositor Edmundo González como o presidente eleito do país.

Sim, mas as empresas norte-americanas estão lá, fazendo investimentos.

Nós não podemos fazer política externa seguindo a tese americana de que o mundo está dividido entre autoritários e democratas. É uma hipocrisia. E eles não seguem isso. Porque essa não é a divisão do mundo.

E os EUA também não são essa democracia [que dizem ser]. São uma plutocracia. Sabe quanto vai custar a campanha eleitoral [deste ano] nos EUA? R$ 7 bilhões.

Os EUA são um império, e não uma República.

Não estou fazendo juízo moral. Mas temos que falar as coisas como elas são. Do contrário, não existiu o colonialismo, não existiu o imperialismo inglês, Hitler não existiu?

Dado isso, os EUA têm interesses e fazem política externa de acordo com seus próprios interesses.

E nós temos que fazer política externa de acordo com os interesses do Brasil. Como a Turquia faz, como o Irã faz, como a China faz, como a Rússia faz.

ELEIÇÃO DE MADURO

O senhor acha que o resultado das eleições anunciado na Venezuela, com a vitória de Maduro, é real?

Eu não sei se o resultado é real, mas o resultado que a oposição está falando não é real.

A oposição é fortíssima. Segundo a apuração do Conselho Nacional Eleitoral, ela teve 45% dos votos. Mas o Maduro tem apoio das Forças Armadas e do empresariado.

Mas a maioria da população pode estar insatisfeita e votar contra.

Sim, pode estar insatisfeita e votar contra.

E o senhor acredita no resultado?

Não tenho elementos para dizer que acredito ou não acredito. Mas digo o seguinte: a Maria Corina [maior líder de oposição ao governo] é de extrema direita. Depois que eles perderam a eleição, não é que foram reprimidos. A verdade é que eles tentaram fazer uma subversão, como já tentaram de outras vezes.

Eu desconfio de qualquer posicionamento dos EUA porque eles têm interesse no petróleo venezuelano. Tentaram tirar o Chávez diversas vezes do poder.

Se desconsiderarmos os antecedentes, vai ficar uma discussão muito de hoje. “Qual é a ata [que o governo brasileiro defende que seja divulgada para a verificação dos votos]? A eleição foi democrática?”.

Eu acho que o Brasil tem que ter uma atitude de maior distanciamento.

Mas a palavra do Brasil tem que peso no mundo? Às vezes parece que o Lula fala e ninguém ouve.

O Brasil não tem poder atômico, nuclear [para influenciar], e não tem poder econômico porque nós estamos resolvendo nossos problemas internos.

O Brasil não é um grande investidor.

Ele era —antes da Lava Jato. De cada duas, três obras importantes, estruturantes, em qualquer país da América Latina, nós estávamos presentes. A Lava Jato destruiu tudo isso, que era, para nós, um fator de política externa extraordinário.

Mas o Brasil segue sendo um grande exportador, e o Lula é uma liderança mundial, ele tem peso.

O Brasil está no Brics, no Sul Global, está inserido nessa nova realidade do mundo. A Ásia vai pesar cada vez mais. E a capital da Ásia é Xangai.

A GUERRA EM GAZA

Lula chegou a definir o que ocorre na guerra de Israel em Gaza como genocídio, gerando reações, inclusive, de integrantes da comunidade judaica que o apoiam. O posicionamento está correto?

O Lula está corretíssimo. Não há razão para não nos manifestarmos claramente. O que aconteceu lá [em Gaza] foi e é um genocídio, uma guerra de extermínio. Hoje está transitado em julgado no mundo que é um genocídio e países como a Inglaterra suspenderam o envio de armas a Israel.

É um colonialismo. A Palestina está ocupada por Israel, que não reconhece o direito do povo palestino ao seu Estado.

Tem 700 mil colonos na Cisjordânia. E esse número vai aumentar, eles vão anexar a Cisjordânia. Eles destruíram Gaza, é uma terra arrasada, que não existe mais.

Israel afirma que são os outros que não aceitam o seu Estado, que é reconhecido pela ONU.

A ONU reconhece, mas Israel não cumpre uma única resolução da ONU com relação ao Estado palestino.

O povo palestino tem o direito de se levantar em armas contra a ocupação de Israel. Tem o direito. Sagrado. Aliás, o [presidente da Turquia, Recep Tayyip] Erdogan falou isso. Está na Carta das Nações Unidas.

É uma ocupação. É um colonialismo, uma segregação, um apartheid social grave.

Israel tem que tomar uma decisão. Não quer reconhecer o Estado palestino? É uma coisa. Quer? Então tem que ver como construir isso.

Vai ficar expulsando cada vez mais palestinos para a Síria, o Líbano? E esses 2 milhões de palestinos [de Gaza] vão para onde? Vão para o Egito? Vão para o Mar Mediterrâneo? Para o Mar Vermelho?

Israel já convive com 1,5 milhões de árabes israelenses dentro do país. É isso o que eles pretendem? Transformar todos os palestinos em uma subpopulação dentro do Estado de Israel?

Fora que o [primeiro-ministro Binyamin] Netanyahu é um governo de extrema direita, contestado por uma parte importante de sua sociedade.

Temos que condenar o Hamas, e temos que condenar Israel também. É preciso condenar todos os crimes de guerra.

O senhor diz que o povo palestino tem o direito de se levantar em armas. Mas 1.500 pessoas inocentes foram mortas no ataque terrorista do Hamas.

Isso tem que ser condenado, e eu condenei. Todos os crimes de guerra têm que ser condenados, como eu disse.

O Hamas é definido como grupo terrorista. Mas vamos lembrar que os três grupos que formaram as Forças de Defesa e o Estado de Israel eram grupos terroristas.

Todo mundo sabe que o Menachem Begin [que foi primeiro-ministro de Israel entre 1977 e 1983] era terrorista.

Explodiam hotéis inteiros, matavam autoridades britânicas [que administravam a Palestina].

Se não [lembrarmos dos fatos] fica uma hipocrisia.

Não é porque houve o atentado do Hamas que você é obrigado a concordar com a política que Israel está desenvolvendo hoje. Aliás, o mundo não concorda mais com ela. Nem os norte-americanos, que são os principais financiadores e que garantem que Israel possa sobreviver, concordam com o que o Netanyahu está fazendo.

Infelizmente virou uma tragédia humanitária. Não sei se tem solução.

ANTISSEMITISMO

Há uma acusação de que existem setores da esquerda que são antissemitas. Como o senhor responde a isso?

Condenar Israel não tem nada a ver com antissemitismo. No Brasil nunca teve antissemitismo. O Brasil, aliás, pode se vangloriar de ser um país onde vivem várias nacionalidades. Árabes, chineses, japoneses, corenanos, libaneses, os descendentes da imigração criminosa e forçada dos negros, os descendentes de europeus.

Eu nunca vi antissemitismo dentro do PT. Nunca houve problema entre o partido e os judeus.

O Lula visitou Israel como presidente. O Brasil sempre reconheceu o Estado de Israel, o seu direito de defesa e as suas fronteiras, na ONU e em todos os foros internacionais.

Mas as políticas do Netanhyahu são inaceitáveis.

No Brasil ninguém se preocupa com a religião que a pessoa segue.

Eu já ouvi, sim, as pessoas falarem “ele é evangélico”.

E o que achou?

Eu sou muito contra isso. Porque ninguém fala “ele é católico, ele é espírita, ele é judeu”.

É um tremendo preconceito que se está criando.

As diferenças são por questões políticas, como podemos ter [diferenças] com católicos de direita, com a elite negra que é bolsonarista. Mas isso não tem nada a ver com o fato de a pessoa ser negra, ou favelada, ou empresário.

Fica uma coisa muito sectária.

RÚSSIA E UCRÂNIA

O senhor visitou a Rússia recentemente. Qual é a sua posição sobre a guerra contra a Ucrânia?

Eu visitei a China e a Rússia, mas não teve nada a ver com governo nem com partidos políticos. Fui ver os países.

Eu acho que a Rússia, de certa forma, se defendeu.

É uma guerra, e nós não podemos apoiá-la porque a nossa Constituição proíbe. A Rússia invadiu outro país.

Mas, se você olha os antecedentes, a Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], ao contrário do compromisso [que firmou com a Rússia] foi incorporando os países da ex-comunidade socialista [na aliança militar]. Bulgária, Hungria, Polônia, República Checa.

Mas esses países quiseram fazer parte da Otan.

Sim. Mas foram colocando mísseis intercontinentais [nos países da Otan que estão em torno da Rússia].

O [presidente russo Vladimir] Putin colocou mísseis em Kaliningrado, e com isso ele estava dizendo que não era o [ex-presidente da Rússia Boris] Yeltsin nem o [ex-presidente Mikail] Gorbachov [que não resistiriam a esse movimento do Ocidente].

Estava na cara que isso não ia acabar bem.

O [presidente da Ucrânia Volodimir] Zelenski começou a reprimir, matar e “desrussificar” o [território de] Donbass, que é russo. Começou a perseguir lideranças russas e permitiu a formação de colunas fascistas no Exército.

Resultado: o Putin falou “vão nos derrubar, vão desestabilizar o meu governo. Eu vou ocupar o Donbass, vamos fazer a guerra”.

É assim que eu leio o que aconteceu.

É uma guerra perdida, que já prejudicou muito a Europa também. Não tem como ser vencida pela Ucrânia.

A Rússia está vivendo um processo igual ao da China, de independência. Eles obrigaram a Rússia a se reinventar. E a Rússia tem riqueza, tem base industrial e científica para isso. Não é o Brasil, não tem as mesmas fragilidades.

Tem unidade, tem Forças Armadas, tem poder tecnológico e nuclear.

O ideal agora é buscar a paz.

 

Mônica Bergamo, Folhapress

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