Durante a ditadura militar, os vagões da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foram usados para carregar o povo Krenak para longe de seu território ancestral, em Minas Gerais. O interventor militar no estado, Rondon Pacheco, autorizou a entrega das terras em que viviam os Krenak para mais de 50 fazendeiros.
Para viabilizar a entrega, os indígenas foram retirados à força do local. Sua saída em massa só foi possível com a ajuda do trem da antiga Companhia Vale do Rio Doce.
“Meu avô, a minha tia avó, meus pais foram colocados dentro de um vagão. Meu pai conta a história que para o policial poder colocar o meu avô para dentro do vagão, ele deu uma coronhada nas costas dele, ele chegou a passar mal quando chegou na fazenda Guarani. Não demorou muito tempo, ele estava morto”, pontua a liderança indígena Geovani Krenak, vereador no município de Resplendor (MG).
Na segunda reportagem da série do Brasil de Fato sobre a Vale, a ditadura e os povos indígenas no Brasil, mostramos como a então Companhia Vale do Rio Doce colaborou com o governo militar para retirar o povo Krenak de seu território ancestral, em Minas Gerais, transferindo os indígenas para presídios e outras regiões do país.
“A Vale em conluio com o estado brasileiro fez a remoção do nosso povo”, desabafa Krenak.
Os vagões da Companhia Vale do Rio Doce
Os exílios começaram quando Rondon Pacheco autorizou a Ruralminas, com sede em Governador Valadares, a tomar a terra indígena e distribuí-la entre mais de 50 fazendeiros.
Para viabilizar os títulos de terras ilegais, idosos, mulheres e crianças Krenak foram retirados à força de sua terra ancestral e acomodados em caminhões de transporte de bois e em vagões de carga do trem da antiga Companhia Vale do Rio Doce.
O destino, segundo os documentos reunidos pela Comissão Estadual da Verdade-MG, eram as terras dos Tupinikim no Espírito Santo; dos Maxacali no Vale do Jequitinhonha (MG); dos Kaingang, em São Paulo; a Ilha do Bananal em Goiás, hoje Tocantins; e principalmente para a Fazenda Guarani, prisão no município mineiro de Carmésia.
“São inúmeras as formas de ataque por parte dessa empresa. Primeiro no momento de construção da linha férrea, de destruir as as matas, de matar bichos, de matar parente nosso. Depois no momento da ditadura militar, fazendo essa remoção junto ao estado. E agora com esses crimes ambientais. Então não é uma empresa que ela todo tempo ela tenta destruir o nosso povo”, coloca Geovani Krenak.
Geovani se refere ao rompimento da barragem do Fundão, localizada em Mariana, Minas Gerais, em 5 de novembro de 2015. A catástrofe espalhou cerca de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração em toda a bacia do rio Doce. O crime envolvendo a barragem da empresa Samarco, de posse das mineradoras Vale e BHP Billiton, acabou matando o Watu, o rio que assume a condição de “entidade”, de “avô” para os Krenak.
“Tanto é que a gente tem acordos judiciais com essa empresa para prever alguma coisa, em relação ao abastecimento de água, a gente está falando de água. A Vale para o nosso povo é namjoon. A gente tem um nome pra essa empresa, para esse trem de ferro, guaipó, monstro que solta fumaça. Então a gente sempre tentou barrar isso, mas a gente nunca conseguiu. E agora a sociedade está vendo que é o lucro acima de tudo, acima da vida, acima da água, acima do povo indígena”, completa.
A invasão de fazendeiros
Os impactos da estrada de ferro, atualmente sob concessão da Vale até 2057, são expostos no depoimento de Douglas Krenak que consta no relatório da Comissão Estadual da Verdade de Minas Gerais. Na comissão, ele relatou como a ferrovia construída no fim do século 19 teve papel crucial no processo de exílio perpetuado contra seu povo.
“Tava vindo uma expansão muito grande grande de café, gado, e a ideia era extinguir esse povo, acabar com esse povo, mas como na época já tinha esses serviços de proteção ao índio, eles começaram a retirar o nosso povo daqui para outros lugares. Por causa da própria estrada de ferro. A gente é a prova viva de toda a atrocidade que essa estrada de ferro, que é a questão das aberturas de estrada, a cultura do gado e do café fez por aqui”, colocou a liderança.
Em outro trecho, Douglas relata como a ditadura militar, para o povo Krenak, criou um tipo de violência até então não observada na história da etnia: a remoção forçada.
“A tortura, matar, impor questões culturais, trabalho forçado, isso a gente já vinha desde 1800 passando por isso e lutando contra. O que foi novo mesmo de violência contra o nosso povo foi essa questão de tentar tirar daqui, pra outro lugar, pro povo não retomar mais pra cá”, explicou no depoimento.
Tortura e presídios
Na esteira do Ato Institucional 5, o AI-5, o início do de 1968 foi marcado por uma política indigenista mais repressiva, com a criação de presídios para indígenas. Representantes de 23 etnias foram torturados em dois centros de detenção geridos e vigiados por policiais militares: o Reformatório Krenak, em Resplendor; e a Fazenda Guarani, em Carmésia.
As duas cadeias são classificadas como “campos de concentração” pelos Krenak, pelos indigenistas, e pelo Ministério Público Federal.
Um telegrama timbrado enviado pela Companhia Vale do Rio Doce mostra que havia uma parceria entre o governo militar, a Funai e a própria Companhia para capturar indígenas e transportá-los aos centros de repressão.
No documento, é possível observar a captura de um indígena da etnia Beuaká por parte de funcionários da Vale e a permanência do indígena nas demandas da empresa até a chegada da Polícia Militar. “Beauká está a sua disposição xadrex”, diz trecho do documento.
Anistia coletiva
Pela primeira vez na história, em 2 de abril deste ano, a Comissão de Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos, reconheceu violações coletivas no período da ditadura militar e formalizou o pedido de desculpas aos indígenas Krenak em nome do Estado brasileiro.
Os dados apresentados pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregue em dezembro de 2014, contabiliza ao menos 8.350 indígenas de diferentes povos vítimas da ditadura militar. A investigação, porém, ocorreu em apenas 10 territórios indígenas.
A CNV avaliou que o número real de indígenas assassinados é “exponencialmente maior”. Não há na contabilidade, por exemplo, estimativas do número de vítimas da ditadura entre os Guarani Kaiowá, povos do Mato Grosso do Sul, e entre os Kaingang, do sul do país.
“Nesse interior do Brasil, Amazônia, cerrado, são biomas que ainda estavam bastante preservados, onde ainda não tinha chegado a industrialização, a mineração, o agronegócio. Isso foi um projeto mesmo do regime militar, em ocupar essas áreas. E aí ao encontrar povos indígenas para eles era uma coisa muito simples, é tirar daqui e botar em outro lugar”, coloca a professora Paula Capriglione, que coordena hoje o Armazém Memória, iniciativa criada por seu ex-companheiro e pesquisador Marcelo Zelic, um dos principais articuladores para a inclusão das violações contra povos originários na Comissão Nacional da Verdade.
“Eles [os militares] vão enfrentar essa resistência [dos povos indígenas] das maneiras mais absurdas, que a gente viu no relatório Figueiredo. Relatos de infectar as populações. São coisas que estão ali documentadas”, completa Paula.
Zelic, que faleceu em maio de 2023, foi responsável pela recuperação de imagens que mostram como os militares ensinaram técnicas de tortura à Guarda Rural Indígena (Grin), como o pau de arara.
Foi também por meio do pesquisador que o país teve acesso ao Relatório Figueiredo em 2013, documento produzido em 1967 e que revela além dos crimes bárbaros cometidos contra os povos indígenas, como as terras indígenas foram arrendadas e vendidas com o aval do Estado durante o regime militar. As descobertas foram fundamentais para embasar o pedido de perdão efetuado pela Comissão de Anistia ao povo Krenak.
“Esse relatório ele tinha sido feito a pedido do Estado brasileiro, e ele traz ali relatos bárbaros sobre a própria atuação ou omissão do estado brasileiro, porque ele ou estava envolvido diretamente na violação e nas remoções, ou ele também se omitia de fazer o papel dele, de fazer a proteção aos indígenas. O serviço de proteção ao índio, depois substituído pela Funai, muitas vezes atuaram contra os povos indígenas e não a favor dos direitos que que deveriam ser reconhecidos”, completa Capriglione.
Demarcação paralisada
Os Krenak foram mantidos afastados de suas terras por décadas. E a retomada foi possível somente a partir de 1993, quando o Supremo Tribunal Federal anulou títulos que haviam sido concedidos pela Fundação Rural Mineira aos invasores da área indígena.
Apesar de recuperar parte do território do qual foi expulso no passado, o povo Krenak ainda aguarda pela demarcação do território de Sete Salões, uma área considerada sagrada, que teve seu processo de identificação e delimitação finalizado em abril de 2023 e até agora segue parado.
Antes ou depois da privatização, em 1997, a Vale nunca se manifestou publicamente sobre sua participação nas violações e torturas cometidas contra o povo Krenak durante o período militar.
A empresa foi procurada pela reportagem para comentar os assuntos expostos nesta reportagem, mas não respondeu. O espaço segue aberto.