‘Dois Papas’: Diretor do filme, Fernando Meirelles diz que busca ‘padre legal’ para ser seu confessor
Até completar oito anos, Fernando Meirelles ia à missa todos os domingos. Hoje, porém, o cineasta de 64 anos se considera agnóstico.
Mesmo assim, desde que rodou Dois Papas, produção da Netflix que concorre a três estatuetas do Oscar neste domingo (9) — melhor roteiro adaptado (Anthony McCarten), melhor ator (Jonathan Pryce) e melhor ator coadjuvante (Anthony Hopkins) —, admite que algo mudou. De uns tempos para cá, anda com vontade de encontrar um “padre legal” para virar seu confessor.
Depois de ouvir tanta gente falando sobre fé, oração e espiritualidade, Meirelles passou até a sentir uma pontinha de inveja de quem, segundo ele, tem essa capacidade de “conexão”.
“A vida parece ficar mais leve se alguém fora de nós toma conta de tudo. E, mesmo quando tudo dá errado, como Ele tem um propósito, acredita-se que o mal tenha acontecido para o bem. Isso ajuda a viver”, divaga o diretor de Cidade de Deus (2002), O Jardineiro Fiel (2005) e Ensaio Sobre a Cegueira (2008), entre outros.
O filme, que narra o encontro entre dois homens que discordam de absolutamente tudo, mas ouvem o que o outro tem a dizer, também estimulou o cineasta a exercitar seu lado mais tolerante e menos agressivo. “Este é o grande desafio no Brasil hoje”, afirma.
O convite para participar do projeto surgiu em 2015, quando um produtor americano o procurou para dirigir uma cinebiografia sobre o papa Francisco. Às voltas com a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio, Meirelles gostou da proposta, mas pediu um tempo.
Dois anos depois, o que era apenas uma ideia na cabeça virou um roteiro no papel, assinado pelo escritor neozelandês Anthony McCarten, o mesmo de A Teoria de Tudo (2014), O Destino de Uma Nação (2017) e Bohemian Rhapsody (2018). Dessa vez, o cineasta não pensou duas vezes: “Sou fã do papa Francisco porque ele é uma das vozes mais importantes da atualidade. Enquanto os outros só pensam em erguer muros, ele é o cara que quer construir pontes”.
Com o roteiro em mãos, Meirelles procurou conhecer um pouco mais da vida de cada um de seus personagens-título: o argentino Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, de 83 anos, e o alemão Joseph Aloisius Ratzinger, o papa Emérito Bento 16, de 92 anos.
Além de ler o que escreveram, conversou com pessoas que conviveram com eles. Meirelles chegou a passar dois meses na Argentina, batendo papo com padres, freiras e ex-seminaristas que conheceram o então arcebispo de Buenos Aires de perto.
“Fiquei surpreso ao saber que o jesuíta Bergoglio era um homem muito sério, que nunca sorria e era conhecido por ser uma pessoa desagradável. Em relação ao Bento 16, os comentários que ouvi eram sempre mais favoráveis. É um homem tímido, mas doce e muito inteligente, dizem.”
Cerveja e futebol
Outra preocupação do cineasta foi injetar humor no roteiro. Em uma cena, Bergoglio assobia uma música do grupo Abba. Noutra, o papa Bento 16 devora um pedaço de pizza com as mãos. Um amigo inglês muito católico, conta o diretor, contribuiu com piadas internas da Igreja, como a do jesuíta que pergunta se pode fumar enquanto reza.
“O grande mérito do filme é mostrar o lado humano dos personagens. Quando aflora esse lado humano, todo mundo se identifica”, destaca o padre Mário de França Miranda, professor emérito do Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
“Houve algumas incorreções, é verdade, como mostrar o cardeal Bergoglio ensinando o papa Bento 16 a dançar tango. Isso jamais aconteceu. Ratzinger não é de dar abraços em ninguém. Mesmo assim, dentro do que o diretor se propôs a fazer, o balanço é positivo”, avalia o teólogo.
O padre conheceu Bergoglio em 2007, quando o cardeal argentino esteve em Aparecida (SP), durante a visita de Bento 16 ao Brasil. Seu encontro com Ratzinger, por sua vez, aconteceu em 1992.
“Nunca ouvi Ratzinger falar de futebol. Mas, sei que, quando era cardeal, gostava de tomar cerveja. Já Bergoglio é torcedor apaixonado do San Lorenzo”, relata.
Encontrar o ator certo para dar vida ao seu papa Francisco, Jonathan Pryce, foi fácil, de acordo com Meirelles. Difícil foi convencer a Netflix — a gigante do streaming queria um nome de peso, como o de Tom Hanks, para encabeçar o elenco.
O que Meirelles fez? Convidou Anthony Hopkins, com quem tinha trabalhado em 360 (2012), para interpretar o papa Bento 16. Convite feito, convite aceito. E, com o nome de peso garantido no elenco, ficou mais fácil levar adiante a escolha de Pryce, que, além de ser bastante parecido com o pontífice, é caloroso e tem bom humor, diz o diretor.
Nos sets, os dois revelaram métodos diferentes de atuação.
“Enquanto Hopkins se assemelha ao pianista clássico que decora a partitura antes de tocar, o Jonathan parece o músico de jazz que gosta de improvisar”, compara. Será que vai dar certo?, pensou. Deu. Em poucos dias, os dois estavam fazendo piada um com o outro e combinando de jantar depois das filmagens.
‘Tô fazendo um filme sobre você’
Antes de começar a rodar, o diretor tentou, por quase dois anos, estabelecer um canal de comunicação com o Vaticano. “Nunca tivemos uma resposta”, diz.
O máximo que conseguiu foi um aperto de mão do papa Francisco na audiência pública que o Vaticano realiza toda quarta-feira. “Tivemos um encontro de dez segundos na Praça de São Pedro, em Roma. Eu e mais umas 80 pessoas. ‘Ó, tô fazendo um filme sobre você!’, eu disse. Ele não deu a mínima!”, conta, aos risos.
No Brasil, as tentativas de conversar com o cardeal Dom Cláudio Hummes, diretamente ou através de um amigo dele, também não deram em nada. O arcebispo emérito de São Paulo, interpretado no filme pelo ator chileno Luis Gnecco, participou dos conclaves que elegeram o papa Bento 16, em 2005, e o papa Francisco, em 2013. “Ele estava sempre muito ocupado e nunca me recebeu.”
Por essas e outras, Meirelles sabia que filmar nas dependências do Vaticano ou do Castel Gandolfo, a residência de verão do pontífice, estava fora de cogitação. “Eles nunca cedem seus espaços para filmes de ficção. Só para documentários”, explica.
O jeito foi rodar o filme em vilas, jardins e palácios nos arredores de Roma e, mais, construir uma réplica da Capela Sistina, onde se passa boa parte da história, nos estúdios da Cinecittà.
Como a capela tem 22 metros de altura e os estúdios, apenas 14, o teto precisou ser recriado digitalmente, em computação gráfica. O mesmo artifício foi usado para filmar as cenas de multidão na Praça de São Pedro. Não são permitidas filmagens lá, explica.
Licenças poéticas
Ao todo, Dois Papas levou dez semanas para ser rodado e contou com locações na Itália e na Argentina. Uma delas foi a favela Villa 31, a mais antiga de Buenos Aires, onde Bergoglio fez trabalho social. Outra foi o Colégio Máximo, de San Miguel, onde trabalhou como diretor.
“A Igreja na Argentina colaborou bastante com o filme. Além de ceder alguns locais para filmagens, tivemos um consultor jesuíta, o padre Otávio, que nos ajudou muito.”
Mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), em Roma, Mirticeli Dias de Medeiros aprovou o resultado.
“Do ponto de vista cinematográfico, é bastante interessante. Roteiro, atuações e fotografia são impecáveis. Meirelles e McCarten não tiveram medo de enfrentar todas as controvérsias que envolvem a vida dos dois líderes religiosos”, diz.
Mesmo assim, tem críticas a fazer. “Apesar de se tratar de uma ficção baseada em eventos reais, os dois papas foram bastante caricaturados. De um lado, um Francisco extremamente populista que iria contra os ensinamentos da doutrina católica, o que não é verdade. Do outro lado, um Bento 16 ávido por poder, o que também não é verdade”, explica.
Além disso, Mirticeli aponta algumas “licenças poéticas”. “Para início de conversa, o papa não marca os seus voos. Quando expressa o desejo de visitar um país ou uma cidade italiana, a Secretaria de Estado se ocupa dos detalhes”.
Outra cena forçada é a que mostra Bergoglio alheio aos protocolos, diz. “Ele sabia muito bem que tipo de vestes portar em encontros privados com o sumo pontífice.”
Até agora, Fernando Meirelles não sabe dizer se os papas Francisco e Bento 16 já viram seu filme ou, ainda, se gostaram dele.
Mas, em dezembro do ano passado, promoveu uma sessão em Roma para algumas pessoas ligadas ao Vaticano. Na ocasião, o cardeal Peter Turkson, de Gana, gostou muito do que viu, relata.
“Disse que retratamos bem os dois papas, que se divertiu com as piadas e nos pediu uma cópia para mostrar para o papa. No dia seguinte, mandamos um DVD com legendas em espanhol para ele.”