Dose dupla: nos últimos 5 anos, número de baianos com dois pais cresceu até 609%

Marcela Villar*
O arquiteto Flávio Moura e o esposo Márcio Xenofonte decidiram ter dois filhos por barriga de aluguelO arquiteto Flávio Moura e o esposo Márcio Xenofonte decidiram ter dois filhos por barriga de aluguel (Acervo pessoal da família)
Registros de crianças com mais de um pai ocorreu entre casais homo e heterossexuais; entenda 

A quantidade de crianças baianas com mais de um pai na certidão de nascimento cresceu até 609% na Bahia, nos últimos cinco anos. Seja de pais homo ou heterossexuais, o número de registros tem crescido quase exponencialmente. No caso de casais gays, o aumento foi de 609,4% de 2017 a 2021, comparado com os cinco anos anteriores, de 2012 a 2016. Foram 8.073 registros do tipo na última meia década, contra 1.138 do período anterior.

Já com relação a dois pais heterossexuais, esse número cresceu 80% nos últimos cinco anos – também de 2017 a 2021, em comparação a 2012 a 2016. Foram 7.418 registros contra 4.137 (veja os números ano a ano no final da matéria). O registro de dois genitores é possível quando existe o pai biológico da criança, mas um segundo o criou. Por conta disso, a Justiça permite registrar dois pais no documento. Os dados foram consolidados pelo CORREIO a partir de levantamento da Associação dos Registradores Civis das Pessoas Naturais do Estado da Bahia (Arpen-BA).

O arquiteto Flávio Moura, 43, e o endocrinologista Márcio Xenofonte, 41, resolveram aumentar a família um ano após o casamento, que foi em 2016. Eles estão juntos há quase 15 anos, e o desejo de ser pai sempre esteve presente em Flávio. “Sempre tive muita vontade de ter filho, amo criança. E viemos de famílias grandes, amorosas, que querem e criaram seus filhos para ter filhos. Sempre foi meu sonho. Minha vida só seria completa se me tornasse pai”, conta o arquiteto.

O marido, Márcio, precisou de um tempo para abraçar a ideia, mas não demorou muito. Foi durante um jantar, em um restaurante, que ele deu a notícia. “Quando fizemos um ano de casados, ele me surpreendeu. O garçom trouxe um livro sobre bebês, numa bandeja, embalado para presente. Foi aí que ele me disse que havia chegado a hora”, explica Moura.

O método escolhido pelo casal foi o da barriga de aluguel, também chamada de barriga substitutiva. Eles buscaram a empresa Tammuz, com sede em Tel Aviv, Israel, por indicação de um amigo que já havia feito o processo. “Foi muito lento, porque são muitas etapas. A empresa dá algumas opções de países, porque a gestação de substituição não está legalizada em todos eles, principalmente para casais homossexuais. Escolhemos a Colômbia, pela proximidade e facilidade com a língua, já que seriam muitas entrevistas e consultas”.

Os bebês chegaram quase três anos depois do processo de entrada da documentação – Laís, de 11 meses, e Caio, de 10 meses. Por terem nascido em solo colombiano, as crianças têm dupla nacionalidade e o registro da certidão de nascimento será feita também no Brasil para incluir o nome dos dois pais.

A expectativa é que o casal venha à Bahia no final de agosto, após resolverem toda a documentação das crianças. Eles foram à Colômbia em maio deste ano receber os novos membros da família. Por enquanto, são noites sem dormir e muitas fraldas para trocar. “Mesmo com toda a dificuldade, estamos muito felizes, está saindo tudo como imaginávamos”, completa Flávio.

Márcio (esquerda) e Flávio (direita) alugaram duas barrigas de substituição para realizarem o sonho de serem pais

(Foto: Acervo Pessoal da Família)

Flávio e Márcio até cogitaram a barriga solidária, procedimento legalizado no Brasil. Por lei, por aqui não é permitido pagar para que outra mulher gere uma criança, mas é autorizado que uma parente ou amiga faça o procedimento. Como eles não tinham ninguém próximo e por não terem achado boa ideia, desistiram.

Barriga solidária 

Foi através da barriga solidária que o administrador Otávio Gouveia, 55, e o enfermeiro Marcel Gouveia, 32, realizaram o sonho de ter uma criança. “Para a gente, foi um processo natural, porque queríamos um filho biológico. Às vezes, a gente tem a impressão que fertilização in vitro só gente famosa, como Paulo Gustavo, e milionária pode fazer. Mas, quando fui pesquisar, vi que a realidade era outra”.

O processo também demorou um pouco. Ao todo, foram cerca de quatro anos. Na primeira tentativa, que foi com uma pessoa da família, a gestação não vingou. Somente da terceira vez que deu tudo certo e os gêmeos nasceram no dia 2 de março de 2020: Victor e Matthew. “Foi a realização de um sonho que a gente já trabalhava há algum tempo”, conta Otávio Gouveia.

O administrador e o enfermeiro estão casados há 10 anos. Para ter os gêmeos, precisaram de autorização do Conselho Regional de Medicina, assim como uma declaração reconhecida em cartório de que o útero em que foram gerados os bebês foi uma espécie de “ninho”, sem vínculo biológico, porque o óvulo, anônimo, é acertado com a clínica de fertilização.

Pelo Instagram (@diariode2pais), os papais defendem a luta pela igualdade de direitos e contra a homofobia. “Mostramos que somos como qualquer pessoa, temos os mesmos boletos, mesmo Natal, mesmos problemas e alegrias. Nossa luta é educar através do amor e não da agressão”,afirmam.

Adoção 
No caso do funcionário público Luiz Dupin, 53, e do bancário Alberto Dumas, 55, o método escolhido foi o da adoção. Mineiro, Luiz veio para a Bahia há cerca de 20 anos e aqui conheceu o futuro marido. O amor pediu mais do que uma relação a dois e foi aí que veio a ideia de ter um filho – Luiz já tinha outros dois, Pedro, 25, e Henrique, 17, que moram com o casal.

A ideia inicial era de inseminação. Por ter um custo muito alto, se inscreveram no Cadastro Nacional da Adoção (CNA). Eles já estavam na espera por três anos, quando uma moça da cidade onde moram, Prado, no Sul da Bahia, que estava na quinta gestação, comunicou que não conseguiria criar o bebê – o pequeno João Vicente, que hoje tem 4 anos.

Luiz e o marido, Alberto, adotaram o pequeno João Vicente, em 2016. Da esq para a dir.: Pedro, Alberto, Luiz, João Vicente e Henrique

(Foto: Acervo pessoal da família)

“Uma amiga nossa perguntou se a gente não queria, porque a situação da moça era muito precária, social, financeira e de saúde. Então, a gente acompanhou a gestação, demos todo o apoio e foi uma comoção geral no hospital, quando ele nasceu”, lembra Luiz. O próprio conselho tutelar aprovou a guarda para o casal, no momento do nascimento de João. Alguns dias depois, a mãe biológica, no entanto, voltou atrás.

“A gente tomou um susto, porque ela levou de volta, quando estava tudo certo. Ele ficou oito dias fora de casa, foi a semana mais difícil de nossas vidas, sofríamos muito, como se tivesse perdido um filho, porque já tínhamos uma conexão muito forte”, conta.

Após seis meses com João Vicente, os pais conseguiram legalizar a adoção. Foi o primeiro caso de adoção por um casal gay em Prado, cidade de pouco mais de 27 mil habitantes, em 2016.

Certidão com dois genitores 
De acordo com o advogado Roberto Figueiredo, especialista em direito de família, do escritório Pedreira Franco e Advogados Associados, o processo de registro de dois pais se tornou possível a partir de 2017. “O Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade da multiparentalidade, ou seja, da pessoa ter mais de um pai, ou mais de uma mãe. Os critérios para isso quase sempre consideram o afeto, o registro civil e o DNA”, explica Figueiredo.

Isso facilitou o processo para muitos casais e famílias. “Com provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça, além da possibilidade de dois pais serem incluídos na certidão de nascimento, veio a possibilidade da filiação socioafetiva, através de processo administrativo. Antes, era só por medida judicial, o que demorava alguns anos”, acrescenta o presidente da Arpen-BA, Daniel Sampaio.

O acréscimo do nome de um genitor pode ser feito desde que alguns requisitos sejam preenchidos e haja comprovação do laço afetivo. “Se o pai ou padrasto cria a criança e deseja inserí-lo para efeitos sucessórios, como herança, é preciso comprovar esse laço, com fotografia e pessoas do convívio, que digam que ambos têm essa relação de maternidade ou paternidade”, detalha Sampaio.

Já a adoção exige, ainda, um processo judicial. Para adotar, é preciso a presença de um advogado ou defensor público, do Ministério Público, por se tratar de um menor de idade, e de um juiz. Só após a emissão da sentença pelo judiciário que é possível levar a criança para casa. Não é necessário ser casado ou ter uma união estável. Qualquer pessoa acima de 18 anos, até mesmo mãe ou pai solteiro, pode dar entrada no processo.

Além disso, um curso preparatório e uma visita da assistente social são alguns dos requisitos, que são os mesmos, seja para casais hetero ou LBGT+. “A adoção por um casal homoafetivo não deve ser nem mais fácil, nem mais difícil, tendo em vista que, de acordo com a Constituição, todos são iguais perante a lei e não podem sofrer discriminações por suposta raça, cor, origem ou orientação sexual”, relembra o advogado.

*Registros com mais de dois genitores na Bahia:
2011 – 776
2012 – 942
2013 – 885
2014 – 712
2015 – 811
2016 – 878
2017 – 1197
2018 – 1601
2019 – 1838
2020 – 1752
2021 – 1028 (até 3 de agosto)

*Fonte: Arpen-Bahia

*Registros de pais gays na Bahia
2011 – 286
2012 – 284
2013 – 205
2014 – 258
2015 – 197
2016 – 194
2017 – 155
2018 – 2287
2019 – 2294
2020 – 2103
2021 – 1234 (até 3 de agosto)

*Fonte: Arpen-Bahia

Matéria extraída do Jornal Correio

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