‘Dou graças a Deus por ser ateu’: quem foi Lichtenberg, o cientista que fascinou Goethe e Nietzsche
Dalia Ventura
Georg Christoph Lichtenberg é um personagem incomum.
Um matemático e físico lembrado principalmente como escritor.
Um autor admirado por suas anotações para livros que nunca escreveu.
Um nome desconhecido que grandes mentes não deixavam de mencionar.
“Podemos usar os escritos de Lichtenberg como a mais maravilhosa varinha de condão: onde quer que ele faça uma piada, um problema está escondido”, disse o polímata Goethe.
Schopenhauer o valorizou como uma autoridade filosófica à altura do grego Teofrasto e do francês Michel de Montaigne, e o declarou um Selbstdenker (pensador independente).
Kant passou seu trabalho para que ele o revisasse. Kierkegaard e Schopenhauer o citavam com frequência.
Para Nietzsche, que tendia mais ao desprezo do que ao apreço, ele era o único escritor alemão “que vale a pena ler repetidamente”.
O gigante da literatura russa Leo Tolstói ficou fascinado por ele. E era um dos escritores favoritos de Albert Einstein. Sigmund Freud o considerava seu predecessor em suas reflexões sobre o inconsciente e os sonhos.
“A sagacidade de Lichtenberg é a chama que só pode queimar em uma vela pura “, declarou o filósofo Wittgenstein.
Quem era ele e o que fez para ser tão estimado?
Em suma, um pouco de muito e de forma esplêndida.
Depósitos de ideias
Se começarmos pela parte da engenhosidade, esse excêntrico delegado da República das Letras – uma ampla comunidade de intelectuais da Europa e da América dos séculos XVII e XVIII – deixou um legado rico e único.
Ao longo de sua vida registrou “tudo, como eu vejo ou como sugere meu pensamentos em cadernos que não eram seus diários, mas uma espécie de repositório de ideias, cheio de monólogos secretos, reflexões e ocorrências, além de anotações sobre investigações sobre sonhos, reflexões, citações, cálculos e esboços de projetos possíveis.
O que ele escreveu naquelas páginas revelou ao mundo um virtuoso na arte de destilar ideias complexas em poucas palavras: aforismo, uma palavra que ele nunca mencionou.
É difícil escolher entre milhares de observações perspicazes e muitas vezes hilárias que deslumbraram tantos luminares do pensamento, mas para dar uma ideia (e um gostinho), aqui vão algumas:
- “Não posso dizer se as coisas vão melhorar se mudarmos, o que posso dizer é que elas precisam mudar para melhorar.”
- “A mais perigosa de todas as falsidades é uma verdade ligeiramente distorcida.”
- “É quase impossível carregar a tocha da verdade em meio a uma multidão sem chamuscar a barba de alguém.”
- “Certas pessoas são chamadas de gênios da mesma forma que certos insetos são chamados de centopeias: não porque tenham mais de 100 pés, mas porque a maioria das pessoas não consegue contar além de 14.”
- “Que o homem é a criatura mais nobre também é resultado do fato de que nenhuma outra criatura contestou esta afirmação.”
- “Um livro que, antes de todos os outros no mundo, deveria ser proibido é um catálogo de livros proibidos.”
- “Todos nós somos gênios pelo menos uma vez por ano… os verdadeiros gênios simplesmente têm ideias brilhantes com mais frequência.”
Os cadernos ficaram conhecidos pela forma como Lichtenberg costumava chamá-los: sudelbücher, uma tradução do inglês waste books (livro-lixo).
Antigamente, era onde todas as transações (compras, vendas, recebimentos, pagamentos etc) eram registradas no momento em que ocorriam. Depois essas informações eram passadas a limpo nos livros das empresas. Eles eram chamados assim porque uma vez que a informação era copiada, eles não serviam para nada além de lixo.
As transações que Lichtenberg anotou em seus cadernos eram as de sua alma.
E ficaram para sempre em rascunho porque, embora tenha dito uma vez que havia “espalhado sementes de ideias em quase todas as páginas que, se caírem no chão certo, podem tornam-se capítulos e até dissertações completas”, ele nunca “passou a limpo” as anotações.
Talvez, como disse o escritor austríaco Karl Krauss, mais um de seus admiradores, “alguém que sabe escrever aforismos não deve perder tempo com ensaios”.
No entanto, o que ele às vezes descartava como uma coleção de “verdades de um centavo” representou a passagem para a posteridade.
Mas de forma póstuma.
Lichtenberg nunca publicou suas cerca de 4.000 observações, registradas em nove volumes de seus cadernos.
A primeira edição alemã de seu conteúdo foi publicada no início do século XIX, sob o título “Observações sobre assuntos diversos”. Edições posteriores foram intituladas com essa palavra pitoresca Sudelbücher.
Mas o fato de a obra literária não ser famosa até depois de sua morte não significa que ele não tenha sido conhecido em vida, tanto por seus ensaios satíricos quanto por várias outras coisas.
Professor adorado
Lichtenberg era profissionalmente um homem da ciência e um acadêmico cujos cursos na Universidade de Gotinga, cidade que fica no centro do território alemão, eram famosos em toda a Europa.
Ele era um professor imensamente popular, um dos primeiros a tecer experimentos em suas aulas de física. Suas conferências estavam cheias de alunos que vinham não apenas para aprender, mas para testemunhar, para “ouvir Lichtenberg”.
E eles receberam, mais do que uma lição, uma educação, como pode ser visto nas palavras de agradecimento de um de seus alunos mais famosos.
“Não é apenas a soma de ideias positivas que consegui reunir partir do que ele me disse – o que eu valorizo ainda mais é a direção geral que meu fluxo de pensamento tomou sob sua direção. A verdade em si é preciosa, mas ainda mais preciosa é a capacidade de encontrá-la”, disse o naturalista Alexander von Humboldt.
O poeta romântico Novalis também foi seu aluno. O físico e químico Alessandro Volta e o matemático Karl Friedrich Gauss participaram de suas palestras.
Mas além de ser um notável, Lichtenberg era um nativo da Era do Iluminismo, encantado por seus sonhos, experimentos e ideias.
Estrelas de poeira
Ele viveu em uma época em que os cientistas eram fascinados pelo “fluido elétrico”, como eles chamavam de eletricidade e, como muitos, se envolveu em experimentos envolvendo faíscas saltando entre objetos carregados.
Com eles, descobriu algo que leva seu nome: as figuras de Lichtenberg.
Depois de construir um grande gerador eletrostático com quase dois metros de diâmetro, conhecido como eletróforo, para estudar o comportamento do fluido elétrico, relatou que “meu quartinho ainda estava coberto de uma poeira resinosa muito fina” que “cai, para meu desgosto, sobre o disco condutor do eletróforo.
Mas quando pendurou o disco no teto, percebeu que a poeira não o cobria completamente.
“Para minha grande alegria, ela se acumulou em pequenas estrelas, fracas e pálidas no início, mas à medida que a poeira se espalhava de forma mais abundante e enérgica, havia figuras muito bonitas e definidas, não muito diferentes de um desenho gravado.
“Inúmeras estrelas, vias-lácteas e grandes sóis às vezes apareciam”, escreveu ele em Um Novo Método de Investigação da Natureza e do Movimento do Fluido Elétrico.
Além de descobrir essas figuras, Lichtenberg passou a “colocar um pedaço de papel preto untado com um material viscoso sobre as figuras e pressionar levemente. Consegui produzir impressões das figuras (…)”.
“Este novo tipo de tipografia tem sido extremamente satisfatório para mim” porque, segundo ele, “não tinha tempo nem vontade de desenhar as figuras ou destruí-las”.
Ao transferir as imagens, deu o primeiro passo do que logo seriam os processo modernos de fotocópia e impressão a laser. E a física subjacente que criou as figuras de poeira de Lichtenberg evoluiu para a ciência moderna da física de plasma.
“É por isso que eu sou tão razoável”
Além de ser um físico experimental, Lichtenberg fez pesquisas em uma ampla variedade de campos, incluindo geofísica, vulcanologia, meteorologia, química, astronomia e matemática.
Mas, apesar das faíscas de gênio em vários assuntos que inspiraram outras grandes mentes, ele foi um grande procrastinador: ele foi, por exemplo, provavelmente o primeiro a conceber o balão de hidrogênio, mas, para seu pesar, nunca chegou a experimentá-lo.
No entanto, deixou outros legados para o mundo posterior: foi ele quem introduziu os símbolos + e – na ciência da eletricidade .
Foi também quem deduziu que o formato ideal para uma folha de papel era um retângulo cujo lado maior é √2 vezes o lado menor, o que levou ao padrão internacional métrico ISO para tamanhos de papel – amplamente utilizado em todo o mundo, com exceção do EUA, Canadá e alguns países da América Latina.
Em 1799, Lichtenberg, o 17° e um dos cinco filhos sobreviventes de um líder religioso no movimento de reforma do Pietismo Luterano, morreu aos 56 anos.
Aos 16 anos, desencantou-se com a religião, embora não tenha abandonado o divino: “Agradeço mil vezes a Deus por me permitir ser ateu”.
Ao longo de sua vida, ele sofreu de duas doenças: hipocondria e uma malformação da coluna vertebral que o deixou corcunda.
Mas ser fisicamente pouco atraente não o impediu de ter relacionamentos românticos ou azedar seu senso de humor.
“Minha cabeça está pelo menos um palmo mais perto do meu coração do que no caso de outros homens: é por isso que sou tão razoável”, escreveu ele, refletindo mais tarde:
“Se o céu achar útil e necessário produzir uma nova edição minha e de minha vida, gostaria de fazer algumas sugestões não supérfluas para a nova edição, principalmente em relação ao desenho do frontispício e à maneira como a obra é arranjada”.