Em meio a ‘cemitérios de papel’, iniciativa recupera manuscritos históricos da Bahia
Por Bruno Leite
Um Livro de Termos, de 1848, registra a briga entre membros da Irmandade de Nossa Senhora dos Desvalidos, o que levou a uma divisão interna e à saída de um grupo que criou a Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), cortando as relações que existiam com os Irmãos. Essa parte da história da Bahia está em um manuscrito que, em meio a mais de uma dezena de documentos de importância cultural e histórica para o estado, será recuperado através da iniciativa “Salvaguarda de manuscritos históricos – patrimônio documental da história da cidade do Salvador”. Tocada pelo ateliê Memória e Arte, a ação vai durar 12 meses e será financiada por um fundo emergencial holandês.
Coordenado pela professora Vanilda Salignac, doutora em Letras e Linguística, o projeto selecionou escritos de três instituições: a Sociedade Protectora dos Desvalidos, o Congregação de Nossa Senhora dos Humildes e a Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Conceição da Praia.
Além do Livro de Termos, uma carta de uma freira solicitando sua saída, de 1910, e um Livro de Registro do cotidiano do Recolhimento dos Humildes, de Santo Amaro, do século XIX, também vão ser recuperados.
Além disso, constam no acervo selecionado pelo projeto documentos da Biblioteca Monsenhor Manoel de Aquino Barbosa, pertencente à Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Conceição da Praia, que datam de 1782 a 1846, e tratam de assuntos diversos – que, conforme afirma a estudiosa responsável, “vão desde Breves Apostólicos, uma carta sobre um atentado que um pároco de Itaparica sofreu, autorizações para uso do dinheiro da Irmandade, autorizações para visitação da Igreja da Conceição da Praia nas festividades de dezembro e autorização para o Padre Dendê Bus assumir a Freguezia da Conceição da Praia”.
De acordo com a professora, registros históricos como estes estão em diversas instituições aguardando pela recuperação. “Essas instituições, assim como muitas outras, nos solicitam ajuda sempre, e como temos vários documentos deles aguardando editais para serem inscritos, a priori, eu desconheço o conteúdo deles, só fico sabendo quando os pego para descrevê-los a fim de inseri-los nos projetos”, afirma a especialista, apontando que o critério inicial que costuma utilizar é o de dar prioridade para os papéis que estão mais degradados.
No decorrer da sua atuação outros tantos já foram recuperados. Todos eles estão disponíveis, digitalizados e transcritos no site do ataliê pelo qual Salinac é responsável – assim como os documentos dessa iniciativa mais recente também serão. No repertório de acervos recuperados estão manuscritos do século 19 e dos livros cartoriais do Tribunal de Justiça da Bahia, o Livro de Teses da Faculdade de Medicina da Bahia, e de cartas de alforria do Museu Casa do Sertão.
“CEMITÉRIOS DE PAPEL”
“Personagem” relevante na história do país, a Bahia tem instituições seculares com acervos que carregam escritos de total importância para a memória de toda América Latina. Ainda assim no estado, conforme Salignac, 80% do acervo documental está em estado de degradação. Os arquivos, aponta a professora, parafraseando o escritor Monsenhor Aquino, se assemelham a “cemitérios de papel”.
E foi exatamente essa classificação do religioso que atraiu a sua preocupação para que se atentasse a essa problemática prejudicial à história. “Aquilo me tocou muito e quando olhei em volta do nosso ateliê de restauração foi exatamente isso que vi: centenas de documentos deixados pelas instituições em busca de auxílio porque eles não têm como pagar para restaurar tão grande volume, e absolutamente todos em avançado estado de degradação, seja por essa falta de verba alegada, seja por desconhecimento do tratamento, seja por descaso, enfim, são vários os motivos. E não cuidar dessa documentação traz como impacto maior a perda de parte da história. E sabe o que significa? Uma lacuna histórica jamais recuperada, fica um ‘buraco’ em período ou em uma querela ou um caso, que ficará alí, sem solução. Um manuscrito perdido é um manuscrito perdido!”.
“Muitas vezes, por tristeza nossa, chegam documentos irrecuperáveis, cujo conteúdo está perdido para sempre devido ao avançado estado de degradação, sequer conseguimos manipulá-los. É muito triste não só para nós, restauradores, mas para historiadores, pesquisadores, público em geral que ama a história da Bahia e do Brasil, pois estamos falando de manuscritos que cobrem 3 períodos políticos: Colônia, Império e República do país”, discorre.
Registros históricos como os da construção da Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia, que demorou mais de 100 anos para ser finalizada, por exemplo, tiveram partes perdidas. E nesse contexto em específico, perder um pedaço do que foi escrito é perder parte da trajetória de um fato histórico. (BN)