Por Natalia Portinari, do UOL – Com sócios acusados de lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e organização criminosa, uma empresa de segurança em Pernambuco, a Alforge Segurança Patrimonial, recebe milhões em dinheiro público todo ano.
Apenas em 2023, a empresa recebeu R$ 14 milhões do governo federal — a maior parte de um contrato com a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) — e R$ 65 milhões do governo de Pernambuco.
Apesar de investigações da PF (Polícia Federal) e da CGU (Controladoria-Geral da União) apontando possíveis desvios, que tiveram início há quase seis anos, a empresa continua recebendo dinheiro público e firmando novos contratos.
Procurada, a empresa disse que “não houve nenhuma irregularidade nem ilegalidade na gestão”. “As conclusões da Polícia Federal são equivocadas e frutos de uma vingança”, disse o advogado Emerson Leônidas ao UOL.
Em 2018, a PF (Polícia Federal) identificou que Pércio Araújo Ferraz, policial militar lotado na Alepe (Assembleia Legislativa de Pernambuco), seria sócio oculto da Alforge. Margarida Ferraz, sua esposa, aparece como sócia formal da empresa.
Depois disso, Pércio foi investigado como líder de uma organização criminosa que teria usado um grupo empresarial para desviar dinheiro de licitações, depois “devolvendo” esses recursos a lotéricas ligadas a políticos, o que levou à Operação Mapa da Mina em 2020.
Houve uma busca e apreensão de bens dos investigados e, naquele momento, a PF divulgou que o prejuízo aos cofres públicos chegava a R$ 30 milhões.
Dois políticos alvos da operação, donos das lotéricas, foram apontados como beneficiados do esquema: o então prefeito de Itamaracá, Mosar Tato (PSB), e o então deputado estadual Guilherme Uchôa Júnior (PSB), filho do ex-presidente da Alepe Guilherme Uchôa.
Os dois são suspeitos de atuarem para beneficiar as empresas de segurança em licitações, em troca dos pagamentos feitos depois às lotéricas. Pércio Ferraz, que comanda o grupo empresarial, teria chegado a líder da organização criminosa como apadrinhado de Guilherme Uchôa, ex-deputado estadual morto em 2018, quando presidia a Alepe pela sexta vez.
Em 11 de janeiro deste ano, a Justiça Federal de Pernambuco aceitou uma denúncia contra os apontados como envolvidos no esquema. Os sócios da Alforge, Margarida Ferraz e Renato Correa de Lima, são acusados de lavagem de dinheiro, organização criminosa, uso de documento falso e falsidade ideológica.
Já o tenente-coronel da PM Pércio Ferraz é acusado de comandar organização criminosa, falsidade ideológica, lavagem de dinheiro e furto mediante fraude. Mensagens encontradas em seu celular mostram que ele atuava como dono de empresas no nome de “laranjas”.
Há ainda outro inquérito na Polícia Federal em que são apurados os crimes de corrupção ativa, corrupção passiva e peculato (desvio de dinheiro praticado por servidor público) que teriam sido praticados pelo mesmo grupo, investigação que tramita de forma separada.
Contratos na Codevasf
Uma quebra de sigilo da PF, em conjunto com uma análise da CGU, encontrou provas de que a Alforge fraudou três processos licitatórios na Codevasf de Petrolina (PE).
Pércio Ferraz fala abertamente, em mensagens, de dar um “presente à vista” para um integrante da Codevasf para que ele cancelasse um pregão para depois contratar a Alforge com dispensa de licitação.
Esses contratos tiveram fim, mas, em 2022, no final do governo Jair Bolsonaro, a Codevasf voltou a contratar a Alforge para a segurança do Pisf (Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional).
O contrato, de R$ 18,3 milhões por ano, prevê mais de 200 vigilantes e equipamentos de segurança para 57 postos nos canteiros de obras da Codevasf, e está vigente até hoje.
Outros contratos
Além da Codevasf, a empresa recebeu recentemente também por serviços de vigilância prestados ao ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), o Instituto Federal de São Paulo e a Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares).
Todos os contratos são posteriores às operações da PF e à investigação da Controladoria-Geral da União sobre as irregularidades cometidas pela empresa.
No governo de Pernambuco, há pagamentos para a empresa vindo da Agência de Desenvolvimento Econômico, Empresa de Turismo de Pernambuco, Consórcio de Transportes da Região Metropolitana do Recife, Companhia Pernambucana de Saneamento, entre outros.
A empresa tem atuação em doze estados, segundo seu site: Pernambuco, São Paulo, Espírito Santo, Goiás, Rio de Janeiro, Bahia, Alagoas, Minas Gerais, Sergipe, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
Medidas emergenciais
Em casos semelhantes, poderia haver uma decisão da Justiça determinando a suspensão ou rescisão dos contratos, ou uma medida emergencial da administração pública, mesmo antes de uma eventual condenação pelos crimes. Isso não ocorreu com a Alforge.
“O fato de o processo penal não ter chegado até o final é um grande empecilho”, diz Marcos Perez, professor de direito administrativo da Faculdade de Direito da USP.
Gustavo Justino de Oliveira, professor da USP e do IDP (Instituto de Direito Público), ressalta que há medidas emergenciais que a CGU e o TCU (Tribunal de Contas da União) podem adotar em situações como essa.
“O TCU tem consolidado jurisprudência no sentido de que a simples existência de indícios de irregularidades já é suficiente para a adoção de medidas emergenciais, visando à proteção do erário e à garantia da lisura nos processos licitatórios e contratuais.”
O que dizem os órgãos públicos
Procurada, a Codevasf disse que, na última licitação vencida pela Alforge, não havia impedimentos legais à habilitação da empresa.
“Empresas fornecedoras da Codevasf devem operar com observância a leis e normas e atender aos requisitos dos editais e termos de referência que regulam as licitações”, diz a companhia, em nota.
“A Companhia mantém contratos com pessoas jurídicas, de modo que é desconhecida a conduta pessoal de sócios de empresas fornecedoras. Apurações sobre irregularidades eventualmente cometidas por essas empresas são conduzidas por órgãos independentes e contam com a irrestrita colaboração da Codevasf.”
A Polícia Militar de Pernambuco foi questionada sobre eventuais investigações contra o tenente-coronel Pércio Ferraz, mas não respondeu. O governo de Pernambuco também não respondeu.
A Assembleia Legislativa de Pernambuco disse que “a instância administrativa para tratar da situação do servidor da Polícia Militar de Pernambuco (PMPE) é o Poder Executivo, cabendo, portanto, à PMPE decidir sobre eventual afastamento do servidor de suas atividades”.
Guilherme Uchôa Júnior, hoje deputado federal, e Mosar Tato, ex-prefeito de Itamaracá, não responderam ao contato do UOL.
Emerson Leônidas, advogado da Alforge, disse que a investigação contra a Alforge foi motivada por uma suposta briga entre um delegado da Polícia Federal e o policial militar Pércio Ferraz. “É simplesmente uma vingança.”