Do Estadão – Um esquema bilionário de terceirização envolvendo o uso de laranjas, empresas de fachada e suspeitas de fraude em licitações está por trás de contratos sensíveis nos principais órgãos públicos do País. Ligado a um ex-deputado distrital, o grupo é formado por pelo menos 11 empresas. No papel, as companhias estão em nome de pessoas que ganham benefícios sociais do governo e não sabem dar detalhes sobre os negócios. Na prática, elas concorrem nas mesmas licitações, simulam negócios entre si para inflar balanços e ganham contratos até em presídios de segurança máxima.
No mês passado, o Estadão revelou que uma dessas empresas, a R7 Facilities, é responsável por obras de manutenção na Penitenciária Federal de Mossoró, onde duas pessoas ligadas ao Comando Vermelho (CV) fugiram no último dia 14. Na Receita Federal, a R7 está em nome do técnico em contabilidade Gildenilson Braz Torres. Ele foi beneficiário do auxílio emergencial, mora em uma pequena casa na periferia do Distrito Federal e tinha em suas contas R$ 523, segundo uma ação de execução fiscal de 2022.
Em nota, a R7 Facilities informou que tem um “histórico inquestionável de excelência na prestação de seus serviços”, mas não explicou supostos serviços com empresas que não existem. Destacou, porém, que seus contratos “são conquistados por meio de rigorosos processos de licitação e acompanhados sistematicamente tanto por gestores públicos quanto por órgãos de fiscalização e controle”. Os donos das outras firmas não souberam dar explicações ou se negaram a comentar (leia mais abaixo).
Agora, a investigação do Estadão se aprofunda nas relações da R7 no mercado, encontra vínculos dela com outras firmas e aponta indícios de fraudes na operação de um conjunto de empresas. Nesta sexta-feira, 1º, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República informou que a Controladoria-Geral da União (CGU) abriu uma investigação sigilosa a partir das informações indicadas pela reportagem.
Das 11 empresas do grupo, seis têm se destacado nas licitações com o poder público. O grupo soma R$ 1,5 bilhão em contratos com governo federal, Câmara, Senado e Supremo Tribunal Federal (STF) só a partir de fevereiro de 2021, quando a R7 passou para as mãos de laranjas. Do montante, R$ 683,2 milhões foram assinados ou renovados em 2023 e 2024, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Gestores consultados estimam que o grupo seja responsável por cerca de 10 mil funcionários terceirizados que atuam no poder público em Brasília, e que uma eventual retirada sumária de todos eles teria efeito de inviabilizar setores da burocracia federal. São funções como as de porteiro, motorista, pedreiro, copeiro e auxiliar administrativo. Entre os principais contratantes estão os ministérios da Fazenda, da Infraestrutura, da Agricultura, do Meio Ambiente e da Justiça.
O Estadão mapeou a relação das empresas ao analisar centenas de licitações, milhares de páginas de processos judiciais, balanços contábeis, publicações em redes sociais, mensagens privadas e documentos da Junta Comercial. Também serviram para montar os elos da rede as contradições apresentadas em entrevistas com os supostos donos, conversas com agentes do mercado e o não funcionamento de empresas nos endereços informados ao Fisco.
O desenho do esquema aponta sempre para os mesmos articuladores: o ex-policial civil Carlos Tabanez e o empresário Edison Júnior, o Edinho. Tabanez foi deputado suplente na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) em 2022 e é dono de um dos principais clubes de tiro de Brasília. Já Edinho é figura conhecida no mercado de terceirização, foi dono de uma empresa do ramo que faliu e é associado ao clube de tiro de Tabanez. Sempre aparecem também dois advogados que gozam da confiança do policial.
Em uma mensagem de fim de ano enviada a um ex-colaborador, Tabanez se apresenta como “fundador” da R7. Ele também faz palestras em nome de uma outra empresa do grupo e é chamado de “chefe” por um funcionário de uma terceira companhia. No papel, ele não é dono de nenhuma dessas três, mas elas chegam a participar das mesmas licitações. Ele admite “indicar funcionários” para elas.
Além das seis empresas com contratos milionários, outras cinco firmas mapeadas aparecem em balanços da R7 como companhias que a teriam contratado para serviços particulares. Duas delas teriam contratado a R7 para serviços de “manutenção e reforma” por R$ 40,6 milhões. Entretanto, ambas não funcionam nos endereços que declaram à Receita.
Uma delas é a G&G Empreendimentos, que está em nome de Eliseuma Costa Alves, a Elis, uma ex-secretária de outra empresa do grupo, a B2B. A reportagem encontrou a suposta administradora da companhia milionária em uma clínica de estética em Taguatinga, cidade a 23 km de Brasília. Ela afirmou ser dona somente da clínica e disse desconhecer a G&G e a R7. O contador da clínica de Elis é Gildenilson Torres, laranja que aparece na papelada como dono da R7.
No endereço da G&G, em um prédio de escritórios na área central de Brasília, outro personagem central veio à tona. Em vez da empresa em nome de Eliseuma, funciona no espaço a Siello Tecnologia, empresa do advogado Alair Ferraz, representante de Tabanez e de Edinho em processos judiciais. A funcionária que recebeu a reportagem no local disse desconhecer a G&G e apontou a sala da empresa como, na verdade, pertencente à Siello.
Além de advogado de Tabanez e Edinho, Alair Ferraz também aparece como procurador das demais empresas do grupo – que, em tese, seriam concorrentes. O vínculo dele com Carlos Tabanez, porém, não é somente técnico. O advogado é do círculo de confiança do policial aposentado e foi um dos principais doadores da campanha eleitoral de Tabanez à Câmara Legislativa do Distrito Federal em 2022. Ferraz não fez doação para nenhum outro candidato naquela disputa. Tabanez se refere ao advogado como seu “venerável mestre” da loja maçônica que frequenta.
Carlos Tabanez ficou na terceira suplência na eleição de 2018, mas chegou a assumir o mandato por algumas semanas. Bolsonarista e dono de um dos maiores clubes de tiro de Brasília, ele tem um arsenal avaliado em R$ 128,5 mil, entre pistolas, revólveres e fuzis. Seu patrimônio declarado na campanha de 2018 era de R$ 1,06 milhão. Quatro anos depois, informou R$ 12,4 milhões em bens, um crescimento de 1.066%.
O policial e ex-deputado também foi dono da Defender, outra empresa de terceirização de mão de obra do grupo. Recentemente, a empresa foi repassada para Luiz Carlos da Silva Batista. O jovem de 28 anos vive na periferia de Brasília, não soube dar explicações sobre o funcionamento da firma e se negou a explicar como virou o dono do negócio que firmou, a partir de 2021, R$ 337 milhões em contratos com o governo federal.
É recorrente a participação de empresas do grupo, como Defender e R7, nas mesmas licitações. O Portal da Transparência registra pelo menos 15 casos. Segundo especialistas, o cenário pode apontar para crimes como conluio, falsidade ideológica, fraude em licitação e até associação criminosa.
Luiz foi localizado em casa no Riacho Fundo, numa quinta-feira à tarde. Ele disse que era seu dia de “folga”. Questionado sobre como comprou a empresa que foi de Tabanez, irritou-se, negou ser laranja e afirmou que iria falar com seus advogados. Por fim, pediu para que os repórteres se retirassem.
Outra empresa do grupo é a B2B, registrada em nome de Robério Dantas, um ex-beneficiário do auxílio emergencial que se recusou a dar informações sobre a empresa. A firma aparece nos balanços da R7 como contratante de um serviço de “manutenção” por R$ 37 milhões. Nas redes sociais, Tabanez é citado como “chefe” por funcionários da empresa. Edinho é um ex-dono da empresa e se apresentava como representante dela mesmo depois de deixar formalmente o negócio.
A B2B funciona no mesmo endereço de outras duas empresas do grupo, a AC Segurança, que possui R$ 41 milhões em contratos com o governo, e a Falcon. Ambas pertencem, no papel, a Nathan Andrade, o Nanau, um apoiador de Tabanez nas eleições de 2022. A reportagem procurou pelo suposto dono no endereço dele e por telefone. Após as tentativas de pedidos de entrevista, ele bloqueou a reportagem. Essas três empresas também têm Alair Ferraz como advogado em processos judiciais.
Do conjunto de seis empresas, a mais bem sucedida em assinatura de contratos com o governo federal é a R7 Facilities, com contratos que somam R$ 1,06 bilhão desde fevereiro de 2021, quando passou para os nomes de “laranjas”. Em seguida vem a Defender (R$ 338,3 milhões); a AC Segurança (R$ 41,4 milhões); a K2 Conservação (R$ 15,2 milhões); a GSI Serviços (14,6 milhões); e a GSI Gestão de Segurança (R$ 6,5 milhões).